sexta-feira, 16 de junho de 2017

A imponente França de Mácron ─ uma ilusão institucional?



A imponente França de Mácron ─ uma ilusão institucional?

Só o decurso do próximo quinquénio da Presidência de Mácron em França nos dirá se a sua entrada de rompante na cena política assinala o princípio do fim da quinta república ou o seu renascimento.
 
A primeira volta das eleições legislativas confirmou a vaga de fundo a seu favor que as sondagens haviam anunciado. Embora só após a segunda volta se fique a saber a dimensão da vitória do “La Republique en Marche“ (LRM), não há dúvida de que ela será retumbante, quanto ao número de deputados eleitos. Feitas as contas, talvez seja mesmo impossível que lhe venha a escapar a maioria absoluta, mesmo que haja uma reviravolta improvável, na segunda volta.
 
As projeções de resultados apontam como possível que os macronianos tenham mais do dobro dos deputados de todos os outros partidos juntos; entre 415 e 455 num parlamento com 577 lugares. Deste modo, na Assembleia Nacional o seu predomínio será esmagador. Veremos que força virão a ter no Senado, bem como  nos órgãos de poder regional e local, dada a anunciada deserção a seu favor de alguns dos respetivos protagonistas, vindos da esquerda e da direita.  
 
Mas o binómio Presidente da República/ maioria parlamentar, com esse peso institucional avassalador, que base eleitoral terá, em termos reais? Que percentagem do eleitorado votou nos deputados macronianos? Quantos franceses votaram neles, nesta primeira volta das legislativas?
 
O jornal francês  “Le Monde” publicou uma análise comparativa que vale a pena ter em atenção. Comparou as percentagens obtidas pelo partido ou partidos que apoiaram o Presidente da República eleito nas primeiras eleições legislativas subsequentes à respetiva eleição. Tendo em conta situações semelhantes que ocorreram em 1981, 1988, 2002, 2007 e 2012,a percentagem obtida pelos apoiantes de Mácron, na primeira volta das legislativas de 2017, foi a mais baixa de todas; obteve 32,2 %, dos quais 28,1% foram conseguidos pelo LRM. Se compararmos com o que ocorreu com Hollande há cinco anos, verificamos que na primeira volta das legislativas subsequentes à sua eleição, os partidos que o apoiavam obtiveram 46,77 % , tendo o PSF sozinho atingido 29,35 %.
 
Paralelamente, a abstenção subiu, de uma eleição para a outra, mais de 5 milhões de eleitores. Na primeira volta destas últimas legislativas, os partidos de esquerda (como um todo) foram laminados, embora o desastre do PS tenha sido de longe o maior e tenha havido um reforço da França Insubmissa/Partido Comunista Francês (FI/PCF). Somando as percentagens atingidas por todas as esquerdas, vemos que elas chegaram a 28,32%, em confronto com os 32,21 % da maioria macroniana. A maioria macroniana tem duas parcelas, LRM -28,21% e MODEM -4,11%. Assim, o conjunto de todas as esquerdas tem uma vantagem muito ligeira em número de votos relativamente aos macronianos “puro sangue”.
 
No entanto, as projeções apontam para uma relação de forças em número de deputados em que a maioria macroniana pode chegar aos 455 deputados eleitos, enquanto que as esquerdas somadas, na pior das hipóteses, podem ficar-se pelos 27 deputados (20-PS; 7- FI). O que separa os dois blocos, no plano do apoio popular efetivo, é a diferença entre sete milhões e trezentos mil e seis milhões e quatrocentos mil eleitores. Diferença distorcida pelo tipo de conversão de votos em mandatos que faz com que uma relação de forças, em que a vantagem da maioria presidencial se reduz ao peso do MODEM (4%), se converta na abissal diferença entre 455 e 27.
 
Esta anomalia  democrática, suscitada pelo cruzamento entre um sistema uninominal a duas voltas e uma nova relação de forças entre os grandes espaços políticos franceses, não se circunscreve ao que se acaba de escrever. Recorramos, uma vez mais , ao Le Monde  que procedeu a um cálculo simulado que mostrasse quantos deputados teriam sido eleitos por cada partido  para o parlamento francês, no caso de os votos obtidos no passado domingo terem sido convertidos  em mandatos segundo o método proporcional. A maioria presidencial de Mácron, em vez de se fixar em 455 deputados, como as projeções mais otimistas lhe vaticinam no quadro do atual sistema eleitoral, ficar-se-ia pelos 186; ou seja, mais de cem deputados abaixo da maioria absoluta ( que é de 289). Os socialistas e aliados teriam 80 deputados em vez de um máximo de 30; a FI e o PCF teriam 84 em vez de 12.
 
