terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Ler, pensar e comparar


Navegava eu na internet, quando revolvi aportar ao site da revista semanal brasileira CartaCapital. Dois pequenos textos de opinião de Luiz Gonzaga Belluzzo, colunista da revista, chamaram a minha atenção.

Procurei saber um pouco mais a seu respeito. Verifiquei que nasceu em 1942, sendo economista, escritor e professor de economia na UNICAMP. Foi-lhe atribuído o Troféu Juca Pato - Intelectual do Ano de 2005. Prémio esse promovido pela União Brasileira de Escritores e ao qual ele concorrera com o seu livro “Ensaios sobre o Capitalismo no Século 20”.~

Na cerimónia de entrega do prémio, realizada no auditório da Academia Paulista de Letras, em São Paulo, o galardoado proferiu um discurso sobre a situação político-económica internacional e também sobre o Brasil. Todo ele se reveste do maior interesse, mas merece especial reflexão o extracto que vou transcrever.


“Já antes do término da 2ª Guerra Mundial, o projeto hegemônico dos vencedores, os Estados Unidos, foi desenhado com o propósito de eliminar os fatores políticos e econômicos que levaram às duas conflagrações globais. A instabilidade econômica e as rivalidades interimperialistas - entre o final do século XIX e a Segunda Guerra Mundial - foram devastadoras do ponto de vista econômico, social, moral e político. Terminado o conflito, as forças vitoriosas, democráticas e antifascistas, trataram de criar instituições destinadas a impedir a repetição da desordem destrutiva que nascera da rivalidade entre as potências e da economia destravada.

Só o maniqueísmo típico da Guerra Fria se atreveria a negar que as forças sociais e o imaginário político predominantes no New Deal tinham uma visão progressista acerca do papel a ser exercido pelos Estados Unidos. Em claro antagonismo com as práticas das velhas potências, os Estados Unidos - tomando em conta o seu auto-interesse de forma esclarecida - se empenharam na reconstrução européia e apoiaram as lutas pela descolonização.

O que se observou, a partir de então, foi um ensaio - apenas um ensaio - de uma nova ordem internacional com aspirações a garantir os direitos do homem e do cidadão, os princípios da democracia e da legalidade internacional. Isto ocorreu, é verdade, num ambiente de tensão permanente entre as duas superpotências e de competição entre os seus sistemas de vida. Ao mesmo tempo, cresciam a interdependência e a rivalidade econômica entre a Europa ocidental, os Estados Unidos e o Japão, assim com se aceleraram os processos de desenvolvimento em meio à sucessão de crises políticas e golpes de Estado na periferia.

O desenvolvimentismo - é preciso que se diga com ênfase - não foi uma invenção idiossincrática de países exóticos. Foi também uma resposta aos desafios e oportunidades criadas pela Grande Depressão dos anos 30 e seu ambiente internacional catastrófico. Os projetos nacionais de desenvolvimento e industrialização na periferia nasceram no mesmo berço que produziu o keynesianismo nos países centrais. Uma reação contra as misérias e as desgraças produzidas pelo capitalismo dos anos 20.

A onda desenvolvimentista e a experiência keynesiana tiveram o seu apogeu nas três décadas que sucederam o fim da Segunda Guerra. O clima político e social estava saturado da idéia de que era possível adotar estratégias nacionais e intencionais de crescimento, industrialização e avanço social.

Depois de trinta anos de progresso material, redução das desigualdades nos países centrais e altas taxas de crescimento na América Latina e na Ásia emergente, a crise dos anos 70 foi entendida como uma advertência e uma recomendação: era preciso dar adeus a tudo aquilo. O mal é a política. O intervencionismo do Estado, o poder dos sindicatos, o controle público da finança, os obstáculos ao livre movimento de capitais.

O conto de fadas da globalização acenava com o fim da história: as questões essenciais relativas às formas de convivência e ao regime de produção à escala mundial estariam resolvidas com a generalização da democracia liberal e da economia de mercado. Não haveria mais sentido na discussão de questões anacrônicas, como as da pertinência cívica, laica e republicana, sentimento desenvolvido a partir do nascimento do Estado-Nação e consolidado com o Estado do Bem-Estar Social.

