quarta-feira, 31 de março de 2021

Quarta evocação da Crise Académica de 1962 na sua dimensão coimbrã

 


A Torre, a “Cabra” e as horas ─ um episódio.

I- Como vos disse na segunda evocação da crise de 1962 feita há dias atrás, a Assembleia Magna tinha achado insuficiente o que a mediação dos professores tinha arrancado às autoridades, no decurso do processo negocial para o qual tinham sido mandatos pelos estudantes e que os  tinha levado a sair voluntariamente da sede da AAC ( Palácio dos Grilos)  onde estavam cercados pela polícia de choque . 

Essa Assembleia Magna, reunida no Campo de Santa Cruz , uma vez que estava encerrada a sede da AAC no Palácio dos Grilos, rejeitou por isso a proposta da comissão de professores.

Como vos disse, o corolário natural dessa rejeição seria  o regresso à sede da AAC, donde só tínhamos saído para permitir essa negociação. Falhada a negociação, haveria que voltar ao Palácio dos Grilos. Mas se tal fosse votado expressamente no Campo de Santa Cruz, quando chegássemos ao Palácio dos Grilos já lá estaria a polícia e não conseguiríamos entrar. Por isso, a decisão não foi formalmente tomada na Ass. Magna, tendo apenas sido passada a palavra de que iríamos até ao Pátio da Universidade.

 Por isso, apenas um pequeno grupo foi informado da razão dessa ida. Umas centenas de estudantes deslocaram-se assim até lá. Haviam sido distribuídas tarefas pela Direcção-Geral. A mim, aos irmãos Luís e Pedro Lemos e a mais alguns, cabia-nos promover o arrombamento da Torre da Universidade para fazer tocar a "cabra". 

Ao Xico Delgado coube um papel crucial  de que então vos falei.. Chegados ao Pátio da Universidade era preciso dar o passo seguinte: ir para a sede da AAC, entrar arrombando a porta e reocupá-la. Mas alguém tinha que o propor. Foi essa a missão do Xico Delgado. Subindo alguns degraus da escada que desce da Via Latina para a Porta Férrea, perante algumas centenas de estudantes, em breves palavras, incisivas e cortantes, como a ocasião exigia, apelou a que regressássemos à sede da AAC. Assim aconteceu. Era perto. A polícia não podia chegar antes de nós. Não chegou. Entrou-se pela Filantrópica. Menos de uma hora depois o Palácio dos Grilos estava completamente cercado pela polícia de choque.


II- A isto, de que já vos falei, acrescento hoje uns detalhes de que me lembrei. Um episódio talvez não muito glorioso, mas que a esta distância podemos encarar com bonomia e com o tradicional e saudável humor coimbrão.

Correspondendo ao apelo do Xico Delgado, as centenas de estudantes que iam engrossando deslocaram-se para a sede da AAC nos Grilos. Estando a sede fechada, entraram através da Filantrópica que tinha ligação à AAC. Mas um pequeno grupo de estudantes ficou no Pátio da Universidade para arrombar a porta da Torre e ir fazer tocar a "cabra", repetindo assim o que havia sido feito, quando alguns dias antes tinha ocorrido o primeiro cerco policial da AAC numa manhã agitada com aulas a decorrer.

Feita uma primeira tentativa, verificou-se que desta vez a porta estava escorada por fortes suportes consolidados; o que tornava difícil, ou mesmo impossível, o arrombamento pelos meios correntes. Acontece que estavam a decorrer obras numa qualquer dependência próxima da Universidade, havendo ali perto materiais de construção e uma grande trave de alguns metros de comprimento e uma envergadura apreciável. Talvez estimulado pela memória dos filmes de “ índios e cow-boys” houve quem tivesse a ideia salvadora. E assim cerca de uma dezena dos estudantes presentes pegou na trave, tomou balanço, renunciou aos esperados “gritos selvagens” e arremeteu decididamente contra a porta da Torre. Estranhamente a porta resistiu. Dois grossos barrotes cruzados e bem escorados impediam o êxito. Mas se a porta não cedia, talvez não resistisse inteira a novas investidas. E assim foi feito. Uma, duas, três, quatro vezes a malta tomou balanço e arremeteu. Os barrotes cruzados não cederam, mas a porta ficou desfeita e através dos barrotes cruzados conseguiu passar-se.

Na minha memória, ficou sedimentada uma lembrança difusa do papel liderante que teve nesse “assalto” o Zé Baptista, então estagiário de Medicina, com o qual viria a partilhar , comigo e com outros, pouco depois durante alguns dias uma cela no reduto norte do Forte de Caxias.

Entretanto, ao procuraram-se outras vias de acesso à Torre, tinha-se tentado usar um postigo situado perto da Via Latina, mas que permitia a passagem através dele de alguém elegante. Estando eu no fundo da escada e vendo na Via Latina um estudante com ar de quem estava ali para o que fosse preciso, instei-o a rebentar com o postigo para se poder passar através dele. Num ápice, foi o que aconteceu. A minha “ordem” foi obedecida. Mas as autoridades tinham-se precavido: tinham tapado o postigo com tijolos. Só restava o arrombamento. Anos mais tarde , em 1968, à beira de uma nova crise, numa reunião da Comissão Pró-Eleições da qual ambos fazíamos parte, o Carlos Baptista perguntou-me se eu sabia  a quem tinha mandado rebentar com o postigo naquele dia de Abril de 1962. Tinha sido a ele, então ainda estudante do Liceu. Criatividade da história, teimosia na resistência, acaso.

Recordo: dois resistentes, um Zé e um Carlos, unidos por um mesmo apelido [Baptista], talvez nem se conhecendo um ao outro, um estudante do Liceu e um estagiário de Medicina, envolvidos numa mesma revolta. Um pequeno passo mais no caminho para uma respiração livre a que chegaríamos uma dúzia de anos depois.

Voltemos ao pátio da Universidade. Não me recordo de quem  subiu à torre para ir tocar a “cabra”. Esperámos ansiosos para ouvir o desejado e simbólico som . Porém, com espanto e desilusão apenas ouvimos tocar desregradamente o modesto som das horas no relógio da torre. Ao estudante que subiu à torre escapara  um pequeno detalhe: como se fazia tocar a “cabra”. E assim se frustrou esse rebate de aviso de que algo se passava na Academia.

Saímos rapidamente pela porta férrea, antes que a polícia colmatasse a pequena omissão de  a não ter guardado. Cortámos à direita, pelo caminho que separa os Gerais da Faculdade de Letras, como fora programado. Desse modo chegava-se às traseiras do Palácio dos Grilos ( então sede da AAC). Aí uma escada amovível permitiu-nos descer até ao pátio onde decorriam normalmente as Assembleias Magnas. Pouco depois a polícia também aí chegou. Estávamos cercados.

Era o fim de tarde. Passaram-se horas. Nas ruas os estudantes manifestaram-se solidários. A polícia carregou, violente-Cerca das quatro da manhã as polícias lideradas pela PIDE invadiram a sede da AAC. Depois, foi o já contei: quartel da GNR na Av. Dias da Silva, de madrugada envio de uma parte dos estudantes aprisionados para Caxias.

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