domingo, 28 de março de 2021

Evocando a Crise Académica de 1962 na sua dimensão coimbrã


 Evocando a Crise Académica de 1962                                              na sua dimensão coimbrã

I. Algumas memórias da crise de 1962 evocadas recentemente no FB pela Teresa Rola, pelo Lopes Dias e pelo Correia Pinto, em torno de algumas das suas sequelas, levaram-me a trazer à superfície três ressonâncias desse confronto. Ainda que uma delas repita parte do que recentemente aqui escrevi.

Vou assim transcrever tês Anexos que incluí no meu livro, publicado em 2016, sobre a crise de Coimbra de 1969 , “Abril antes de Abril”; todos eles sobre a crise de 1962. São eles:

 Anexo nº 3 - Estudantes expulsos na crise académica de 1962.

  Anexo nº 4 - Estudantes presos em Coimbra pela PIDE na crise    académica de 1962.

  Anexo nº 5 -Uma viagem atribulada durante a crise académica de 1962.

Vou publicá-los separadamente para serem mais digeríveis. Hoje, começo pelo nº3, o que envolve em grande parte uma repetição. Mas no fim vou acrescentar-lhe uma pequena história que está adormecida desde então, ocorrida no gabinete da direção-geral da AAC em 1962, ainda  no velho  Palácio dos Grilos.

 

II -Anexo nº 3

- Estudantes expulsos na crise académica de 1962.

 

1. Como resposta à Crise Académica de 1962, o poder salazarista expulsou das Universidades de Coimbra e Lisboa (julgo que não houve expulsões do Porto) largas dezenas de estudantes. Alguns foram expulsos de todas as Universidades portuguesas, outros apenas da Universidade que frequentavam. Socorrendo-me de um documento, difundido em Maio de 1962, que me foi enviado pelo Marcelo Correia Ribeiro, o qual coincide quase por completo com outro que tinha em meu poder, consegui reconstituir a lista dos estudantes expulsos de Coimbra. Eis o essencial do referido documento:

 “ Por decisão ministerial foram punidos os colegas:

1º - Acusados de organizarem o I Encontro Nacional de Estudantes, cuja responsabilidade a Assembleia Magna da Academia assumiu:

 a) Com dois anos de exclusão de frequência de todas as escolas nacionais: José Augusto Rocha (dir. geral da aac); Margarida Lucas (dir. geral da aac); Francisco Leal Paiva (dir. geral da aac e república dos galifões); David Rebelo (dir. geral da aac); Eduardo Soeiro (dir. geral da aac e república dos pinguyns);

b) Com dezoito meses de exclusão de frequência de todas as escolas nacionais: António Taborda (dir. geral da aac); José Sumavielle (dir. geral da aac).

 

2º- Acusado de “ser de certo modo, mentor da consciencialização coletiva” (sic): Com dois anos de exclusão de frequência de todas as escolas nacionais: Francisco Delgado (CITAC).

3º- Acusados de perturbar o funcionamento duma aula (1º assalto da polícia de Choque à Associação Académica):

a) Com um ano de exclusão de frequência de todas as escolas nacionais: Luís Filipe Madeira (República dos Kágados e Comissão da Queima de 62);

b) Com seis meses de exclusão de frequência da Universidade de Coimbra: José Luís Nunes (Centro de Estudos Filosóficos); Parcídio Sumavielle (Via Latina).

4º- Acusados de colaborarem na entrada para a Torre, quando do primeiro assalto da Polícia de Choque à Associação Académica:

a) Com trinta meses de exclusão de frequência da Universidade de Coimbra: António Carvalho; Mário Brochado Coelho (Direcção do CITAC); Maria Fernanda Dias (Dir. Geral da AAC de 1960/61) ;

 b) Com dois anos de exclusão da frequência da Universidade de Coimbra: Alberto Mendonça Neves (República do Prakyistão); António de Sousa Almeida (Secção de Judo); Luís Lemos (Secção de Atletismo).

5º- Acusados de assinarem uma moção na Assembleia Magna da AAC que pedia um voto de censura ao Reitor da Universidade e a sua demissão:

a) Com dois anos de exclusão da frequência da Universidade de Coimbra: Albano Serra Pina; Alfredo Estrela Esteves (Via Latina); António Lameiras de Figueiredo (República do Prakyistão);Carlos Alberto Furtado (República do Prakyistão); Eduardo Casais; João Bilhau; João Quintela; Jorge de Sousa Rocha (República do Prakyistão); Manuel da Silva Ventura (Secção Social); Maria Fernanda Granado; Rui Namorado (Via Latina); Rui Neves;

 b) Com um ano de exclusão da frequência da Universidade de Coimbra: António Machado Vaz (República do Bamus ó Bira); José Macedo Cruz; Vladimiro Pereira Mateus.

6º- Acusado de emprestar a capa e hasteá-la na Torre, quando ocorreu o segundo assalto da Polícia: Com um ano de exclusão da frequência da Universidade de Coimbra: José Luís Santos Lima (Secção Social ).

