quarta-feira, 9 de outubro de 2019

O geringoncismo- doença infantil da concertação das esquerdas



O geringoncismo
-  doença infantil da concertação das esquerdas

1. A geringonça nasceu como rótulo depreciativo, inventado por expoentes da direita, para desqualificarem simbolicamente uma iniciativa que agregava as esquerdas. Espalhou-se irresistivelmente no espaço público. No entanto, a realidade que se pretendia apoucar teve afinal o êxito suficiente para resgatar simbolicamente o rótulo em causa, tornando-o numa designação afetivamente mais amiga e cordial do que ridicularizante. Muitos dos seus próprios protagonistas acabaram por aceitar com naturalidade e bonomia o epíteto, que assim se acabou por tornar numa designação aparentemente neutra e inócua. De um ponto de vista simbólico, sem dúvida que o seu potencial desqualificante se esvaiu.

No entanto, talvez ele tenha tido um efeito perverso que não é aparente, mas que julgo real. Na verdade, ao longo do tempo, o pacto celebrado foi sendo predominantemente encarado como um mecanismo político-institucional radicado apenas em organizações partidárias que se concertavam entre si, na sombra discreta dos gabinetes. Celebraram um pacto e foram acompanhando o seu cumprimento. Um pacto que permitiu que um Governo fosse instituído e governasse durante uma legislatura. Um Governo de um dos partidos, a cujos deputados se somavam no Parlamento os deputados dos outros partidos de esquerda. Uma governação que, contrariando todas as expetativas e rompendo até com um certo ceticismo internacional, teve o êxito suficiente para poder ser invocada como exemplo positivo.


2. Nas campanhas eleitorais entretanto ocorridas ─ eleições autárquicas, europeias e legislativas─, mas principalmente nestas últimas, o pacto foi sujeito a um acréscimo de tensões fragmentadoras e dissipativas. Tensões inerentes a uma competição eleitoral entre partidos que concorriam entre si, sem prejuízo de estarem congregados num pacto político-institucional. Um pacto limitado e flexível que era compatível com a manifestação dessas tensões competitivas. Essa compatibilidade, em fim de legislatura principalmente, não impediu momentos de um especial aumento de tensões  e nalguns casos mesmo de alguma acrimónia ainda que contida.

Se olharmos para essa tensão argumentativa vivida nas campanhas, especialmente na mais recente, verificamos que ela refletia atitudes e posições diferentes. De um lado, estava o partido do governo, do outro lado estavam os partidos que tinham pactuado o apoio parlamentar ao governo. O PS tendia a dar centralidade à sua qualidade de partido do governo, valorizando genericamente o mérito da governação. O BE , o PCP e o PEV tendiam a exaltar os méritos inerentes a medidas específicas que teriam sido tomadas por força da pressão feita por cada um deles. Procuravam valorizar o mérito inerente aos resultados das suas pressões e distanciarem-se relativamente do resultado geral da governação, em especial dos aspetos com que não concordavam ou que não induziam popularidade.

Esse registo foi impregnado por uma intensa campanha contra uma possível maioria absoluta do PS, o que sendo em si um absurdo, se for  levada à letra (cada eleitor vota num partido, mas não tem como modular a sua preferência; vota ou não vota), era de facto uma campanha explícita contra o voto no PS. Cada um deles, além de apelar ao voto nele próprio, o que é natural em todos os partidos, apelava também a que se não votasse num partido [o PS], com o qual tinha tido um acordo que durara uma legislatura. Assumiam assim um juízo globalmente positivo quanto ao governo, mas  batiam-se contra o voto no partido que era estruturante quanto a esse governo. Convenhamos que a lógica profunda desta posição equívoca  tem um potencial de confusão apreciável relativamente ao eleitorado mais diretamente visado.

Uma leitura superficial parece indicar que a campanha pode ter tido efeito quanto a impedir uma maioria absoluta do PS, mas não fez ganhar votos nem ao BE nem à CDU. O BE estacionou quanto ao número de deputados, a CDU perdeu deputados. Especialmente à direita, neste caso por motivos óbvios, há quem queira  fazer crer que isso se deveu à participação indireta na solução governativa encontrada. É, no entanto, estranho que o apoio relativo dado a um governo que é encarado positivamente pelo povo de esquerda  induza perda de votos à esquerda. Mais lógica parece ser a hipótese de que esses partidos ( ainda que em doses diferentes) tenham suscitado  confusão, pela estratégia argumentativa seguida,   em parte do seu eleitorado, induzindo assim  a sua abstenção.


3. Se olharmos para o discurso político dos partidos envolvidos no pacto das esquerdas, verificamos que o mais global era o do PS, o que se compreende à luz da sua relação com o governo. Os outros seguiam um guião em que predominavam referências a medidas parcelares, cujo mérito reivindicavam e a medidas parcelares que inscreviam como seus objetivos para o futuro.

