quinta-feira, 20 de junho de 2013

ADEUS, OSVALDO.

Esta homenagem ao Osvaldo Castro é como dar-lhe um abraço. Agora que isso já não é possível. Mas é também uma saudade funda dos futuros que imaginámos, quando nos sentámos numa  e noutra "república" a tecer os improváveis fios de resistência que estavam ao nosso alcance. Foi desde Janeiro de de 1968. Semana após semana, ao longo de muitos meses. Como se podem esquecer as horas sem fim em que os argumentos se esgrimiam com energia mas sem acrimónia, com subtileza e alegria. Tu e eu, mais o Jorge Aguiar que te precedeu na viagem, o Celso Cruzeiro, o Jorge Strecht, o Carlos Baptista, o Pio Abreu. As estruturas democráticas dos estudantes encarregaram essa  Comissão (CPE) de liderar a conquista de eleições na Associação Académica. Conseguiu-se.Logo a seguir, tu e o Celso,integraram a direcção que liderou a Academia de Coimbra no decorrer da crise de 1969. Esse passado sempre se inscreveu poderosamente no nosso futuro, mesmo que cada um de nós o interpretasse à sua maneira. De algum modo, deixas agora uma parte dos teus sonhos nas nossas mãos. Cada um de nós encontrará o seu modo pessoal de te ser fiel. No coração dos teus, a tua saudade renascerá todos os dias.O mesmo acontecerá com todos nós, não só os da CPE, mas também todos aqueles que nesses anos de luta te sentiram sempre como incansável fonte de energia que empurrava para diante; discreto, sereno, sem descanso.


ADEUS, OSVALDO.

O tempo desabou sobre o teu nome
e o passado ocupou-te rudemente.

Um violento nó foi apertado
no coração mais triste da memória.

A tua ausência rasga-nos por dentro
como se toda a lembrança fosse dor.

Agora és a semente libertada
nas avenidas lentas do futuro.

Não chega !

É todo  o teu presente que nos falta
o sabermos que estavas nalgum lado.

Essa espera tranquila que sabia
ir ouvir-te de novo e abraçar-te.

É nova esta saudade e já sem fim,
fica agora connosco o teu futuro.

[Rui  Namorado]

sexta-feira, 14 de junho de 2013

SE ISTO NÃO É UM ROUBO, O QUE É?