7º- Acusado de subir à Torre, quando ocorreu o segundo assalto da Polícia: Com um ano de exclusão da frequência da Universidade de Coimbra: José Luís Morais Alçada.

No texto que me enviou Marcelo Correia Ribeiro presta dois esclarecimentos: 1º- No momento em que o comunicado foi divulgado a Associação Académica de Coimbra estava fechada compulsivamente no rescaldo da crise. A própria assinatura do comunicado sugere que não havia em funções órgãos académicos legais. É possível que não se mencionem alguns nomes por lapso. De facto, no próprio exemplar do comunicado que conservo há três nomes manuscritos que não constavam da versão publicada.; 2º - “Depois de ter escrito o que está para trás, lembrei-me de consultar de Álvaro Garrido, o livro “Movimento estudantil e crise do estado Novo” (pag.214) (Minerva Editora, Coimbra). Os nomes dos expulsos coincidem. No entanto, devem ser-lhe acrescentados mais alguns, cuja expulsão foi decretada apenas em Agosto de 1962.” Ei-los: Alberto Rui Pereira; César Oliveira (República do Prakyistão); António da Silva Coelho; Joaquim Tomé; Simão Santiago.

 

2. No documento assinado por “Estudantes de Coimbra”, copiografado e clandestino, estava escrito em letras garrafais: “HOJE, ÀS 15 HORAS UMA COMISSÃO AVISTAR-SE-Á COM AS AUTORIDADES UNIVERSITÁRIAS NA REITORIA”.

Este aviso fez-me recordar o que aconteceu nesse avistamento. De facto, eu integrei o grupo de estudantes expulsos que acorreram à entrevista com o Reitor, Guilherme Braga da Cruz. Foi uma surpresa ela ter sido concedida, pois vinha ao arrepio do que era o comportamento padrão das autoridades académicas.

Provavelmente, o Reitor convenceu-se que os estudantes iam proceder a um qualquer tipo da “abaixamento de bandeiras”. Enganou-se. Os cerca de quinze estudantes presentes, onde um ou outro nem sequer fora expulso, iam protestar. O Reitor pareceu apanhado de surpresa. Perante o facto de alguns deles terem protestado veementemente contra a dureza dos castigos, titubeou : “O Senado aprovou os castigos por unanimidade! “ Nunca me esqueci do que eu próprio lhe respondi : “Se assim foi, então o Senado manchou a honra da Universidade de Coimbra”. Entretanto, alguns dos presentes pura e simplesmente começaram a fazer galhofa e uma algazarra de gozo. Mas antes que o Reitor desse apressadamente por finda a entrevista, houve ainda tempo de António Ferreira Guedes, que aliás nem havia sido expulso, lhe ter dito: “ Se por uma viragem da história, de réus que hoje somos, passarmos a juízes, não sabemos o que poderá acontecer!”

 

3.Não dispunha de qualquer documento que mencionasse os estudantes expulsos  de Lisboa.  No entanto, em fevereiro de 2012 evoquei no meu blog, “O grande zoo”, a crise académica de 1962,tendo falado nos estudantes de Coimbra então expulsos da Universidade. Mencionei também alguns nomes de que me recordei entre os estudantes de Lisboa também expulsos.

A atenção vigilante do Artur Pinto levou-o a colmatar a minha lacuna de memória, enviando-me para o meu blog um comentário ao referido texto, do qual constavam os nomes dos estudantes de Lisboa então expulsos.       Vou transcrever na íntegra esse comentário:

"Meu caro, aqui vai a lista dos expulsos de Lisboa com alguns exemplos das razões da expulsão.

Abílio Teixeira Mendes, António Correia de Campos, António da Conceição Bento, António da Cruz Rato, António Montez, António Rego Chaves, António Ribeiro, Augusto José Amorim, Eugénio Pinto Basto, Eurico Figueiredo, Isabel Vila Maior, João Carlos Passos Valente, João de Freitas Rego Santos, José Emílio Calvário José Garibaldi, José Luís Boaventura, José Marques Felismino, Manuel da Silva Tavares, Manuel Valentim Alexandre, Mário Sotto-Mayor Cardia, Nuno Brederode Santos.


Abílio Teixeira Mendes: expulso por trinta meses da UL por ter sido um dos dirigentes associativos da academia de Lisboa que maior atividade desenvolveu no movimento estudantil de 1962 e “por ter comparecido na maioria dos plenários feitos em Lisboa, incitando sempre a massa académica à luta”.
António Manuel Dias da Conceição Bento: expulso por trinta meses por ser um dos alunos encontrados nas instalações da UL na evacuação feita pela PSP durante a greve de fome e por ser um dos responsáveis pelo movimento de 1962.
Augusto José Carvalho de Amorim: expulso por trinta meses da UL por ter sido identificado pela PSP a 3 de Dezembro de 1961 enquanto tomava parte numa manifestação hostil na inauguração da Reitoria da UL, por ter participado na greve da fome e por ser um dos responsáveis pela agitação de 1962.
Eugénio Barata Pinto Basto: expulso por trinta meses da UL por ter participado na manifestação de hostilidade levada a efeito a 31 de Dezembro de 1961 por vários estudantes da UL na inauguração da Reitoria em frente do Presidente da República e por ter sucessivamente aderido à greve de fome".