Todos davam na generalidade como adquirido  o tipo de sociedade atual , abdicando de inscrever no horizonte a sua transformação. As exceções a esta regra, mais implícitas do que explícitas, não condicionavam significativamente a espinha dorsal do discurso político assumido. Os eleitores tendiam a ser encarados mais como indivíduos a convencer do que como cidadãos a mobilizar; mais como clientes políticos a fidelizar do que como sujeitos cívicos de um processo político que partilhassem com os partidos que, sendo os atores eleitorais diretos, não eram tudo.

Esta atitude menosprezava um dado empiricamente verificável que se veio tornando evidente, ao longo dos últimos anos: o povo de esquerda, abrangendo os eleitorados reais ou potenciais dos partidos envolvidos no acordo, queria e continua a querer esse acordo. Independentemente de pressões circunstanciais e do desenho concreto da conjuntura institucional em 2015, o mérito principal, aliás apreciável, das direções políticas dos partidos envolvidos, foi o de terem sabido responder positivamente a esse anseio unitário profundo do povo de esquerda. Terem percebido a centralidade desse anseio.

No entanto, na generalidade, parece nítido que desde então não foi dada realmente centralidade a esse anseio, por nenhum dos partidos envolvidos. Predominantemente, a prática dos partidos envolvidos passou, quase sempre, ao lado dessa unidade substancial do povo, preferindo ficcionar uma diversidade de povos de esquerda correspondente a eleitorados separados dos vários  partidos. 

Esta perspetiva implicou, objetivamente, uma tendência para se renunciar por completo a estimular uma dinâmica de transformação social que envolvesse globalmente o povo de esquerda e se abrisse a todos os trabalhadores e a todas as vítimas da desigualdade social dominante. Uma dinâmica de transformação que desse consistência e autenticidade ao combate contra a degradação ambiental inerente ao modo como o capitalismo tem vindo a corroer o mundo. Uma dinâmica que pudesse dar corpo a uma esperança realmente grande e que assim pudesse pôr o povo em movimento.

No seio de um processo amplo de transformação social, o protagonismo diferenciado dos partidos exprimiria com naturalidade a relativa heterogeneidade  do povo de esquerda, mas fá-lo-ia no âmbito  de um processo social mais amplo mas uno, onde todos caberiam. O protagonismo institucional dos partidos em geral e a sua governação nos diversos níveis do Estado seriam robustecidos por uma dinâmica social que o apoiasse, estimulasse e desafiasse.

Tudo isso poderia gerar uma nova relação de forças que permitiria que fossem tomadas mais rápida e facilmente medidas justas, geradores de mais liberdade e de mais igualdade, induzindo até provavelmente uma afirmação e uma autonomia mais robustas do nosso país na cena internacional.


4. Sem uma ancoragem firme numa dinâmica social deste tipo, os êxitos político-institucionais, por mais relevantes e meritórios que sejam, ficarão mais sujeitos ao aleatório de conjunturas internacionais que dependem muitíssimo pouco do que ocorre em Portugal.  Sem essa ancoragem dificilmente se dará consistência à defesa da qualidade ambiental, à luta contra as causas económico-sociais das alterações climáticas, aos movimentos de inconformismo em face dos automatismos predatórios do capitalismo mundial. E assim tender-se-á para uma fragmentação das resistências organizadas à degradação ambiental e a uma estéril dissipação das suas iniciativas. Podem suscitar-se explosões desesperadas, dificilmente se gerarão resistências eficazes.

Paralelamente, se continuarmos aprisionados numa numerologia que se absolutize a si própria, esquecendo as pessoas, abriremos ainda mais as portas do desespero, às vítimas da desigualdade. E quando as portas do desespero se abrem, deixa de ser possível prever e controlar o que passa através delas.

E não se pense que este risco se diminui com atitudes proclamatórias ainda que generosas e acutilantes, com os proclamantes a considerarem-se realizados apenas por proclamarem. O general que numa guerra decretasse bombardeamentos aéreos, sem dispor de aviação, representaria um perigo nulo para o inimigo.

Está em marcha um processo negocial para o desenho político do novo governo. Entre as esquerdas parece haver algumas dificuldades e ambiguidades que podem não levar a bom porto. Se o povo de esquerda vier a ser  esquecido no labirinto das negociações, se as direções partidárias não tiverem a inteligência de perceber que sem o povo de esquerda  são pouco mais do que folhas secas ao sabor da corrente, as coisas podem ser mais difíceis do que a atual relação de forças induz. E não esqueçamos que  dentro do modo como a sociedade atual entre nós funciona, a esquerda, mesmo quando é maioritária no parlamento e nas autarquias,  está cercada pelos poderes de facto, que lhe são estruturalmente hostis. E quando quem está cercado ignora o cerco dificilmente o vai conseguir romper com êxito.