O Governo ameaça cortar retroativamente parte daquilo que recebem os aposentados da CGA, em termos definitivos. Os senhores da troika incitam-nos a isso. Todos eles e os respetivos “cães de guarda” que os apoiam dissertam solenemente sobre o evento como se tudo não passasse de um ajustamento de números objetivamente necessário; e, ainda por cima, coincidente com uma vaga equidade, sempre alegada e nunca demonstrada. Na realidade, essa fria operação económica é a máscara de um simples roubo, tão real como o seria  se alguém entrasse em nossa casa e nos furtasse uma soma de dinheiro vivo de uma gaveta.
Na verdade, em cada mês, quando recebíamos o nosso salário, ele não nos era pago por completo, já que  uma parte dele era retida para que mais tarde recebêssemos  uma pensão de reforma. Poderíamos ter recebido o salário completo e afetar uma parte dele a esse objetivo , por exemplo através de uma mutualidade, mas não foi assim. Foi-nos imposto que as coisas se passassem nos termos em que se passaram. Não nos foi dada outra opção.
Deve, no entanto, recordar-se que, quando acordámos prestar o nosso trabalho, tendo o Estado como patrão, fizemo-lo dentro de regras previamente conhecidas, que aliás foram por ele fixadas. Esse contrato de trabalho público implicou que cada um de nós assumiu um conjunto de obrigações laborais com a contrapartida de um salário. Salário esse desdobrado entre o que se recebia e o que se deixava à guarda do Estado, no pressuposto de que nos era garantida uma pensão de reforma calculada, de acordo com regras objetivamente determinadas e desde logo conhecidas. Aceitámos prestar um determinado trabalho ao Estado no pressuposto de que a contrapartida seria a que referi: uma  parte em salários diretos, outra parte em salários diferidos , traduzidos num certo tipo de direito a uma pensão e a outras regalias sociais menores ,expressamente consignadas. Se as contrapartidas fossem outras, mais fracas, talvez tivéssemos  optado por outro caminho, não tendo sido funcionários públicos, ou não tendo  ficado em Portugal.
Portanto, qualquer corte retroativo nas pensões de reforma dos funcionários públicos é um grosseiro rompimento de um contrato protagonizado por uma entidade, que no âmbito de outras funções suas, é também garante da legalidade e, portanto, do cumprimento dos contratos livremente celebrados, como foi o caso. Assim, no plano da moral e de uma ética republicana (a ética republicana impõe-se, naturalmente, em primeiro lugar às instituições da República), um corte retroativo em pensões de reforma, seja de trabalhadores do setor público ou do setor privado, é completamente ilegítimo. Simplesmente, enquanto no setor privado o Estado atua como um terceiro, teoricamente imparcial, que, podendo errar, não decide em causa própria, no setor público assume uma dupla veste que lhe dá um poder de disposição absoluto, podendo torná-lo  beneficiário direto de alguns dos seus próprios erros, como é o caso.
O esbulho em causa não é essencialmente diferente de uma hipotética ocorrência que se traduzisse na possibilidade de um vendedor de um prédio vir exigir, dez anos depois da venda, um paghamento de mais dez por cento, além do que já tinha recebido, em virtude de uma qualquer conveniência sua; ou de um patrão vir exigir a um seu antigo trabalhador a devolução de dez por cento dos salários que lhe havia pago há dez anos atrás. Hipóteses escandalosamente eivadas de arbítrio, reflexos  de uma autêntica barbárie social.
Mas esta realidade é algo que não gostam que se perceba, pelo que procuram ocultá-la com algumas  cortinsa jurídicas, mais ou menos sofisticadas, cbem como com algumas carradas de propaganda economicista travestida de ciência. Temos que desocultá-la para que seja completamente claro o grau de indecência que a impregna.
Como é ao Estado que compete a tipificação criminal, estas proezas não são tipificadas como crimes em termos inequívocos. Os almofadinhas da troika não são perseguidos por formação de quadrilha, nem são tratados como delegados de uma qualquer internacional mafiosa. Mas do ponto de vista moral estão muito mais  próximos  das associações de malfeitores do que da ética republicana.
Por isso, as razões para um alarme democrático crescem, de dia para dia. Resiste a zona nobre da legalidade democrática que nem os alucinados governantes nem os mastins internacionais podem destruir, a Constituição da República. Por isso, as hostes sombrias do conservadorismo capitalista mais retrógrado tanto se assanham contra ela.
Há, no entanto, que dizer que o caminho seguido, quando se tentam esbulhos como os que estamos a referir, além de ofender claramente, pelo menos, os valores políticos e éticos plasmados no texto constitucional, atinge o cerne do Estado democrático e desce abaixo dos limiares menos exigentes da moralidade pública.
E para tornar tudo isto mais absurdo e mais grave, insiste-se num caminho cuja viabilidade objetiva já começou a ser  recusada por muitos dos seus arautos de ontem; caminho, cujo acerto ninguém consegue já sustentar sem correr o risco de cair no ridículo.Ou seja, insistem em consumar um assalto, que faz parte de uma estratégia que até os próprios já reconhecem como errada.
Por isso, é  legítimo que se receie que o poder político nacional e europeu, para além de reacionário e retrógrado, verdadeiro caniche do grande capital financeiro, seja também um poder desbussolado  que se aproxima perigosamente do cretinismo próprio dos pobres de espírito.

terça-feira, 4 de junho de 2013

DESIGUALDADE E CRESCIMENTO



A bárbara agressão,  contra os trabalhadores, a classe média e os excluídos, perpetrada pelo neoliberalismo,  por intermédio do capital financeiro e dos seus sequazes, tem procurado buscar alguma legitimidade, alegando estar a seguir os ditames de uma infalível ciência económica, objectiva e neutra. Obedecer ao que é de facto um verdadeiro esoterismo numerológico seria afinal garantir, a longo prazo, a melhor solução; que, pela sua exclusiva conformidade com a ciência, seria afinal a única possível. O breve texto que a seguir transcrevo contribui muito para desmontar  essa mistificação. Por isso, as instâncias  de poder do capitalismo financeiro internacional podem ainda reproduzir como autómatos as vulgatas ideológicas do neoliberalismo; mas fazem-no já como espectros de uma ideologia que a realidade tornou  obsoleta. 