Ou seja, o conjunto da esquerda, com 164 deputados, ficaria com menos 22 deputados do que os 186 de Mácron. No atual sistema de distribuição de mandatos, com a mesma diferença em número de votos a esquerda no seu todo poderá ficar, na melhor das hipóteses com 42 deputados em face dos 455 dos macronianos. Ou seja, com menos 4% de votos do que a maioria presidencial, a esquerda  ficará com menos de um décimo dos deputados que caberão aos macronianos.
 
O resto da Assemblée Nationale agrava a disfuncionalidade deste panorama. A FN, que poderá ter no máximo 5 deputados no sistema atual teria 85, se o escrutínio fosse proporcional. Apenas a direita tradicional é menos severamente atingida. Na verdade, conta-se que tenha no máximo 110 deputados no sistema vigente, enquanto chegaria aos 124 numa distribuição proporcional. No total, a maioria presidencial ficará com mais de 78% dos deputados, embora só disponha de menos de um terço dos votos; mas os outros dois terços de votos ficarão representados por pouco mais de 20% dos deputados.
 
De um ponto de vista institucional, a legitimidade de Mácron  e da maioria parlamentar que o apoia é inquestionável, mas os cidadãos que o apoiam não se multiplicam por prestidigitação e os que não se reveem no seu projeto não se evaporaram. Em mais de 45 milhões de inscritos, houve mais de 24 milhões de franceses que se abstiverem, não tendo assim votado nem nos apoiantes de Mácron, nem nos outros. Ao fim e ao cabo, apenas 7 milhões e trezentos mil franceses se mostraram identificados com o projeto Mácron, enquanto mais de 15 milhões e quinhentos mil se mostraram alinhados com outras posições ao votarem nelas . Portanto, a enorme vaga institucional de apoio a Mácron não pode deixar de ser redimensionada, à luz da relativa modéstia da sua efetiva irradiação social.
 
É certo que ele vai ter a força que resulta do enfraquecimento dos outros. A direita clássica ainda não sabe a extensão dos danos sofridos, não calculou ainda o grau de oposição que vai ter  e os seus punhais já a ser afiados não sabem ainda em que costas “amigas” se vão cravar. A extrema-direita está em pausa, hesitando entre a continuidade e a habilidade, esperando perceber que espaço sociopolítico lhe vai ser concedido pelo macronianismo. À esquerda, os ecologistas parecem em suspenso, vagamente receosos de uma irrelevância duradoura. A FI tornou-se, em conjugação com o PCF, a força numericamente predominante á esquerda, ainda que não deva vir a ter o conjunto de deputados relativamente mais numeroso. A conjugação deste reforço com a perenidade ou não do PCF projeta neste espaço uma equação complexa.
 
Quanto ao Partido Socialista Francês passou de 29,35 % de votos na primeira volta das legislativas de 2012, para 7,44%, cinco anos depois; tendo perdido quase seis milhões de votos nestes últimos cinco anos. Despindo-o dos seus aliados habituais, ele próprio considerado isoladamente ficou ligeiramente abaixo de um milhão e setecentos mil votos. Não é neste momento totalmente clara a medida em que está internamente dilacerado entre dinâmicas inconciliáveis. É ainda incerto se tentará liderar uma esquerda, no seio da qual conviverá outros sujeitos políticos, se será vítima de uma fatal atração pela maioria presidencial, se será repartido entre esses dois caminhos.
Depois do próximo domingo, voltaremos a falar sobre tudo isto. Especialmente, a propósito do PSF; dos seus desígnios e do seu horizonte.
 
Com o tempo irá ficando inequivocamente a descoberto a matriz do macronianismo, cujo primeiro-ministro é já hoje um antigo expoente da direita clássica. O que ocorreu nestas duas mais recentes eleições de maio e junho, é desde já um golpe profundo nos socialistas franceses, que vem somar-se a outros desaires socialistas noutros países, se bem que não em todos. Só por isso, teria sido um golpe relevante no panorama politico-partidário da França. Mas o que acabo de escrever mostra bem que, mais do que isso, o que está em cima da mesa é uma crise profunda no sistema político francês.
Na verdade, é uma aventura imprudente aceitar um tipo de conversão de votos em mandatos que empola escandalosamente uma minoria, por ser ela a maior minoria , em detrimento de várias outras minorias que sendo menores, uma a uma, consideradas em conjunto valem o dobro daquilo que vale a minoria maior; aquela  que se prepara para um açambarcamento desmesurado do poder.  
 
