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domingo, 31 de maio de 2020

8 - UM LIVRO, UM POETA - João Cabral de Melo Neto





8 - UM LIVRO, UM POETA -  João Cabral de Melo Neto


Vamos, hoje, recorrer à 33ª edição da “Morte e Vida Severina e outros poemas em voz alta” do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto (José Olympio – Editora, Rio de Janeiro, 1993).
“Morte e Vida Severina” é um “auto de natal pernambucano”, escrito entre 1954 e 1955 e publicado em 1955. Radica-se na saga dos trabalhadores pobres do nordeste ("retirantes") que emigravam para a parte mais rica do Brasil, em longas caminhadas, em busca da sobrevivência. Editado pela primeira vez nos anos cinquenta, fala por si o número de edições publicadas. Como sugere o título da coletânea, está escrito num registo de oralidade. O “auto de natal” foi teatralizado, declamado, cantado. Através dele, sentimos respirar o sofrimento ancestral do povo brasileiro, a sua profunda dignidade e a marca dorida de uma esperança improvável, mas irremovível.

A poesia de João Cabral de Melo Neto é tecida por versos secos, por sílabas medidas , sem enfeites; como se a aridez, por vezes dramática, do real, apenas precisasse de palavras exatas para ser dita. Escreve com “facas”, com “pedras”, com “arestas”, atravessando paisagens de uma aridez cortante. É um dos grandes poetas de língua portuguesa do século XX.

João Cabral de Melo Neto nasceu no Recife (9 de janeiro de 1920) e morreu no  Rio de Janeiro (9 de outubro de 1999). Foi diplomata.

Hoje, vamos publicar  três extratos da “Morte e Vida Severina”: o início, o fim e uma parte intermédia, especialmente conhecida.




Morte e Vida Severina 
(extratos)
                          João Cabral de Melo Neto

1. O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI

— O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.  


2. ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO CEMITÉRIO

—   Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a conta menor
que tiraste em vida.
— É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
— Não é cova grande,
é cova medida,
á a terra que querias
ver dividida.
— É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
— É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
— É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.


3. O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE EM NADA

— Severino retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga.
É difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.

E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.



sábado, 11 de abril de 2015

UM LIVRO, UM POEMA - 8


Vamos, hoje, recorrer à 33ª edição da “Morte e Vida Severina e outros poemas em voz alta” do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto (José Olympio – Editora, Rio de Janeiro, 1993).
“Morte e Vida Severina” é um “auto de natal pernambucano”, escrito entre 1954 e 1955 e publicado em 1955. Radica-se na saga dos trabalhadores pobres do nordeste ("retirantes") que emigravam para a parte mais rica do Brasil, em longas caminhadas, em busca da sobrevivência. Editado pela primeira vez nos anos cinquenta, fala por si o número de edições publicadas. Como sugere o título da coletânea, está escrito num registo de oralidade. O “auto de natal” foi teatralizado, declamado, cantado. Através dele, sentimos respirar o sofrimento ancestral do povo brasileiro, a sua profunda dignidade e a marca dorida de uma esperança improvável, mas irremovível.

A poesia de João Cabral de Melo Neto é tecida por versos secos, por sílabas medidas , sem enfeites; como se a aridez, por vezes dramática, do real, apenas precisasse de palavras exatas para ser dita. Escreve com “facas”, com “pedras”, com “arestas”, atravessando paisagens de uma aridez cortante. É um dos grandes poetas de língua portuguesa do século XX.

João Cabral de Melo Neto nasceu no Recife (9 de janeiro de 1920) e morreu no  Rio de Janeiro (9 de outubro de 1999). Foi diplomata.

Hoje, vamos publicar  três extratos da “Morte e Vida Severina”: o início, o fim e uma parte intermédia, especialmente conhecida.
 
 

Morte e Vida Severina  (extratos)
                          João Cabral de Melo Neto

1. O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI

— O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.  


2. ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO CEMITÉRIO

—   Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a conta menor
que tiraste em vida.
— É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
— Não é cova grande,
é cova medida,
á a terra que querias
ver dividida.
— É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
— É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
— É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.


3. O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE EM NADA

— Severino retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga.
É difícil defender,
só com palavras, a vida,

ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.


E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.

domingo, 5 de outubro de 2008

Sevilha Andando


Uma estadia recente em Sevilha, para participar num Congresso, de que dei notícia neste blog, proporcionou-me a oportunidade para fixar alguns dos instantes dessa cidade.

Breves deambulações, permitiram-me recordar a Sevilha que o grande poeta brasileiro já desaparecido, João Cabral de Melo Neto nos deixou no seu inolvidável livro, "Sevilha Andando". Num relance regressemos a alguns poemas desse livro.

CIDADE CÍTRICA

Sevilha é um grande fruto cítrico,
quanto mais ácido, mais vivo.

Em geral, as ruas e pátios
arborizam limões amargos.

Mas vem da cal de cores ácidas,
dos palácios como das taipas,

o sentir-se como na entranha
de luminosa, acesa laranja.


GAIOLA DE CHUVA

Não tem Sevilha a chuva triste:
mesmo se a chuva cai em cordas,
Sevilha guarda dentro o sol
como um canário na gaiola.

A chuva é fora e apaga a cal
mas trás as rejas das janelas,
dentro do que fora é cárcere,
há flor da alma, vivo-amarela.


O ARENAL DE SEVILHA

Já nada resta do Arenal
de que contou Lope de Vega.
A Torre do Ouro é sem ouro
senão na cúpula amarela.


Já não mais as frotas das Índias,
e esta hoje se diz América;
nem a multidão de mercado
que se armava chegando elas.


Já Rinconete e Cortadilho
dormem no cárcere dos clássicos
e é ponte mesmo, de concreto,
a antiga Ponte de Barcos.


Urbanizaram num Passeio
o formigueiro que antes era;
só, do outro lado do rio,
ainda Triana e suas janelas.



SEVILHA E O PROGRESSO

Sevilha é a única cidade
que soube crescer sem matar-se.

Cresceu do outro lado do rio,
cresceu ao redor, como os circos,

conservando puro seu centro,
intocável, sem que seus de dentro

tenham perdido a intimidade:
que ela só, entre todas as cidades,

pode o aconchego de mulher,
pode o macio existir do mel,

que outrora guardava nos pátios
e hoje é de todo antigo bairro.