domingo, 4 de abril de 2021

25 de abril, sempre: cumprir e fazer cumprir a Constituição

 


25 de abril, sempre: cumprir e fazer cumprir a Constituição

1. O art.º 167 da Constituição da República Portuguesa que regula a “iniciativa da lei e do referendo” dispõe no seu nº 2 : “ Os Deputados, os grupos parlamentares, as Assembleias Legislativas das regiões autónomas e os grupos de cidadãos eleitores não podem apresentar projetos de lei, propostas de lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento.”

É o disposto neste preceito que está em causa na controvérsia pública acerca da chamada lei-travão. Como se pode ver, propostas de aumento de despesas ou diminuição de receitas do Estado previstas num Orçamento durante a sua vigência não devem sequer ser apresentadas, logo, por maioria de razão, não podem ser aprovadas, sob pena de serem inconstitucionais.

 Esta mensagem normativa é como se vê clara, não dando espaço a outra interpretação que não seja a que ressalta da “primeira evidência” do texto legal. E essa evidência é tão gritante neste caso que qualquer tentativa de ilusionismo jurídico que sugira o contrário é apenas uma inútil tentativa de ocultação de um grosseiro desrespeito pelo disposto na Constituição.

Na verdade, há inconstitucionalidades geradas por ressonâncias constitucionais, cuja complexidade torna compreensível a diversidade de interpretações. A diversidade de posições será então natural. Mas neste caso, como se viu, isso não acontece. É impossível que quem aqui desrespeitou a Constituição não tenha sabido que o estava a fazer, que não o tenha querido ou que não se tenha importado em fazê-lo.

[É certo que o desenvolto constitucionalista Francisco Louçã, juridicamente arguto e sempre imaginativo, inventou uma outra norma constitucional em que apenas se proíbe que sejam feitas propostas que furem um alegado teto de despesas presente no orçamento. Munido desse milagroso teto, mostrou com exuberância como António Costa (e todos os constitucionalistas realmente existentes que se pronunciaram no sentido de as leis em causa serem inconstitucionais) estavam rotundamente errados. Na verdade, se a norma constitucional por ele alegada existisse realmente, teria razão. Mas como não ela existe, apenas estivemos perante um malabarismo televisivo mistificatório. Enfim, um verdadeiro “Momento Zen” que talvez não nos seja mostrado. Mas encerremos este esotérico momento Louçã e voltemos ao cerne da questão.]

Como se viu, o disposto na Constituição impede que os deputados proponham aumento de despesas ou diminuição de receitas, mas não abrange o Governo nessa proibição; nem calibra, atenua ou relativiza essa proibição em função de uma hipotética bondade das razões ou motivos invocados para a justificarem; nem a faz ceder perante a hipótese do acréscimo da despesa ou a diminuição da receita poderem ser acomodados pelo Governo no orçamento em vigor. Tudo isto é claro e inequívoco

Portanto, todos os porta-vozes partidários, todos os comentadores políticos, todos os jornalistas, todos os neo-constitucionalistas de ocasião que congestionaram o espaço público com a sôfrega tentativa de enfraquecer a posição de António Costa nesta questão e de salvarem Marcelo R. de Sousa do seu inesperado dislate constitucional , invocando qualquer das três ordens de razões acabadas de mencionar, apenas enxovalharam a imagem da sua própria argúcia. Não foram espelhos de criatividade argumentativa, mas simples megafones insalubres de claros dislates jurídico-constitucionais.

2. Embora mereça apuração autónoma e uma análise substancial o conteúdo das propostas inscritas nas leis em causa, de modo a poder verificar-se a real dimensão da sua novidade, em comparação com as medidas tomadas pelo Governo, não é disso que se trata, quando se discute a sua inconstitucionalidade. E mesmo que essa novidade fosse realmente significativa e compatível com as possibilidades efetivas de serem postas em prática no imediato num país com o nosso nível de desenvolvimento, haveria outras maneiras de repercutir essa diferença de posições nos comportamentos políticos dos vários órgãos e partidos. Nunca ignorar a Constituição.

 Não encontrando outro caminho, no limite, se as oposições se entenderam para aprovar essas leis e se as acham suficientemente importantes para , por causa delas, ignorarem o normativo constitucional, por que razão não derrubam este Governo e se juntam numa solução alternativa que realize as políticas que executem as medidas a que dão tanta importância? Resposta embaraçosa? Decerto; mas o embaraço, que  tolha  as possibilidades de uma resposta a esta pergunta, indicia bem, principalmente quanto às oposições que sejam de esquerda, a irracionalidade do caminho trilhado.

 

3. Mas, neste caso, as oposições claramente exteriores ao hemisfério direito do espaço político (PCP, Verdes e BE) cometeram um erro ainda mais relevante. Na verdade, permitindo-se relativizar a essencialidade do respeito pela Constituição, quando se dispuseram a desrespeitá-la tão ostensivamente, desferiram-lhe objetivamente um golpe profundo. Foi a Constituição como um todo que foi ferida e não apenas um dos seus aspetos.

A alergia da direita à Constituição, por mais calculadamente discreta que seja e ainda que mais ou menos exacerbada ao sabor das conjunturas, é uma das traves mestras do seu modo de se integrar no processo democrático iniciado no 25 de abril. Por isso, não perderá certamente o sono perante episódios de deslegitimação simbólica da Constituição, como este é.

Mas as esquerdas situam-se no polo oposto. Para todas elas a Constituição é um elemento central da sua identidade histórica e dos horizontes que as fazem mover, numa comunhão quanto ao essencial que não impede uma diversidade de leituras. Por isso, quando a enfraquecerem estar-se-ão necessariamente a enfraquecerem-se a si próprias. E fazerem isso partilhando uma iniciativa com a direita, só agrava a incongruência desse seu comportamento.

Este lamentável episódio teve ainda um efeito profundamente insalubre no espaço público, quando se tentou justificá-lo com argumentos falaciosos imbuídos de uma intensa irracionalidade. E assim se agravou a atmosfera do espaço público esvaziando de lógica o debate político e dando mais um passo rumo a um estéril vale tudo que empobrece realmente a democracia e torna os discursos patetas e mistificatórias um moeda cada vez mais corrente. E nesta atmosfera deletéria seguramente que podem florescer  os discursos de ódio e as crispações gratuitas, mas certamente  esmaecem as cores da esperança nos horizontes que buscamos.

Sem comentários: