II - Em COIMBRA, a lista talvez do PSD
─ uma duplicidade ambígua
- Rui Namorado
1. Esperei alguns dias que o PSD esclarecesse a aparente incongruência que
envolveu o anúncio solene do nome que
escolheu para encabeçar a sua lista de candidatos à Câmara Municipal de
Coimbra. Não me apercebi de qualquer clarificação subsequente. Dou por isso como fiel a imagem projetada pelo que se
passou.
Rui Rio
deslocou-se pessoalmente a Coimbra para anunciar formal e solenemente na
presença do próprio que “ José Manuel Silva irá encabeçar a lista do PSD” em
Coimbra. Em declarações à comunicação social, feitas imediatamente a seguir e
noticiadas em conjunto com o referido anúncio, o candidato escolhido saudou Rui
Rio e o PSD por "demonstrarem grande abertura à sociedade civil, apoiando
e integrando esta candidatura 'Somos Coimbra'.”.
Uma
pulsão imediatista podia levar-nos a dizer: “um deles mentiu”. Se assim fosse,
estaríamos perante um verdadeiro absurdo. Um dos dois políticos teria atraído o
outro para o enxovalhar irremediavelmente. Não seria decerto o primeiro caso na
cena política mundial, mas não é um tipo de ocorrência frequente. E aquele que
tivesse desferido o golpe corria sérios riscos de ver o episódio virar-se contra
si, depois de ter ferido a outra parte. Aliás, o absurdo seria agravado pelo
facto de os dois protagonistas, subsequentemente, se terem comportado como se
tudo tivesse decorrido com plena normalidade.
Mas se
nenhum deles mentiu e uma vez que disseram coisas entre si contraditórias, o
que significou então tudo isso? Numa versão, JMS encabeça a lista do PSD por
Coimbra, tendo aliás sido anunciado em conjunto com candidatos do PSD a outras
Câmaras Municipais, numa sessão pública ostensivamente partidária. Noutra
versão, o PSD apoia e integra a candidatura independente “Somos Coimbra”. Mistério…
Assim, foi natural que me viesse à memória o
deus romano Janus, um ser mitológico com duas caras, duas cabeças viradas em direções opostas. Esse deus não
surgiu do nada. Nasceu de uma divindade primitiva que não tinha forma, a que
chamavam Caos. Ao ganhar forma tornou-se um ser com duas cabeças, uma olhando
para o passado, outra para o futuro. Caos ─
premonição ou acaso? O risco desta reincarnação longínqua é que, neste caso, o
caos seja menos a ressonância de uma origem do que uma sombra de futuro.
2. Na
verdade, as duas cabeças deste Janus moderno não têm vocação para olhar para
direções opostas: uma para o passado, outra para o futuro. Ambas carregam de
algum modo um passado que lhes entorpece o futuro, ou que pelo menos o
complica.
“Somos Coimbra” na pessoa do seu líder olha para
o passado ciente da sua alegada posição de exterioridade em face de todos os
partidos, do seu apego a mostrar-se bem fora deles, do seu projeto apartidário
para Coimbra com que se apresentaram aos eleitores procurando aliciá-los com
esse distanciamento em face dos partidos (de todos). Vê como a sua
independência foi insuficiente, quer para ganhar a presidência da Câmara em
2017, quer para chegar sequer ao segundo lugar, no qual ficou o PSD. Recorda,
certamente com preocupação, a amputação que sofreu em 2020 de um segmento
relevante dos seus elementos com maior notoriedade, entre os quais alguns eram
figuras públicas de justificado prestígio que , em si próprias, esbatiam fortemente o risco de o movimento “Somos
Coimbra” projetar uma imagem que o
amarrasse inequivocamente à direita.
O PSD de Coimbra, por seu lado, tem certamente
uma memória amarga de 2017, quando uma aposta qualitativa forte na lista
candidata ao município, que apresentou em aliança com o CDS, não foi suficiente
para lhe dar o primeiro lugar. E não poderá deixar de admitir, com razão ou sem
ela, que um contributo importante para a sua derrota lhe foi dado pela
concorrência de “Somos Coimbra”. Mas a névoa mais penosa será certamente a sua
memória próxima da brutal desconsideração política praticada pela direção
nacional do PSD contra as suas estruturas distritais e concelhias, quando sem
cerimónia recusou a escolha que elas haviam feito para liderar a candidatura. Uma
escolha publicamente encorajada por relevantes apoios na respetiva área
política e que aparentemente beneficiava de um sólido apoio dentro do PSD de
Coimbra, concelhio e distrital.
Estas sombras amargas, ressonâncias do passado,
não são certamente uma fonte verosímil de esperança no futuro. E, pela natureza
das coisas, cada uma das duas cabeças de Janus, se não se esquecer da
identidade que tem assumido publicamente, tenderá a não se reconhecer por
completo no futuro desse deus aleatório.
3. Mas
esta duplicidade potencialmente angustiante, no plano subjetivo, para quem a sinta
como sofrimento, para quem caiba no espírito do misterioso deus romano de duas
cabeças, objetivamente, reveste-se neste caso específico de um significado que
a dramatiza, aproximando-a da insuportabilidade. Quem se sentir tentado a votar
nessa opção incerta, por qual das cabeças se deverá sentir motivado? Será essa
duplicidade ambígua um dano colateral de uma via labiríntica, inscrita no seu
código genético, como uma fatalidade não procurada? Ou será uma subtil
esperteza, distante da boa-fé, assente na ambição de se captarem, quer os
decididos apoiantes do PSD e do CDS, quer os seduzidos pelo independentismo político-partidário
do grupo de JMS? Uns, vendo apenas uma das cabeças; outros, apenas a outra.
Este Janus moderno, no entanto, não é um mito que
esvoace pela imaginação como fruto de uma liberdade criativa, que se justifique
a si própria. É um artefacto político que consubstancia uma lista candidata a
umas eleições. Um projeto em concorrência com outros, uma identidade competindo
com outras, uma posição política em confronto com outras. Na verdade, nenhuma
lista tem legitimidade ética para se apresentar com duas caras. A cada eleitor
tem que ser oferecido um rosto para que o compare com os dos outros
concorrentes. Não dois; já que o modo como se comportar se for eleito,
corresponderá a um rosto, não a dois.
4.
Entretanto, esta duplicidade estranha, nada parecendo ter a ver com uma
proposta de horizonte, apostada em contribuir para melhorar a qualidade de vida
dos cidadãos que vivem no nosso município, tudo parece ter a ver com a humana
ambição de Rui Rio vir a liderar em Lisboa o governo do país. Esse ousado e
ambicioso desígnio é certamente legítimo, ainda que atualmente pareça mais
circunscrito à esfera do sonho do que ungido pela aura de uma probabilidade
forte.
Mas não é possível aceitar-se como legítimo que
RR reduza Coimbra a um pacote de conveniências suas para o ostentar como um
simples troféu de uma caçada eleitoral. Um troféu que possa exibir ao lado de
alguns outros, no decurso do que sonha poder vir a ser a glória efémera de uma noite de uma pugna
eleitoral em que a sorte lhe sorria. O
nosso município não pode ser reduzido ao humilde destino de troféu que sirva
para ajudar a salvar uma liderança político-partidária cercada por si própria,
assombrada pela instabilidade interna do PSD e condicionada pelo bloqueio
estratégico que a direita portuguesa no seu todo parece atualmente sofrer. Coimbra
não pode passar pela humilhação de ser um tapete que o ex-Presidente da Câmara
do Porto precisa de pisar, para poder em Lisboa entrar em S. Bento. Esta
pesporrência simbólica tem que ter a resposta que merece.
5.
Estamos pois perante uma ambiguidade política estrutural que só pode ser
desfeita pela retratação clara de uma das partes. Ou o PSD vem publicamente
reconhecer que JMS afinal não vai encabeçar uma lista do PSD mas sim uma candidatura
do movimento “Somos Coimbra”; ou este movimento vem reconhecer que afinal não apresenta uma candidatura própria uma vez
que se vai incorporar na do PSD.
Politicamente, é esta a incontornável dicotomia
que está em cima da mesa. Malabarismos jurídicos ou retóricas habilidosas que
tentem fugir à questão e iludir a lei e a verdade, procurando manter a
ambiguidade atual, serão apenas sinais de um aprofundamento da hipocrisia
política atualmente em marcha.
(Coimbra, 25 de março de 2021)
As próximas eleições
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─ uma duplicidade ambígua [25/03/21]
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