O foguetório dos “robertos” da comunicação social  europeia festejou a derrota da extrema-direita representada pela vitória de Mácron. Mas nada pode ser mais favorável á FN em França do que ficcionar como democraticamente aceitável o exercício de um poder baseado num sistema eleitoral que dá o predomínio absoluto a um terço do eleitorado e deixa fora do jogo institucional os outros dois terços. Esta relativização da democracia, se for por diante com a arrogância que se já se adivinha  e com o menosprezo das minorias e mundo do trabalho, pode fazer exultar os alegados mercados, mas não deixa de ser, principalmente, uma inesperada vitória simbólica da Frente Nacional.


segunda-feira, 12 de junho de 2017

O resultado oculto das eleições britânicas



O resultado oculto das eleições britânicas
As diversas tonalidades de opinião, quanto ao resultado das recentes eleições britânicas, não se afastam muito da imagem geral de um punição à sofreguidão da líder do governo conservador, quando provocou a antecipação de eleições para tornar mais forte a maioria absoluta de que o seu partido já dispunha no parlamento. Teria , aliás, querido matar dois coelhos com uma cajadada: ficava com uma posição mais forte para negociar o “brexit” com a União Europeia e reduzia a uma dramática insignificância os trabalhistas, aos quais as sondagens colocavam com uma desvantagem de 20%.

Uma dramática insignificância que era especialmente aliciante para a Srª May , dado que a esperada  derrocada dos trabalhistas seria a alegada consequência do posicionamento político  do seu líder, que os arautos  e os escudeiros do pensamento único consideravam como demasiado à esquerda, demasiado radicado no imperativo de superação das dificuldades dos britânicos que realmente as têm.

Na verdade, a Srª May ficou abaixo da maioria absoluta na Câmara dos Comuns, precisando de um acordo, que se adivinha volátil, com os unionistas irlandeses, para ter possibilidades de formar governo. Com os seus 318 deputados, precisa dos 10 dos unionistas para passar a barreira dos 326 votos de que necessita. Ficará com uma coligação ou com um acordo mais frágil do que aquilo que era a maioria exclusivamente do seu partido antes das eleições. Os trabalhistas terão 262, os nacionalistas escoceses 35 e os republicanos irlandeses 7.

Do ponto de vista institucional, o significado político dos resultados verificados é realmente o que se acaba de mencionar. Um significado que é a projeção da relação de forças em termos de apoio popular, no modo de distribuição de mandatos inerente ao sistema eleitoral britânico.

Mas isso não impede que seja relevante olhar também para esses resultados eleitorais, valorizando o apoio popular obtido por cada partido, o número de eleitores que optaram por cada um dos partidos. E, assim, vê-se desde logo que os conservadores chegaram aos 42,4%, subindo 5,5 % em relação às anteriores eleições; enquanto os trabalhistas chegaram aos 40%, subindo 9,6 %. Ou seja, os alegados 20% de diferença prometidos nas sondagens, ficaram reduzidos a uns magros 2,4 %. Ou seja, em termos de apoio popular os trabalhistas de Corbyn, apesar da barreira de hostilidade que enfrentou, ficaram a 2,4% dos conservadores, apesar destes terem subido 5,5 %. Parece assim que a Srª May não se enganou quanto ao reforço de apoio que realmente obteve, mas quanto ao apoio popular a uma agenda de esquerda centrada na luta contra a desigualdade e radicada numa aspiração frontal por uma sociedade mais justa. Ela partiu do pressuposto de que Corbyn seria o coveiro dos trabalhistas, quando afinal lhes trouxe um vigor renovado.

Mas esta relação de forças não pode ser verdadeiramente avaliada, se for esquecido que a direita radical, que foi uma alavanca decisiva para a ocorrência do “brexit”, o UKIP, ficou reduzida a 1,8 % (zero deputados), tendo por isso descido 10.8 % desde as eleições anteriores. Isto sim foi um desmoronamento. E os conservadores puderam absorver uma parte do que antes haviam perdido para a direita radical.

Os liberais democráticos, tidos como os campeões da coerência anti--brexit, tendo subido 3 lugares, perderam no entanto 0,5 % do voto popular.

Os nacionalistas escoceses, embora continuando a ser na Escócia o partido mais forte, perderam 19 deputados em 54, ficando apenas com 35, passando assim à escala nacional de 3% para 1,7%.

Algumas conclusões parecem nítidas perante o apoio popular obtido pelas diversas posições. Desde logo, vê-se que os britânicos, embora não indiferentes ao problema do “brexit”, estão mais preocupados com as políticas que internamente vão condicionar a sua vida do que com a alegada performance negocial no plano europeu, deste ou daquele. Nem o UKIP foi recompensado pela sua vitória no referendo pelos que o apoiaram, nem os liberais democratas foram compensados pelo seu europeísmo claro, pelos que são contra o “brexit”.

