segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Jonas, o copromanta

Patrícia Melo, escritora brasileira actual que leio sempre com interesse, é a autora de um romance recentemente publicado, no Brasil e em Portugal, que ostenta o inusitado título de “Jonas, o Copromanta”.

Procurei, no dicionário de português de Cândido de Figueiredo, o significado de tão estranha palavra. Em vão, não consta. Pesquisei palavras próximas: coprologia, coprofagia.
Coprofagia – hábito de se alimentar de excrementos; aberração que leva a ingerir excrementos.
E mencionam-se depois: coprófago e coprofagia, como palavras próximas.
Coprologia – estudo das matérias fecais (do grego – kopros + logos).
E mencionam-se também: coprologia e coprológico.

Estamos, pois, perante um complexo vocabular pouco aprazível.

Os leitores de Rubem Fonseca talvez ainda se recordem do primeiro conto da colectânea “Secreções, excreções e desatinos [Companhia das letras, 2001], cujo título é precisamente Copromancia”. E dando-se ao trabalho de folhear o livro encontrarão este significativo começo, para esse conto: “Por que Deus, o criador de tudo o que existe no Universo, ao dar existência ao ser humano, ao tirá-lo do nada, destinou-o a defecar? Teria Deus, ao atribuir-nos essa irrevogável função de transformar em merda tudo o que comemos, revelado a sua incapacidade de criar um ser perfeito? Ou sua vontade era essa, fazer-nos assim toscos? Ergo, a merda?”

O sentido desta referência é o de dar sinal de uma homenagem peculiar prestada por Patrícia Melo a Rubem Fonseca, escritor que consabidamente ela muito admira. De facto, o romance “Jonas, o Copromanta é uma verdadeira homenagem ao mencionado escritor brasileiro. Homenagem peculiar, uma vez que Rubem Fonseca é uma das personagens do romance, no qual entra precisamente como autor do conto referido, uma vez que o personagem central do romance de Patrícia Melo, Jonas entende que Rubem o plagiou.

De facto, o romance em causa começa precisamente com Jonas a dizer-nos:

“Aquilo não podia ser real.
Fechei o livro com a sensação de que algo sinistro estava acontecendo. Sei que é comum casos da vida imitando a arte e vice-versa, mas não de forma tão escabrosa. EU era o personagem central daquele conto, um eu esquisito, disfarçado, com outro nome, mas ainda assim eu, euzinho da silva, me reconheci com a maior facilidade naquelas páginas, perscrutando diariamente minhas fezes, intrigado com o possível significado das estranhas e múltiplas formas fecais boiando no vaso sanitário. Quem mais no mundo, além de mim, possuía um caderno de excrementos?”


E mais adiante Jonas procura avaliar os méritos de um de outro:

Excetuando o neologismo copromancia, nada traz de novo. Tudo no conto comprova o plágio. Mas devo admitir que o termo copromancia é bem superior ao meu neologismo djetosofia ( substantivo masculino, do latim dejectus, de dejectum +sofia, saber em grego), e por isso adotei-o sem nenhum cosntrangimento. Afinal, se o escritor roubou minha arte, por que eu não poderia surripiar-lhe uma simples palavra?”

Jonas irá sendo apanhado pela teia dessa sua obsessão: o plágio de Rubem Fonseca. Teia que se vai desenvolvendo através daquilo que Patrícia Melo construi como um empenhamento normal e corrente: a copromancia.

Aliás, a autora dá-se ao trabalho de polvilhar o texto com múltiplas ilustrações das formas assumidas pelas fezes de Jonas, formas através de cuja interpretação ele pratica a sua adivinhação do futuro.

Jonas, funcionário da biblioteca que Rubem Fonseca frequenta, vai-se entrelaçando com duas das suas colegas, até acabar parceiro de uma terceira mulher, ela também dada a artes de adivinhação e aberta até a partilhar com ele o seu estranho entusiasmo premonitório.

Jonas, feiticeiro desse novo esoterismo, vai deslizando para um quotidiano cada vez menos parecido com o plano pulsar dos dias que vinha sendo a sua vida e a dos outros parceiros de romance, sendo certo que o próprio Rubem Fonseca é esvaziado de qualquer colorido particular, funcionando afinal como pouco mais do que pólo da obsessão de Jonas.
É como se Patrícia Melo adoptasse uma atitude de plena naturalidade para lidar com o estranho, com o inusitado, funcionando Rubem Fonseca afinal como simples âncora de realidade e verosimilhança, ao mesmo tempo que é objecto de uma expressa homenagem. Homenagem que talvez vá até um pouco mais longe do que a superfície do texto sugere , na medida em que a autora trata o exótico rasteiro da copromancia com a naturalidade com que Rubem Fonseca deixa a violência invadir a sua ficção.

Neste livro, talvez Patrícia Melo não tenha atingido a força testemunhal e simbólica do seu “Inferno”, onde alguns chegaram a ver uma recriação moderna desses inesquecíveis “Capitães da Areia”, que Jorge Amado nos legou. Mas, seguramente, que evidenciou com mestria algumas das marcas dramáticas das grandes solidões amargas que se escondem, discretas, no cosmopolitismo impessoal e implacável das grandes cidades. E conseguiu isso, oferecendo ainda um simpático sorriso de homenagem a um escritor de quem gosta.

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