O
sofrimento da verdade no caso de Tancos
1.
O caso de Tancos foi implantado na campanha eleitoral na tentativa de
prejudicar tão gravemente quanto possível o Partido Socialista, enquanto
partido estruturante do atual governo. Não foi o primeiro, mas foi desenhado
para se revestir de uma especial dramaticidade.
Só na noite das eleições ficaremos a saber se a
manobra teve êxito, se foi eleitoralmente inócua ou se acabou por prejudicar
alguns dos seus potenciais beneficiários. A sofreguidão com que os partidos de
direita se agarraram ao evento, como náufragos a uma bóia de salvação, trouxe
um claro acréscimo de insalubridade política à campanha em curso. Os partidos
de esquerda que apoiam parlamentarmente o governo tiveram reações equilibradas,
embora o BE resvalasse por vezes para uma confusão excessiva entre o conteúdo
da acusação do MP e a verdade.
Ora, é bom não
esquecer que o visado (o ex-Ministro da Defesa do governo do PS) negou
publicamente a veracidade das imputações que lhe foram feitas; e que só é legítimo
tirarem-se consequências políticas definitivas de alegações inseridas num
processo judicial, quando a sua veracidade estiver definitiva e
irrecorrivelmente estabelecida na instância jurídica numa sentença final.
O PS, pela voz do seu SG, reiterou a sua fidelidade
a uma separação clara entre a dimensão judicial do caso e a sua dimensão
política, movendo-se com a prudência de quem tem responsabilidades
institucionais, mesmo sabendo-se o principal alvo de todos os tiros.
Compreendo este cuidado de quem não quer agravar o
risco de descrédito das instituições, pela veemência de uma defesa ou de um
contra-ataque, que, mesmo justos e justificados, poderiam agravar as
sequelas institucionais e sistémicas da situação criada. Mas, a título
estritamente pessoal, não quero deixar de partilhar algumas interrogações que
me têm assolado e que não tenho encontrado na comunicação social.
Mesmo sem o motor de tentar ter influência nas eleições,
o processo, cuja acusação foi agora conhecida, seguirá certamente o seu
caminho. Cá estaremos para ver o resultado. Mas é bom que se garanta que todas
as circunstâncias que o têm rodeado serão também devidamente escalpelizadas e
esclarecidas. É nesse registo que inscrevo as considerações que se seguem.
2.
Quanto ao caso de Tancos, a matilha mediática, os partidos políticos da
direita, os agentes dos poderes fácticos mais sombrios e uma parte insalubre da
máquina judicial elegeram como verdade única uma nebulosa jurídico-política onde caiba tudo aquilo
que, de perto ou de longe, possa atingir e prejudicar o atual governo e o PS.
Meteram assim num mesmo
saco alguns factos judicialmente provisórios que tratam desde já como
definitivos, juntando-lhe as suas impressões, os seus preconceitos ideológicos e
a sua visão unilateral dos acontecimentos. Projetaram sobre tudo isso a sombra
das suas conveniências políticas mais imediatas, para apontarem o dedo
acusatório ao governo do PS, comportando-se como se todos eles estivessem
ungidos pela graça de uma virtude impoluta.
A origem de tudo, ou
seja, o furto das armas, vai deslizando para uma estranha penumbra. O
“gravíssimo” que vai envolvendo o episódio no seu todo tende a concentrar-se
nas imprevistas sequelas de uma rivalidade entre polícias, apimentada pelo
alegado envolvimento de um Ministro que entretanto deixou de o ser e que nega
esse envolvimento. Por essa ponta se quer chegar ao Governo.
Este é o cerne
dissimulado da dramatização em curso, assentando principalmente na consideração, como definitivamente
provados, de factos até agora apenas alegados numa acusação e que portanto são
provisórios, até serem definitivamente estabelecidos, no quadro de uma sentença
judicial transitada em julgado.
3.
Para dar conta da minha primeira perplexidade, a mais importante, acho pelo
menos estranho que, no quadro do alarido mediático reinante, não se tenha
mencionado algo de verdadeiramente insólito e intrigante. Na verdade, nos
termos da mesma peça processual que tem suportado o recrudescer do ruído, sabe-se
que vários meses antes do assalto ter tido lugar, foi levado ao conhecimento do
Ministério Público e da Polícia Judiciária, que o paiol de Tancos ia ser
assaltado, bem como a identidade do possível assaltante. Estranhamente, as
autoridades militares não foram informadas de modo a poderem tomar providencies
preventivas, de modo a prevenirem e certamente de evitarem o assalto.
Como se sabe, as
diligências internas que terão sido feitas pelas autoridades informadas não
impediram que o assalto se realizasse. O suspeito só viria a ser detido meses
depois do assalto. Detido em setembro de 2018, ou seja, um ano antes da parte
final da campanha eleitoral agora em curso, uma campanha cujas datas eram conhecidas
de antemão por corresponderem a um calendário institucional. Isto é, quem
quisesse fazer cair a acusação em plena campanha eleitoral, invocando a
imperatividade de não exceder o prazo da prisão preventiva, tinha apenas que
escolher a data de início da prisão preventiva, que neste caso foi, como vimos, estranhamente
protelada.
Parece clara a
legitimidade para se exigir que se apure a razão de ser desta inércia objetiva
perante um aviso de roubo de armas, de que se teve conhecimento antecipado, mas
que não foi impedido. É imperativo saber-se, sem margem para dúvidas, se isso
foi o resultado de uma incompetência funcional ou institucional, de uma falha estrutural
objetiva ou se foi uma omissão calculada. Uma omissão calculada para fazer com
que se consumasse um facto politicamente prejudicial ao Governo, através do
qual ele poderia ser flagelado como o foi e está a ser.
Parece-me, aliás, fruto de uma estranha
hipocrisia que expludam os gestos de preocupação em torno de outros
aspetos do caso de Tancos e se passe uma esponja sobre esta questão que é
afinal a raiz de tudo. Onde estão os fogosos jornalistas de investigação, onde
estão os virtuosos partidos da nossa impoluta direita, onde estão os nossos
imparciais comentadores televisivos?
Na falta de um
esclarecimento cabal quanto à omissão em causa, podem até surgir dúvidas quanto às
reais motivações da acrimónia e da competição entre a Polícia Judicial Militar por um lado e a Polícia Judiciária e o Ministério Público por outro; uma competição que aquela parece
ter perdido.
Será apenas uma rivalidade funcional ou um cálculo estrutural
quanto ao futuro numa disputa de prestígios? Ou teria pesado, na intensidade da
refrega, pelo lado da PJ e do MP, a preocupação pelas consequências de um
aprofundamento da investigação das razões que levaram a que o assalto não fosse evitado? Um aprofundamento que seria mais provável se fosse a PJM a responsabilizar-se pela investigação do caso.
4.
Um outro ponto, ainda que menos relevante, é o que diz respeito à tonalidade
política da acusação. Uma vez mais, aquilo que a comunicação social já revelou
dessa acusação é suficiente para se poder verificar que realmente quem a
formulou partilha com a direita uma visão comum quanto ao Governo e quanto ao
significado político dos acontecimentos ocorridos em 2017. Nesse registo
projeta uma visão negativa quanto á ética do Governo, reproduzindo por completo
a narrativa politica da direita. Uma
visão que, diga-se em abono da verdade , não a salvou de uma severa derrota nas
eleições de autárquicas de 2017, por não ter então convencido a maioria dos
portugueses.
Portanto, o acusador do
MP justificou as suas decisões indiciárias com considerações que reproduzem o
discurso político da direita quanto ao Governo e quanto a alguns factos e
episódios políticos mais marcantes.
A escolha do período
eleitoral, em que as acusações só podem ser contrariadas depois das eleições,
alguns outros episódios recentes e a continuação de uma concertação insalubre
com alguma comunicação social dirigida às clássicas fugas cirúrgicas de informação que convêm à acusação, são circunstâncias que devem fazer-nos pensar e agravam a nossa
desconfiança. Ora, numa democracia digna desse nome ( e no quadro da nossa
ordem jurídico-constitucional) não cabem jogadas de instrumentalização do
aparelho judicial contra ou a favor de quem quer que seja. Por isso, neste
plano não pode haver dúvidas, já que ele importa muito mais do que os
resultados de uma eleição.
5. Num registo ainda menos
relevante, vale a pena invocar um pequeno detalhe, evidenciado nas discussões
públicas subsequentes á difusão da acusação do MP. O réu acusado de liderar o
assalto alega que lhe foi garantida imunidade, se entregasse as armas roubadas.
Tal como é apresentada,
essa promessa de imunidade é um elemento decisivo da manobra da PJM em que se
radica a segunda vertente do processo. A única, aliás, que envolve o
ex-ministro da Defesa. Sendo assim, se esse envolvimento fosse real, nos termos
alegados pela acusação, a parte mais importante da sua intervenção não podia
deixar de ser a de garantir essa
imunidade. E se o tivesse feito o seu envolvimento seria formal e inequívoco. Não
haveria lugar para quaisquer dúvidas.
Acontece que ninguém o acusou disso, nem houve
ninguém que sequer alegasse ter-lhe feito esse pedido. Ninguém sequer falou nisso publicamente . Nesta medida,, não parece ter muita lógica a versão da acusação,
quando alega que o ex-ministro conhecia a manobra de entrega e encobrimento, mas não menciona o seu
conhecimento quanto àquilo em que o seu envolvimento seria mais relevante e decisivo,
implicando necessariamente uma decisão sua.
6.
Em conclusão, merece desconfiança a intensidade do alarido politico-mediático a
propósito de Tancos, nos termos em que tem ocorrido.
Será apenas uma tentativa
de prejudicar eleitoralmente o Partido do Governo? O que já seria um grave
inquinamento da decência democrática e uma forte distorção institucional.
Ou
será também uma tentativa de esconder uma manobra ainda mais grave, traduzida
na omissão propositada das diligências que evitariam o roubo das armas, de modo
a agravar-se o clima político, para no limite se provocar a queda do governo?
Não rejubilaria se ficasse
demonstrado que esta hipótese é verdadeira, mas acho indispensável, para a
salubridade da nossa democracia, que seja investigada com rigor. Se
verificarmos que é uma hipótese infundada respiraremos melhor e estaremos mais
perto de evitar que alguma vez aconteça algo de semelhante. Se verificarmos que +e uma hipótese verdadeira, muita coisa vai ter que ser mudada se quisermos evitar a degradação institucional da nossa democracia.
Não esqueçamos: enquanto não for procurada por completo, a verdade
sofre.
1 comentário:
O grande problema do PSD é a falta de ética, de dignidade e uma enorme falta de caráter. O problema das TVs do esgoto é a ausência de qualidade de profissionalismo, isençao, credibilidade e bom senso.
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