No seu conjunto, os dois maiores partidos superaram a barreira dos 80% dos votos, repartindo o apoio eleitoral obtido em partes quase iguais. Mas a grande novidade está no facto de os trabalhistas terem atingido os 40%, subindo assim quase dez por cento, com uma proposta política inequivocamente situada á esquerda, esvaziando assim a velha lenda de  que a esquerda só pode ganhar um apoio eleitoral significativo se fizer concessões á direita, de modo a fazer-se passar por uma esquerda  que afinal é centro.

É certo que os “chiens de garde” , os ideólogos do neoliberalismo qualificam como de um século passado todas as propostas que visem uma demarcação em face da atmosfera predatória do capitalismo atual, ambicionando  uma sociedade menos injusta  porque mais igualitária. Propostas que reflitam uma efetiva determinação em acabar com a pobreza, em cortar nos privilégios, suscetível de abrir as portas a um futuro decente para todos. É muito antigo o expediente de qualificar sumariamente como do passado aquilo que não se sabe ou se não quer combater substancialmente em campo aberto no presente . Na verdade, esse expediente é que é realmente do passado.

Mas talvez o mais decisivo tenha sido o facto de Corbyn ter deixado transparecer que o cerne do seu envolvimento político não era uma simples oferta de um programa eleitoral, mas a partilha de um combate. Ora, o povo de esquerda está cansado de ser laminado pela máquina trituradora do neoliberalismo, enquanto partidos que deviam ser seus se mostram mais inclinados a agradar aos poderes económicos de facto do que a ocupar dentro do povo de esquerda o lugar que justifica a sua própria existência. E ele ouve cada vez menos quem apenas lhe peça para votar periodicamente num programa mais ou menos redondo, onde apenas reluz aquilo que mais longe está de poder ser cumprido por quem continuar manso como de costume.

Em contrapartida, o povo de esquerda tem vindo a dar, em diversas circunstâncias  num e noutro país, sinais inequívocos de que está disposto a bater-se e mesmo  a confiar nos partidos que não se conformem com o tipo de sociedade hoje dominante, mostrando-se capazes de apostar na sua transformação, rumo a um pós-capitalismo democrático e emancipatório.

 Os povos parecem cada vez menos dispostos a ser dóceis e a  aceitarem que a máquina trituradora do capitalismo lhes esmague o futuro, sempre legitimada pelos que lhe dizem que não há outra solução. Falta saber se encontrarão um caminho que os transforme numa energia qualificante que possa fazer acontecer a esperança ou se ficarão aprisionados num desespero estéril  que apenas seja suscitável de fazer implodir o que existe numa deriva dissipativa e fatal.

Se os partidos de esquerda forem capazes de ser parceiros fraternos dos seus povos, mergulhando neles as suas raízes, partilhando com eles a procura de uma verdadeira superação democrática do capitalismo, a primeira hipótese é mais provável. Mas se forem enredados nas suas próprias tergiversações ou se sucumbirem à sofreguidão de um imediatismo atabalhoado, estarão a contribuir para que seja maior o risco da verificação da segunda hipótese.

Não deixemos pois reduzir o resultado das recentes eleições britânicas a esse croquete de evidências e banalidades que procura fazer luzir ao máximo as aparências, para que desistamos de pensar no que realmente ele nos mostra. Isto naturalmente sem o encarar como uma dádiva que apenas  nos caiba fruir; mas vendo-o como um sinal incontornável que vale a pena e é possível  lutar politicamente por um futuro mais justo.

Como apontamento caricatural e simbólico, Tony Blair, esse brilhante sargento do general Bush, veio publicamente antes da campanha juntar-se á matilha, tentando apoucar Corbyn. Julgou-o talvez moribundo, mas o que realmente deixou a descoberto foi  a fraqueza da sua lealdade e a falta de decência para com o partido que liderou e para com algué que ocupa hoje a posição que ele antes ocupara. Talvez tenha sido pedagógico,  porque nos fez  lembrar quem realmente é e nos fez recordar a medida em que contribuiu, com a sua via de rendição ao neoliberalismo, para o enfraquecimento dramático de alguns dos partidos que integram o Partido Socialista europeu e que seguiram por ela.

Tavez , Corbyn não lhe tenha ligado muito, mas implicitamente deu-lhe uma resposta demolidora. E tornou ainda mais difícil de contornar a evidência de que o “blairismo” é uma política morta, marcada indelevelmente por uma imprestável cobardia estratégica.