4.Quando, em 2012, publiquei no meu blog (“ O Grande Zoo”), a lista dos expulsos da Universidade de Lisboa acrescentei-lhe o pequeno comentário que vou transcrever:

Repito o que disse ontem, a propósito dos nomes dos estudantes de Coimbra expulsos:  é uma grande honra estar nestas listas. O fascismo certificou-nos para sempre como seus inimigos. Julgando que nos esmagava, elevou-nos. É a subtil ironia da História. Mas esta honra só é na verdade imensa, porque não estamos nelas a título individual. Estamos nelas, em nome de todos. Fomos nós, podiam ter sido outros. Por isso, sendo umas dezenas, sentimo-nos como se fossemos milhares”.

______________________

Eis o acrescento prometido:

 

Em comentário recente no FB, alguém mencionou o excesso de uma expulsão por dois anos para sancionar  os que apenas foram acusados “ de assinarem uma moção na Assembleia Magna da AAC que pedia um voto de censura ao Reitor da Universidade e a sua demissão”. 

Os vários estudantes submetidos aos processos disciplinares que precederam as expulsões foram ouvidos num inquérito disciplinar de que foi instrutor um assistente da Faculdade de Direito. Reuniram-se previamente para concertarem uma estratégia comum. Quando foram inquiridos a AAC já estava fechada e as Assembleias Magnas proibidas.

A posição de princípio acordada foi a de nos recusarmos a dar qualquer resposta que implicasse revelar ou comentar factos ocorridos na Assembleia Magna. Alegámos que sendo a Associação Académica autónoma e a Assembleia Magna o seu órgão supremo só podíamos responder a perguntas sobre o que se lá tinha passado se ela nos desse expressa autorização para isso. Não se tratava de nos recusarmos a prestar declarações. Tratava-se de respeitar o órgão máximo da Academia, aliás então impedido de se reunir.

A quase totalidade dos estudantes envolvidos na questão específica da moção de censura ao Reitor que pedia a sua demissão seguiu fielmente o guião. Exceção para os que disseram que não se lembravam ou não sabiam, já que essa resposta foi considerada como não sendo uma recusa ( que viram a punição reduzida a metade).

O mesmo aconteceu com o A. M. Vaz que cedeu à pressão do inquiridor e, ao que nos disse, numa segunda ida ao inquiridor acabou por prestar as declarações pretendidas, ainda que não tivesse prejudicado ninguém. No entanto, comunicou-nos que mais grave do que termos pedido a demissão e proposto a censura do Reitor era a nossa recusa em prestar declarações. Trazia-nos o recado que não tínhamos que dizer nada, podíamos dizer que não nos lembrávamos  que não sabíamos o que não podíamos era manter a recusa formal de prestar declarações sobre o que se passara na Assembleia Magna sem o seu consentimento. De facto, lembro-me bem que cada um de nós apenas reconheceu ser sua a assinatura que subscreveu a moção, uma vez que isso era um dado de facto, uma responsabilidade a que não pretendíamos do modo algum fugir com a nossa recusa. Como não fui o primeiro a ser interrogado, o inquiridor nem insistiu tudo tendo decorrido celeremente.

Eventualmente frustrado pelo valor simbólico da nossa recusa, radicada numa assunção prática da autonomia da nossa Associação, o inquiridor tentou amolecer-nos nos termos acima referidos. E deve sublinhar-se que não havia um padrão conhecido da medida das sanções disciplinares. Podiam ser dias , meses, anos, de exclusão de uma ou de várias Universidades. Naquele momento não sabíamos. Por isso, ignorávamos em que medida a nossa recusa iria agravar a sanção disciplinar que nos iria ser aplicada. A. M. Vaz preconizou o recuo que ele próprio já teria posto em prática.

Logo de início, alguns de nós ( entre os quais eu também) avisámos que  se a maioria optasse por ceder à proposta do inquiridor, nós não acataríamos a vontade da maioria e manteríamos a recusa. Não foi preciso. Só o A.M. Vaz defendeu a cedência que talvez já tivesse posto em prática por decisão isolada. Quando foram publicadas as sanções, verificámos que a recua tinha feito duplicar a medida do castigo que nos foi aplicado . Fomos expulsos por dois anos da Universidade de Coimbra, o que se traduziu de imediato na perda do ano, daquele ano.

Insisto: esse castigo só me honrou, tal como só pode ter envergonhado os autores da decisão que os aplicou que ocupavam ,certamente sem o merecer, o Senado da Universidade de Coimbra

Sem comentários: