quinta-feira, 25 de março de 2021

As próximas eleições autárquicas em Coimbra -II

 


As próximas eleições autárquicas em Coimbra 

II - Em COIMBRA, a lista talvez do PSD

uma duplicidade ambígua

                                        - Rui Namorado

1. Esperei alguns dias que o PSD esclarecesse a aparente incongruência que envolveu o anúncio solene do nome  que escolheu para encabeçar a sua lista de candidatos à Câmara Municipal de Coimbra. Não me apercebi de qualquer clarificação subsequente. Dou por isso  como fiel a imagem projetada pelo que se passou.

Rui Rio deslocou-se pessoalmente a Coimbra para anunciar formal e solenemente na presença do próprio que “ José Manuel Silva irá encabeçar a lista do PSD” em Coimbra. Em declarações à comunicação social, feitas imediatamente a seguir e noticiadas em conjunto com o referido anúncio, o candidato escolhido saudou Rui Rio e o PSD por "demonstrarem grande abertura à sociedade civil, apoiando e integrando esta candidatura 'Somos Coimbra'.”.

Uma pulsão imediatista podia levar-nos a dizer: “um deles mentiu”. Se assim fosse, estaríamos perante um verdadeiro absurdo. Um dos dois políticos teria atraído o outro para o enxovalhar irremediavelmente. Não seria decerto o primeiro caso na cena política mundial, mas não é um tipo de ocorrência frequente. E aquele que tivesse desferido o golpe corria sérios riscos de ver o episódio virar-se contra si, depois de ter ferido a outra parte. Aliás, o absurdo seria agravado pelo facto de os dois protagonistas, subsequentemente, se terem comportado como se tudo tivesse decorrido com plena normalidade.

Mas se nenhum deles mentiu e uma vez que disseram coisas entre si contraditórias, o que significou então tudo isso? Numa versão, JMS encabeça a lista do PSD por Coimbra, tendo aliás sido anunciado em conjunto com candidatos do PSD a outras Câmaras Municipais, numa sessão pública ostensivamente partidária. Noutra versão, o PSD apoia e integra a candidatura independente “Somos Coimbra”. Mistério…


Assim, foi natural que me viesse à memória o deus romano Janus, um ser mitológico com duas caras, duas cabeças  viradas em direções opostas. Esse deus não surgiu do nada. Nasceu de uma divindade primitiva que não tinha forma, a que chamavam Caos. Ao ganhar forma tornou-se um ser com duas cabeças, uma olhando para o passado, outra para o futuro. Caos ─ premonição ou acaso? O risco desta reincarnação longínqua é que, neste caso, o caos seja menos a ressonância de uma origem do que uma sombra de futuro.

 


2. Na verdade, as duas cabeças deste Janus moderno não têm vocação para olhar para direções opostas: uma para o passado, outra para o futuro. Ambas carregam de algum modo um passado que lhes entorpece o futuro, ou que pelo menos o complica.

“Somos Coimbra” na pessoa do seu líder olha para o passado ciente da sua alegada posição de exterioridade em face de todos os partidos, do seu apego a mostrar-se bem fora deles, do seu projeto apartidário para Coimbra com que se apresentaram aos eleitores procurando aliciá-los com esse distanciamento em face dos partidos (de todos). Vê como a sua independência foi insuficiente, quer para ganhar a presidência da Câmara em 2017, quer para chegar sequer ao segundo lugar, no qual ficou o PSD. Recorda, certamente com preocupação, a amputação que sofreu em 2020 de um segmento relevante dos seus elementos com maior notoriedade, entre os quais alguns eram figuras públicas de justificado prestígio que , em si próprias,  esbatiam fortemente o risco de o movimento “Somos Coimbra” projetar  uma imagem que o amarrasse inequivocamente à direita.

O PSD de Coimbra, por seu lado, tem certamente uma memória amarga de 2017, quando uma aposta qualitativa forte na lista candidata ao município, que apresentou em aliança com o CDS, não foi suficiente para lhe dar o primeiro lugar. E não poderá deixar de admitir, com razão ou sem ela, que um contributo importante para a sua derrota lhe foi dado pela concorrência de “Somos Coimbra”. Mas a névoa mais penosa será certamente a sua memória próxima da brutal desconsideração política praticada pela direção nacional do PSD contra as suas estruturas distritais e concelhias, quando sem cerimónia recusou a escolha que elas  haviam feito para liderar a candidatura. Uma escolha publicamente encorajada por relevantes apoios na respetiva área política e que aparentemente beneficiava de um sólido apoio dentro do PSD de Coimbra, concelhio e distrital.

Estas sombras amargas, ressonâncias do passado, não são certamente uma fonte verosímil de esperança no futuro. E, pela natureza das coisas, cada uma das duas cabeças de Janus, se não se esquecer da identidade que tem assumido publicamente, tenderá a não se reconhecer por completo no futuro desse deus aleatório.

 

3. Mas esta duplicidade potencialmente angustiante, no plano subjetivo, para quem a sinta como sofrimento, para quem caiba no espírito do misterioso deus romano de duas cabeças, objetivamente, reveste-se neste caso específico de um significado que a dramatiza, aproximando-a da insuportabilidade. Quem se sentir tentado a votar nessa opção incerta, por qual das cabeças se deverá sentir motivado? Será essa duplicidade ambígua um dano colateral de uma via labiríntica, inscrita no seu código genético, como uma fatalidade não procurada? Ou será uma subtil esperteza, distante da boa-fé, assente na ambição de se captarem, quer os decididos apoiantes do PSD e do CDS, quer os seduzidos pelo independentismo político-partidário do grupo de JMS? Uns, vendo apenas uma das cabeças; outros, apenas a outra.

Este Janus moderno, no entanto, não é um mito que esvoace pela imaginação como fruto de uma liberdade criativa, que se justifique a si própria. É um artefacto político que consubstancia uma lista candidata a umas eleições. Um projeto em concorrência com outros, uma identidade competindo com outras, uma posição política em confronto com outras. Na verdade, nenhuma lista tem legitimidade ética para se apresentar com duas caras. A cada eleitor tem que ser oferecido um rosto para que o compare com os dos outros concorrentes. Não dois; já que o modo como se comportar se for eleito, corresponderá a um rosto, não a dois.

 

4. Entretanto, esta duplicidade estranha, nada parecendo ter a ver com uma proposta de horizonte, apostada em contribuir para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos que vivem no nosso município, tudo parece ter a ver com a humana ambição de Rui Rio vir a liderar em Lisboa o governo do país. Esse ousado e ambicioso desígnio é certamente legítimo, ainda que atualmente pareça mais circunscrito à esfera do sonho do que ungido pela aura de uma probabilidade forte.

Mas não é possível aceitar-se como legítimo que RR reduza Coimbra a um pacote de conveniências suas para o ostentar como um simples troféu de uma caçada eleitoral. Um troféu que possa exibir ao lado de alguns outros, no decurso do que sonha poder vir  a ser a glória efémera de uma noite de uma pugna eleitoral em que a sorte lhe sorria.  O nosso município não pode ser reduzido ao humilde destino de troféu que sirva para ajudar a salvar uma liderança político-partidária cercada por si própria, assombrada pela instabilidade interna do PSD e condicionada pelo bloqueio estratégico que a direita portuguesa no seu todo parece atualmente sofrer. Coimbra não pode passar pela humilhação de ser um tapete que o ex-Presidente da Câmara do Porto precisa de pisar, para poder em Lisboa entrar em S. Bento. Esta pesporrência simbólica tem que ter a resposta que merece.

 

5. Estamos pois perante uma ambiguidade política estrutural que só pode ser desfeita pela retratação clara de uma das partes. Ou o PSD vem publicamente reconhecer que JMS afinal não vai encabeçar uma lista do PSD mas sim uma candidatura do movimento “Somos Coimbra”; ou este movimento vem reconhecer que afinal  não apresenta uma candidatura própria uma vez que se vai incorporar na do PSD.

Politicamente, é esta a incontornável dicotomia que está em cima da mesa. Malabarismos jurídicos ou retóricas habilidosas que tentem fugir à questão e iludir a lei e a verdade, procurando manter a ambiguidade atual, serão apenas sinais de um aprofundamento da hipocrisia política atualmente em marcha.

                        (Coimbra, 25 de março de 2021)

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As próximas eleições autárquicas em Coimbra

I - Crítica das críticas [ 05/03/21]

II - Em COIMBRA, a lista talvez do PSD

 uma duplicidade ambígua [25/03/21]

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