Um jornalista do The Guardian, habitual cronista das reuniões do World Economic Forum resumiu em um parágrafo as diferenças entre o espírito das épocas, entre as reuniões de Bretton Woods e Durbaton Oaks e os encontros periódicos de Davos, onde os poderes do mundo imaginam cuidar do destino dos homens: "Clement Atlee, Ernest Bevin e Roosevelt acreditavam nos mercados administrados e no controle do capitalismo... por isso as Conferências de Bretton Woods e de Durbaton Oaks não foram patrocinadas pela Coca-Cola. As reuniões de Roosevelt não tinham o apoio do J.P Morgan, cujos funcionários, aliás, tratavam de recortar as fotos do presidente americano, para evitar acidentes, caso o patrão resolvesse ler os jornais".
O sonho do fim da história e da cidadania sem fronteiras transformou-se no pesadelo em que todos são vítimas prováveis do embate entre o desespero dos que não tem rosto - porque não têm pátria - e uma estrutura de Poder Global que se pretende absoluta, encarnada no rosto da pátria hegemônica.

A dominação pós-moderna pretende desconhecer a soberania dos estados nacionais, sem que isso signifique a criação de instâncias integradoras no âmbito internacional. Muito ao contrário: o avanço do intervencionismo unilateral provoca a desintegração dos fóruns multilaterais. A política norte-americana faz unilateralmente as intervenções preventivas ou corretivas, segundo a conjuntura. Sem regras gerais auto-aplicáveis e sem consideração pelas regras dos organismos internacionais que eles mesmos ajudaram a criar, o intervencionismo preventivo norte-americano expandiu como nunca o seu poder global.

A supremacia apoiada na superioridade das armas e no despotismo da economia desregulada dispensa as mediações da ordem jurídica e não quer ou não precisa compreender nada. A busca humana e libertadora da compreensão tende a esmaecer quando prevalece a "lógica da cacetada". A estratégia de Bush e da nova direita fundamentalista, segundo o filósofo Slavoj Zizek, é bloquear as possibilidades libertadoras da sociedade americana: "Não estou dizendo que Bush vai usar o pretexto da ameaça terrorista par instaurar uma meia ditadura militar. Não! Isso será feito de forma imperceptível, mediante regras não escritas. Alguém poderia imaginar a tortura como um tópico legítimo três ou quatro anos atrás? Minha maior preocupação é esta revolução suave, essa imperceptível mudança nas normas sociais, nas regras não escritas sobre o que é aceitável ou não".

É impossível não temer que Adorno e Horkheimer tivessem razões para sustentar a terrível suspeita: o mundo em que tentamos sobreviver é uma prova diária da degeneração da razão ocidental, transformada em mero instrumento dos métodos de domínio e conquista. Não vejo como a razão instrumental e tecnocrática, encarnada na economia - esta obra prima do que há de pior na metafísica ocidental - possa empreender a crítica de sua própria grande narrativa.
O implacável crítico inglês Terry Eagleton descreve o atual estado de coisas no mundo como um processo em que a diferenciação de atitudes, estilos, modos de ser e de governar são tão semelhantes entre si que, afinal de contas, não há nenhuma diferença entre eles. Eagleton constata que, no capitalismo globalizado, as leis de movimento do conjunto vão se tornando mais abstratas e constrangedoras e, ao mesmo tempo, as pretensões particularistas e individualistas tornam-se grotescamente infladas, ameaçando lançar a sociedade na violência e no caos.
As lideranças "renovadas" da periferia, por exemplo, tiveram os seus dias de glória. Hoje o que vemos são cadáveres boiando na enxurrada da globalização. Quanto mais crédula a adesão às torrentes da mercantilização universal, mais rasa a poça d' água em que terminam por se afogar os clones de estadistas.

Os governantes auto-intitulados progressistas - acuados pelos favores da alta finança - tratam de cortar os direitos sociais e econômicos de seus cidadãos enquanto celebram a eficiência dos mercados. Sob o pretexto de enfrentar o corporativismo e a resistência dos "direitos adquiridos", os serviçais da globalização propõem o retorno aos padrões primitivos nas relações entre o capital e o trabalho. Não satisfeitos, advogam o encolhimento sistema de proteção social criado para impedir a desgraça dos mais fracos, o sofrimento do homem comum atormentado, dia sim, dia não, pelas peripécias dos mercados.

Esses são os princípios que vêm conduzindo as "reformas", tanto as dos países desenvolvidos quanto as mimetizadas por governantes de países periféricos. Julgam, com estes programas, estar comprando o ingresso para o clube dos ricos. Estão, na verdade, trocando a saúde, a educação do povo e o sossego dos velhos por miragens. “

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