sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

O futuro da morte de Benazir Bhutto




A barbárie marcou de novo presença no Paquistão. A morte anunciada de Benazir Bhutto aconteceu. Violenta e politicamente devastadora como se receava. Os protagonistas mais ostensivos da cena política mundial começaram já a dizer os seus previsíveis textos de lamentação. Enfurecidos e desorientados milhares de paquistaneses desceram às ruas.

Mas a morte de Benazir não estava apenas anunciada na superfície ruidosa da agenda mediática. Realmente, ela teve o seu primeiro prenúncio, quando há muitos anos os senhores do mundo, envolvidos na guerra fria, deixaram que os militares paquistaneses enforcassem tranquilamente o seu pai, o ex-Presidente Ali Bhutto. Um Presidente laico, civil e democrático, que ocupara o poder por força de eleições e que fora derrubado por um golpe militar dos seus próprios carrascos.

O cinismo geopolítico praticado na guerra fria foi a implícita desculpa para a passividade do chamado mundo ocidental, cuidadoso na salvaguarda do apoio dos militares golpistas. Mas a guerra fria acabou, e alguns terão julgado que agora a música podia ser outra. Pura ilusão. Neste como noutros casos, todo o golpismo reaccionário, toda a desenvoltura conservadora na adulteração das regras democráticas, continuaram a ter como única resposta dos poderes dominantes do capitalismo mundial alguns murmúrios diplomáticos.



As décadas passaram. Ciclicamente, os políticos paquistaneses eleitos continuaram a ser derrubados por golpes militares. Como personagem não convidado, o fundamentalismo islâmico foi emergindo. A localização do Paquistão e o seu conflito histórico com a Índia fizeram o resto.
Ao contrário do que acontece, por exemplo, agora com o Irão, onde a simples suspeita de que daqui a alguns anos ele pode ter acesso a armas nucleares suscita pressões e ameaças, o Paquistão tornou-se tranquilamente uma potência nuclear, sem ter sofrido grandes constrangimentos.

As sequelas do acto terrorista de Nova Iorque, em 11 de Setembro, reforçaram a sua importância politico-militar, tornando-o num elemento chave na estratégia de resposta dos USA ao fundamentalismo islâmico. Todavia, o guerreirismo bronco da administração americana, ponta do iceberg da sua inépcia política, a sua pesporrência imperial e a sua incapacidade para superar vistas curtas, marcaram inapelavelmente a conjuntura política mundial, exacerbando a cólera dos milhões de pobres que sofrem no Paquistão, transformando-os num campo de recrutamento fecundo para o fundamentalismo islâmico.

E o resultado histórico da complacência das democracias ocidentais, com os USA à cabeça, para com o golpismo militar paquistanês, aí está, cada vez mais claro, cada vez mais complexo, cada vez mais perigoso.

Na verdade, o poder imperial, com a complacência dos seus acólitos, tem apostado sempre no aliado mais dócil, mesmo que ele envolva um poder anti-democrático imposto pela força militar. E assim tem deixado sucessivamente apagar os actores políticos mais maduros e consistentes, especialmente se não se caracterizam pela docilidade perante o poder imperial. E, a pouco e pouco, vão fazendo com que no terreno com poder de intervenção efectiva, só fiquem os extremos.
De um dos lados, sopra o vento do desespero e da miséria de milhões de seres humanos, temperados pela humilhação histórica de se verem eternamente desamparados e tratados como objectos descartáveis, por vezes proscritos na sua própria terra. Do outro lado, estão os aparelhos politico-militares, cada vez mais desenraizados socialmente. Se esta espiral perversa não for desfeita, a médio prazo, o fundamentalismo islâmico será provavelmente poder em países onde vivem centenas de milhões de seres humanos.

Nada nos indica que se esteja a ter em conta esse risco. Pelo contrário, há um padrão de comportamento dos poderes hegemónicos no capitalismo mundial que parece apontar no sentido oposto. Lembremos, por exemplo, como a administração americana se esforçou por enfraquecer a organização de Arafat, estrangulando-a financeiramente e apoucando-a politicamente. O resultado aí está: o Hamas tornou-se poder democraticamente e hoje a Palestina é uma realidade fragmentada em auto-dilaceração. A um adversário politicamente maduro sucedeu um interlocutor bem mais radical, menos previsível, muito mais fanático. Todos se afobam agora na ânsia de remediar o erro cometido. mas em política quase nunca se consegue fazê-lo por completo.

De facto, quanto maior é a acumulação de erros, suscitados por uma política imperial sedenta de hegemonia, quanto mais longe se estiver de uma comunidade internacional digna desse nome, de uma convivência humanizada, democrática, negociada,respeitadora da autonomia e identidade dos povos, mais riscos correrá a paz mundial, mais perto estaremos do risco de catástrofes. Efectivamente, a política simplista do "olho por olho dente por dente" é, no fundo, uma impolítica estúpida e bárbara, que se deixa contaminar pelo que mais a devia incentivar a combater os outros.

No Paquistão e noutros lugares, começa a ser evidente a existência de dois caminhos, em próxima encruzilhada , já anunciada. Um manda-nos continuar como nos últimos anos uma política de guerra, embrulhada numa retórica democrática que assim se desprestigia de dia para dia. Outro, aponta para a centralidade da paz mundial como factor de universalização de sociedades justas, o que só por si é um caminho difícil, polvilhado de soluções certamente imperfeitas, de situações constrangedoras ainda que passageiras, mas que possa fazer baixar os níveis de desespero e de sofrimento da grande fatia de humanidade que, cada vez mais, é terreno fértil para a proliferação da violência e da irracionalidade prática.

Veremos se o assassinato de Benazir é suficiente para fazer quebrar a rotina dos actuais senhores do mundo que parecem caminhar para um horizonte de catástrofe, envolvidos em lugares comuns e mergulhados numa confusa intransigência, quanto ao que julgam ser a defesa dos seus interesses particulares imediatos.

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