Desta vez, achei que devia traduzir o referido texto, para que todos o possam ler sem serem embaraçados pela  barreira da língua. O texto foi publicado no jornal italiano  Repubblica (31 de  maio de 2013), sendo seu autor o jornalista Roberto Petrini . Trata-se de um comentário a uma recente descoberta do economista norte-americano Joseph Stiglitz, nome sobejamente conhecido que se tem imposto pelo rigor e desassombro crítico. O título alerta-nos desde logo :"A desigualdade mata o crescimento: eis a demonstração de Stiglitz". E acrescenta-se  de imediato:
"Com o teorema de Stiglitz foi infligido outro duro golpe à ortodoxia neoliberal dominante nos tempos da grande crise: se o índice de Gini ( ou seja, o indicador que mede a desigualdade) aumenta, o “multiplicador” dos investimentos diminui e assim o PIB abranda. Eis porque razão".
Segue-se depois o texto:


"É a desigualdade o verdadeiro “killer” do PIB. Nos países onde os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres o produto interno bruto marca passo e às vezes cai. Nas nações onde existe uma grande “middle class” , pelo contrário, a prosperidade aumenta. O Prémio Nobel Joseph Stiglitz rompe com as demoras  e formaliza num verdadeiro teorema, como ele próprio o define, a síntese dos estudos que dirige há anos.

A ocasião para serem apresentados os extraordinários resultados da investigação de Stiglitz, numa espécie de antestreia mundial, é a convenção organizada em roma pela SIEDS ( la Società italiana di economia, demografia e statistica), iniciado ontem (30 de maio de 2103), onde o Prémio Nobel enviará as considerações conclusivas, escritas a quatro mãos com o seu próximo colaborador italiano da Università Politecnica delle Marche, Mauro Gallegati.
Assim o “mainstream” é posto a um canto. O teorema é claro e luminoso como uma fórmula química ou um relação física: se índice de Gini ( ou seja, o indicador de desigualdade inventado por um economista italiano, Corrado Gini) aumenta, logo aumenta a desigualdade, o “multiplicador” dos investimentos diminui e portanto o PIB trava.
A equação de Stiglitz arrisca-se a ser o terceiro golpe nas posições da teoria económica dominante agora vacilante. O primeiro, dado há alguns meses, foi aquele que pôs em causa o 2dogma2da austeridade: o FMI na verdade calculou que o corte do deficit num ponto percentual reduz o PIB em dois e não apenas  ̶  como se cria até hoje  ̶  em meio ponto percentual. O outro golpe desajeitado foi aquele que desmontou, desmascarando um erro “Excel”, a teoria da dívida de Rogoff e Reinhard, segundo a qual para além dos 90 por cento na sua relação com o PIB ela levaria inevitavelmente à recessão.


Mas o novo assalto de Stiglitz arrisca-se a ser ainda mais perigoso para as teses do “status” económico. A desigualdade, de facto para o Prémio Nobel, fere profundamente o PIB, não só através da queda dos consumos mas também porque o sistema é “ineficiente” se prevalecem rendas e monopólios. “Frequentemente a caça ás rendas  ̶ concluem Stiglitz e Gallegati  ̶  comporta um verdadeiro esbanjamento de recursos que reduz a produtividade e o bem-estar do país”.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

COMPREENDER O NEOLIBERALISMO.

Uma vez mais, recorro ao site da excelente revista brasileira de grande circulação CartaCapital. Hoje, vou transcrever um texto de Luiz Gonzaga Belluzzo, um reputado  economista e universitário brasileiro, que colabora regularmente na revista em causa. O tema é sugestivo : Foucault e o neoliberalismo. Numa curta frase destacada como apoio do título diz-se: “O filósofo francês, um dos pensadores mais fecundos do século XX, não era economista. Talvez por isso entendeu com maior profundidade o neoliberalismo.” Eis o texto:


