Fantasma
de um pesadelo passado
Cavaco Silva explodiu numa suave reunião de senhoras do PSD.
A comunicação social dominante fez respeitosamente ecoar a voz tonitruante do
seu antigo senhor.
Como se de um ousado pirilampo se tratasse, a sua rápida e
modesta luz prometeu salvar-nos não se sabe bem de quê. Qual arcanjo providencial,
veio ostentar uma determinação firme: a de
nos salvar, salvando a nossa democracia da terrível mordaça que a malévola
geringonça (que assim ressuscitou) tem vindo a perpetrar contra todos nós.
Com argúcia pôs a nu os sinais mais fortes e mais preocupantes
da opressiva mordaça que cerceia a nossa democracia: o ex-Presidente do Tribunal
de Contas não foi reconduzido quando terminou o mandato para que havia sido
nomeado, o mesmo tendo acontecido com a anterior Procuradora Geral da
República. Neste caso o implacável fantasma de si próprio não hesitou em causar
um dano colateral no seu sucessor na Presidência já que foi em última instância
ele quem a nomeou. Terá o seu olhar de lince da Serra da Malcata descoberto nas
brumas do mistério uma secreta implicação do Presidente Marcelo nas perversas
maquinações de uma geringonça que afinal existe? O oráculo de Boliqueime deixa
crer que talvez.
O ponto fraco desta paixão pela democracia que quer
desamordaçar é ter uma intensidade demasiado forte. Tão forte que é
dificilmente harmonizável com a mansidão
com que ele suportou essa coisa que existiu
em Portugal antes do 25 de abril e que certamente nem a sua percuciência
consegue considerar como algo menos amordaçado do que o agora o atormenta. Pode
ser que andasse então apenas distraído e que com o nobre peso dessa distração
no seu inconsciente freudiano se exceda agora num paroxismo compensatório de
vigilância democrática. Pode também ser um prosaico problema de maus fígados
associado a uma possível falta de tempo para encontrar algo de aparentemente
consistente que legitimasse algumas farpas mais agressivas no PS, no Governo e
na alegada geringonça.
Será talvez a mesma falta de tempo para dar mais
consistência ás suas pirilampices que o fez sugerir sem subtileza que os mortos
da covid 19 são fundamentalmente culpa do atual governo. Só não se percebeu se
o oráculo de Boliqueime imputava ao governo português a culpa apenas pelas consequências
nacionais do vírus ou se a estendia à Europa e ao mundo. Não se sabe. De
certeza certa, apenas se sabe que sentiu vergonha.
Anda a OMS na China à
procura da raiz da pandemia, quando facilmente evitaria perdas de tempo e
dinheiro se perguntasse a Cavaco. Se estiver atenta é o que fará. Terá talvez
apenas de inquirir se a culpa foi principalmente do Primeiro-Ministro, da
Ministra da Saúde ou de todo o Governo. Aguardemos.
Também foram comoventes as melífluas alfinetadas que espetou
em Rui Rio. Não se sabe se para o estimular se para o enfraquecer. Mas foi
particularmente brilhante a lógica que uniu a sua enérgica diatribe
desqualificativa do PS e a recomendação dirigida ao PSD para atrair os eleitores
que têm preferido o PS. Rui Rio ficou tonto:" Então para conquistar os eleitores
do PS insulto a escolha que eles fizeram?" Isso o oráculo de Boliqueime não
explicou.
Mas onde ele mais se excedeu em rasgo, foi no críptico
conselho dado a Rui Rio para lidar com o Chega. Não fale nele. Nunca responda a
qualquer pergunta sobre ele. Seja inerte perante qualquer enormidade que venha
dele. Notável como Cavaco, que foi tão eloquente em imaginar mordaças para as
imputar ao atual governo, numa pose de
intransigente excelência democrática, tenha ficado preso numa bonomia inerte perante as
piruetas neofascistas do Chega. Estranho! Tão estranho que é legítimo suspeitar-se
que o aferidor de democracia que ele usa está notoriamente avariado. Ou então é
o próprio oráculo de Boliqueime que está desbussolado, tendo-se perdido do
norte e do simples bom senso.
Cavaco voltou, a direita mais linha do Estoril adorou, o jornalismo mole da matilha dominante mastigou penosamente as banalidades básicas. Mas se me perguntassem em que tipo de programa o colocaram não saberei dizer se foi um programa cómico ou trágico.
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