A Torre,
a “Cabra” e as horas ─ um episódio.
I- Como vos disse na segunda evocação da crise de 1962 feita há dias atrás, a Assembleia Magna tinha achado insuficiente o que a mediação dos professores tinha arrancado às autoridades, no decurso do processo negocial para o qual tinham sido mandatos pelos estudantes e que os tinha levado a sair voluntariamente da sede da AAC ( Palácio dos Grilos) onde estavam cercados pela polícia de choque .
Essa Assembleia Magna, reunida no Campo de Santa Cruz , uma vez que estava
encerrada a sede da AAC no Palácio dos Grilos, rejeitou por isso a proposta da
comissão de professores.
Como vos disse, o corolário natural
dessa rejeição seria o regresso à sede
da AAC, donde só tínhamos saído para permitir essa negociação. Falhada a
negociação, haveria que voltar ao Palácio dos Grilos. Mas se tal fosse votado
expressamente no Campo de Santa Cruz, quando chegássemos ao Palácio dos Grilos
já lá estaria a polícia e não conseguiríamos entrar. Por isso, a decisão não
foi formalmente tomada na Ass. Magna, tendo apenas sido passada a palavra de que
iríamos até ao Pátio da Universidade.
Por isso, apenas um pequeno grupo foi informado da razão dessa ida. Umas centenas de estudantes deslocaram-se assim até lá. Haviam sido distribuídas tarefas pela Direcção-Geral. A mim, aos irmãos Luís e Pedro Lemos e a mais alguns, cabia-nos promover o arrombamento da Torre da Universidade para fazer tocar a "cabra".
Ao Xico Delgado
coube um papel crucial de que então vos
falei.. Chegados ao Pátio da Universidade era preciso dar o passo seguinte: ir
para a sede da AAC, entrar arrombando a porta e reocupá-la. Mas alguém tinha
que o propor. Foi essa a missão do Xico Delgado. Subindo alguns degraus
da escada que desce da Via Latina para a Porta Férrea, perante algumas centenas
de estudantes, em breves palavras, incisivas e cortantes, como a ocasião
exigia, apelou a que regressássemos à sede da AAC. Assim aconteceu. Era perto.
A polícia não podia chegar antes de nós. Não chegou. Entrou-se pela
Filantrópica. Menos de uma hora depois o Palácio dos Grilos estava
completamente cercado pela polícia de choque.
II- A isto, de que já vos falei,
acrescento hoje uns detalhes de que me lembrei. Um episódio talvez não muito
glorioso, mas que a esta distância podemos encarar com bonomia e com o
tradicional e saudável humor coimbrão.
Correspondendo ao apelo do Xico
Delgado, as centenas de estudantes que iam engrossando deslocaram-se para a
sede da AAC nos Grilos. Estando a sede fechada, entraram através da
Filantrópica que tinha ligação à AAC. Mas um pequeno grupo de estudantes ficou
no Pátio da Universidade para arrombar a porta da Torre e ir fazer tocar a "cabra", repetindo assim o que havia sido feito, quando alguns dias antes tinha
ocorrido o primeiro cerco policial da AAC numa manhã agitada com aulas a
decorrer.
Feita uma primeira tentativa,
verificou-se que desta vez a porta estava escorada por fortes suportes consolidados; o que
tornava difícil, ou mesmo impossível, o arrombamento pelos meios correntes.
Acontece que estavam a decorrer obras numa qualquer dependência próxima da
Universidade, havendo ali perto materiais de construção e uma grande trave de
alguns metros de comprimento e uma envergadura apreciável. Talvez estimulado
pela memória dos filmes de “ índios e cow-boys” houve quem tivesse a ideia
salvadora. E assim cerca de uma dezena dos estudantes presentes pegou na trave,
tomou balanço, renunciou aos esperados “gritos selvagens” e arremeteu
decididamente contra a porta da Torre. Estranhamente a porta resistiu. Dois
grossos barrotes cruzados e bem escorados impediam o êxito. Mas se a porta não
cedia, talvez não resistisse inteira a novas investidas. E assim foi feito. Uma,
duas, três, quatro vezes a malta tomou balanço e arremeteu. Os barrotes
cruzados não cederam, mas a porta ficou desfeita e através dos barrotes
cruzados conseguiu passar-se.
Na minha memória, ficou sedimentada
uma lembrança difusa do papel liderante que teve nesse “assalto” o Zé Baptista,
então estagiário de Medicina, com o qual viria a partilhar , comigo e com outros, pouco depois durante
alguns dias uma cela no reduto norte do Forte de Caxias.
Entretanto, ao procuraram-se outras
vias de acesso à Torre, tinha-se tentado usar um postigo situado perto da Via Latina, mas que permitia a passagem através dele de alguém elegante. Estando eu no fundo
da escada e vendo na Via Latina um estudante com ar de quem estava ali para o
que fosse preciso, instei-o a rebentar com o postigo para se poder passar através
dele. Num ápice, foi o que aconteceu. A minha “ordem” foi obedecida. Mas as
autoridades tinham-se precavido: tinham tapado o postigo com tijolos. Só restava
o arrombamento. Anos mais tarde , em 1968, à beira de uma nova crise, numa reunião
da Comissão Pró-Eleições da qual ambos fazíamos parte, o Carlos Baptista perguntou-me
se eu sabia a quem tinha mandado
rebentar com o postigo naquele dia de Abril de 1962. Tinha sido a ele, então
ainda estudante do Liceu. Criatividade da história, teimosia na resistência,
acaso.
Recordo: dois resistentes, um Zé e um
Carlos, unidos por um mesmo apelido [Baptista], talvez nem se conhecendo um ao
outro, um estudante do Liceu e um estagiário de Medicina, envolvidos numa mesma
revolta. Um pequeno passo mais no caminho para uma respiração livre a que
chegaríamos uma dúzia de anos depois.
Voltemos ao pátio da Universidade. Não
me recordo de quem subiu à torre para ir
tocar a “cabra”. Esperámos ansiosos para ouvir o desejado e simbólico som .
Porém, com espanto e desilusão apenas ouvimos tocar desregradamente o modesto
som das horas no relógio da torre. Ao estudante que subiu à torre escapara um pequeno detalhe: como se fazia tocar a “cabra”. E assim se frustrou
esse rebate de aviso de que algo se passava na Academia.
Saímos rapidamente pela porta férrea,
antes que a polícia colmatasse a pequena omissão de a não ter guardado. Cortámos à direita, pelo
caminho que separa os Gerais da Faculdade de Letras, como fora programado. Desse
modo chegava-se às traseiras do Palácio dos Grilos ( então sede da AAC). Aí uma
escada amovível permitiu-nos descer até ao pátio onde decorriam normalmente as
Assembleias Magnas. Pouco depois a polícia também aí chegou. Estávamos cercados.
Era o fim de tarde. Passaram-se horas. Nas ruas os estudantes manifestaram-se solidários. A polícia carregou, violente-Cerca das quatro da manhã as polícias lideradas pela PIDE invadiram a sede da AAC. Depois, foi o já contei: quartel da GNR na Av. Dias da Silva, de madrugada envio de uma parte dos estudantes aprisionados para Caxias.
Sem comentários:
Enviar um comentário