“O mundo se abriu para o novo milênio dominado por certezas que hoje se desmancham sob a ação demolidora da crise financeira. A ideologia neoliberal, quase sem resistências, tentou demonstrar que, com a queda do Muro de Berlim, o espaço político e econômico tornou-se mais homogêneo, menos conflitivo, com a concordância a respeito das tendências da economia e das sociedades. Não há mais razão, diziam, para se colocar em discussão questões anacrônicas, como a reprodução das desigualdades ou as tendências dos mercados a sair dos trilhos, frequentemente destrambelhados pelos excessos nascidos de suas engrenagens.
Após a crise, os porta-vozes desse quase consenso, economistas e que tais, recolheram-se ao silêncio. Passado o vendaval que ajudaram a semear, já agarrados aos salva-vidas lançados pela famigerada intervenção dos governos, entregaram-se a tortuosas e acrobáticas manobras para justificar suas convicções.
Michel Foucault, um dos pensadores mais fecundos do século XX, não é economista. Talvez por isso tenha compreendido com maior abrangência e profundidade o significado do neoliberalismo. Contrariamente ao que imaginam detratores e adeptos, diz ele, o neoliberalismo é uma “prática de governo” na sociedade contemporânea. O credo neoliberal não pretende suprimir a ação do Estado, mas, sim, “introduzir a regulação do mercado como princípio regulador da sociedade”.
Foucault dá importância secundária à hipótese mais óbvia sobre a arte neoliberal de governar, a que afirma a imposição do predomínio das formas mercantis sobre o conjunto das relações sociais. Para o filósofo, “a sociedade regulada com base no mercado em que pensam os neoliberais é uma sociedade em que o princípio regulador não é tanto a troca de mercadorias quanto os mecanismos da concorrência... Trata-se de fazer do mercado, da concorrência, e, por consequência, da empresa, o que poderímos chamar de ‘poder enformador da sociedade’”.
As transformações ocorridas nas últimas décadas deram origem a fenômenos correlacionados que não se coadunam com os princípios do liberalismo clássico e sua imaginária concorrência perfeita protagonizada por um enxame de pequenas empresas sem poder de mercado.
A nova concorrência louvada pelos neoliberais admite a “centralização” da propriedade e o controle dos blocos de capital. O processo se deu pela escalada dos negócios de fusões e aquisições, alentada pela forte capitalização das bolsas de valores nos anos 80, 90 e 2000, a despeito de episódios de “ajustamento de preços”. A “terceirização” das funções não essenciais à operação do core business aprofundou a divisão social do trabalho e propiciou a especialização e os ganhos de eficiência microeconômica, além de avanços na produtividade social do trabalho.
A grande empresa que se lança às incertezas da concorrência global necessita cada vez mais do apoio de condições institucionais e legais – sobretudo na derrogação das regras de proteção aos trabalhadores – que a habilitem à disputa com os rivais em seu próprio mercado e em outras regiões.
Elas dependem do apoio e da influência política de seus Estados Nacionais para penetrar em terceiros mercados (acordos de garantia de investimentos, patentes etc.), não podem prescindir do financiamento público para exportar nos setores mais dinâmicos, não devem ser oneradas com encargos tributários excessivos e correm o risco de serem deslocadas pela concorrência sem o benefício dos sistemas nacionais de educação e de ciência e tecnologia.
Tanto a “nova ordem mundial” como a sua crise foram construídas e deflagradas no jogo estratégico disputado entre as empresas globais e seus respectivos Estados. Esse fenômeno político-econômico envolveu os protagonistas relevantes da cena global: os Estados Unidos, apoiados em sua liderança financeira e monetária, e a China, ancorada em sua crescente superioridade manufatureira.
A superação da crise atual não depende apenas da ação competente dos Tesouros Nacionais e dos Bancos Centrais, mas supõe um delicado rearranjo das relações políticas e concorrenciais que sustentaram o modelo sino-americano. Parece que não é fácil.


domingo, 2 de junho de 2013

O DENTE




Há um dente que morde no princípio da vida.
É um dente estragado, sem afago nem sonho.

Há um dente que morde nas manhãs mais abertas.
É um dente gerido, lucrativo, manhoso.

Há um dente que morde no trabalho e na esperança.
É um dente cotado, nas mais sólidas bolsas.

Há um dente que morde no longínquo futuro.
É um dente dourado, quase podre de rico.

Há um dente que morde nas palavras mais livres.
É um dente esculpido com rigor na mentira.

Há um dente que morde cada um dos teus filhos.
É um dente sem luz, miserável e lento.

Há um dente que morde no outono das casas,
É um dente sequioso, desbragado, vadio.

Há um dente que morde na mais funda desgraça.
É um dente que cerca , que tritura, que mata.

Há um dente aguçado que mergulha no mundo.
É um dente inventado no ofício mais torpe.

Há um dente que morde a nascente dos sonhos.
É um dente banqueiro, quase ocidental,
que se esconde matreiro na mais funda caverna.

É um dente londrino, quase americano,
Visitante em Berlim, Paris, Singapura.
É um dente de Tóquio, amigo da Sicília,
Passa férias na Suíça ou em Xangai.

É um dente bárbaro que resume a morte,
Um dente que vive por morder.
É um dente tão estranho que ao doer
Dói a quem morde e não a quem o tem.

Olha no espelho da luz que vais perdendo
A marca tão amarga do próprio desespero.

Olha no espelho de toda a tua esperança
A ameaça de inverno em todos nós.
E na página mais branca da justiça,
Escreve imensa a tua própria cólera.

[ Rui  Namorado]