É mais fácil politicamente e menos oneroso económico-socialmente que as esquerdas se entendam para governar depois de uma vitória do seu conjunto do que se entendam para resistir depois de uma derrota. E é mais fácil o protagonismo dos partidos quando tenham como suporte o povo de esquerda com a esperança acordada, do que depois de terem conseguido desiludi-lo e desmobilizá-lo com a sua inépcia, se for esse o caso.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

O camaleonismo, doença senil do PSD





O camaleonismo, doença senil do PSD

Corajosamente, alguns jovens e menos jovens turcos do PSD têm vindo repetidamente a ostentar o seu orgulho por serem uma direita sem complexos. Uma direita, aliás, de que o PSD seria o partido mais representativo em Portugal e que como tal se deveria  afirmar com firmeza. Com essa ambição está em consonância clara o facto de o PSD pertencer à maior família política da direita europeia  : o Partido Popular Europeu. É certo que ainda muito jovem o PPD resolveu ficcionar-se de social-democrata. Na Europa não acreditaram. Foram arroubos juvenis que não tiveram sequência.

No mesmo sentido, há poucos dias  foi-me dado ver num noticiário televisivo o Dr. Rui Rio numa ação de rua  interpelar uma cidadã espanhola, dando-lhe conta da sua identificação com Pablo Casado, líder do Partido Popular em Espanha, um partido da direita conservadora, bem longe de qualquer centro.Fraternidade ibérica...

Foi, por isso, com espanto que ouvi hoje, no encerramento da sua campanha, o Dr. Rui Rio recusar firmemente que o PSD fosse um partido de direita, para o afirmar bem ao centro, tão longe da direita como da esquerda. Um espanto, uma novidade. Temos pois um partido que tem dentro de si muitos e muitos cidadãos que se consideram e se dizem de direita, que se encaram como sendo de direita, tem opções doutrinárias e ideológicas de direita, tem um programa económico de direita, tem uma visão conservadora e neoliberal do mundo e da política de direita, mas não é de direita. É de centro. É obra! Ou será hipocrisia política pura e dura?

Talvez ciente da dificuldade em fazer passar a ilusão pretendida, de ocultar a hipocrisia, o Dr. Rio escolheu o emblemático Largo do Carmo para local desse comício e no final da sua prédica aludiu vagamente ao Grândola Vila Morena. Suprema ousadia…

Moralidade: o líder do maior partido da direita portuguesa sentiu-se tão pouco confortável dentro da própria pele, que resolveu renegar a sua identidade própria, recusando formal e expressamente considerar o PSD como fazendo parte da direita.

 Compreende-se que ele queira libertar-se da sombra do pafismo troikista, mas uma tão grosseira hipocrisia, uma tão escandalosa fuga à própria identidade, é demais. E sendo excessiva, corre o risco de se evidenciar como simples e prosaico camaleonismo politico-ideológico de quem no fundo acha insalubre a sua própria identidade. Episódio caricato neste tempo eleitoral que , no entanto, a meu ver, é um dos  maiores ataques políticos feitos ao coração da  direita portuguesa  nos últimos anos , perpetrado por um dos seus mais destacados expoentes.

Em conclusão , é prudente interrogarmo-nos sobre quem é afinal Rui Rio  e por que razão o PSD precisa de se disfarçar de centro se continua a ser igual ao que sempre foi?

Quem nos governaria se os portugueses deixassem o Dr. Rio governar ?

A direita no seio da qual sempre o conhecemos, ou o um centro virtual que ainda ninguém viu e que se calhar só existe como artefacto de uma propaganda mistificatória?   Grande aventura, grandes riscos…

A direita, a extrema-direita e os insultos políticos




A direita, a extrema-direita e os insultos políticos

A truculência assumida pelo PSD e pelo CDS nos ataques ao atual Governo, a propósito do caso de Tancos, deslizou frequentemente para o nível do insulto. Tornou-se claro que para esses partidos, alegadamente institucionais, tudo passou a ser subordinado ao imperativo de prejudicar o PS e de os salvar a eles de um desastre eleitoral. Insultos muitas vezes centrados em injustificados julgamentos de carácter com incidências pessoais.

Observemos o que disseram sobre o mesmo caso dois dos partidos que concorrem a estas eleições e que são assumida e ostensivamente de extrema –direita ─ o PNR e o Chega . Tendo-os ouvido nos respetivos tempos de antena sobre o mesmo tema, pode verificar-se que o PSD e o CDS partilham com eles o modo, o tom e o conteúdo dos ataques ao Governo no caso de Tancos.

Ou seja, a sofreguidão no aproveitamento político deste caso, para efeitos eleitorais imediatos, fez com que o PSD e o CDS fossem absorvidos pela vertigem trauliteira da extrema-direita. Sintomático e edificante.

O PS faz bem em não descer ao ponto de lhes responder na mesma moeda, mas não deve esquecer-se, não pode esquecer-se das ofensas de que foi alvo . Deste modo, sob pena de perda de dignidade, não pode deixar de cortar relações políticas com essa gente, com todas as consequências que isso implique. Se mais tarde eles pedirem desculpa, por terem  insultado tão soez e injustificadamente o PS, reconhecendo assim o erro e mostrando-se sinceramente arrependidos, talvez o PS possa reavaliar a situação para ver se é ou não  justificado o restabelecimento de relações políticas com eles. Até lá, fora dos contactos institucionais formais implicados pelo funcionamento normal do sistema político, o PS tem que cortar relações com o PSD e com o CDS. Claramente. Sem equívocos.