terça-feira, 6 de agosto de 2019

AS CINZAS DA SOFREGUIDÃO




AS CINZAS DA SOFREGUIDÃO

Há uma sofreguidão aflita na tentativa de apoucar politicamente este Governo, de modo a diminuir-se eleitoralmente o PS. Essa aflição sôfrega não é boa conselheira. Sem deixar de perturbar o PS, pode fazê-lo num grau maior ou menor, mas também pode virar-se contra os seus promotores. Desnorteada e descalibrada, radicando-se principalmente em ficções, distorções, empolamentos artificiais ou simples falsidades , essa sofreguidão corrói  a qualidade da democracia e inquina a racionalidade da ação política.

Centremo-nos no binómio ─ máscaras inflamáveis, inibição de familiares de certos titulares de cargos políticos celebrarem contratos com entidades públicas. São questões distintas, mas a segunda só foi trazida à ribalta mediática na esteira da eclosão da primeira.

Não discutindo a utilidade e o mérito da campanha dirigida à melhoria das condições de segurança em aldeias isoladas, perante o risco de incêndio, um órgão de comunicação social concentrou-se num dos seus aspetos parcelares, para denunciar perentoriamente o perigo gerado pela inflamabilidade de umas máscaras de proteção contra o fumo, fornecidas no âmbito da campanha referida. 

Foi aberto um inquérito e, na sequência disso, uma entidade técnico-científica de credibilidade inquestionável concluiu que as máscaras em causa afinal não eram inflamáveis. Concluiu também que a uma curta distância as máscaras, embora não se incendiassem, podiam ser eram perfuradas pelo fogo. No entanto, teve o cuidado de esclarecer que essa perfurabilidade era na prática irrelevante, uma vez que a essa curta distância quem estivesse atrás da máscara não resistiria ao fogo, com ou sem máscara. 

Mas essa perfurabilidade, independentemente disto, não desmentia a falsidade daquilo que o meio de comunicação social falsamente alegou, no que foi acriticamente seguido por outros agentes mediáticos e por vários protagonistas políticos hostis ao governo.

Durante o período  que antecedeu a revelação pública de que se estava perante um notícia falsa, houve reações públicas de membros do Governo, algumas das quais discutíveis, que foram aproveitadas para desencadear um grande alarido político-mediático. 

Revelada a natureza de falsa notícia da inflamabilidade das máscaras, não me lembro de alguém vir publicamente pedir desculpa pela falsidade que publicitou ou comentou dando-a como certa. Muitos dos objetivamente falsários preferiram esquecer o seu próprio erro, para insistirem na alegação de um excesso de reação do Governo, esquecendo-se  que ela foi uma resposta  à falsidade com que eles próprios o agrediram.

Outros, na ânsia de reduzirem o eco do seu próprio erro, descobriram três contratos celebrados com entidades públicas por uma empresa de que era sócio minoritário um filho do Secretário de Estado com maior conexão com a questão das máscaras. E na esteira de uma nova  interpretação da lei aplicável , diferente da que  nos vinte e quatro anos anteriores fora dominante, alegarem a nulidade desses contratos e a imperatividade desse Secretário de Estado perder o mandato.

Esta luminosa descoberta tinha a modesta pretensão de acabar com vinte e quatro anos do que ela pressupunha ser uma generalizada cegueira das mais diversas e qualificadas instâncias. E implicava que se imputasse a todas elas um incumprimento de uma lei durante duas dúzias de anos. 

Ouvimos desde então uma enorme variedade de cacofonias jurídicas, alheias aos mais elementares ensinamentos da teoria de interpretação das leis, mas perentórias na garantia de que, perante o que eles sabiam do alto da sua infalibilidade subjetiva ser o texto da lei, do que se tratava era de um incumprimento generalizado de uma lei durante vinte e quatro anos. Não se tratava simplesmente de uma interpretação da lei dominantemente partilhada pelos atores jurídicos, políticos e administrativos mais  relevantes, contrária àquela agora invocada na esteira do caso das máscaras falsamente incendiáveis.

Aliás, uma recente alteração legislativa já consumada, mas ainda não vigente, viera clarificar o texto legal, de modo a tornar mais nítido o entendimento dominante desde 1995.

E como não há ciência jurídica que obrigue os atores jurídicos ao absurdo, como a própria teoria da interpretação das leis integra mecanismos e conceitos que previnem  esse risco, vale a pena olhar através do simples bom senso para o que está substancialmente em causa neste caso.

Se realmente a lei impusesse aquilo que os precipitados inovadores dizem que ela impõe, isso implicaria um conjunto de consequências práticas que arrepiariam o simples bom senso.

Desse modo, suponhamos que uma empresa de que fosse sócio A filho de um membro do Governo B (ou de qualquer outro dos múltiplos titulares de cargos públicos alegadamente abrangidos pela lei) resolvia no âmbito da sua esfera jurídica celebrar um contrato que essa visão da lei não admite. Sendo A minoritário na empresa, mesmo que fosse contra a celebração desse contrato, isso seria irrelevante na prática. Aliás,  mesmo uma decisão a que ele fosse contrário podia fazer com que o pai B  perdesse o mandato. No entanto, mesmo que A tivesse concordado com a celebração do tal contrato não vemos como um comportamento seu pudesse fazer repercutir na esfera jurídica de um outro sujeito jurídico (B) as consequências sancionatórias do seu ato.
Do mesmo modo, é difícil admitir que o sócio maioritário de uma empresa possa deixar de poder fazer contratos com entidades públicas só porque o pai de um dos seus sócios minoritários (mas com uma percentagem que exceda um certo limite) entra para um Governo.

Basta o que se acaba de dizer, para vermos como é absurdo pensar-se que estamos perante uma falha incompreensível no cumprimento da lei, por parte de múltiplas entidades públicas durante vinte e quatro anos e não perante o simples funcionamento normal das instituições. A simples sofreguidão para criar dificuldades ao atual Governo não me parece suficiente para tornar lógico o absurdo.

De facto, teria sido necessário que, ao longo de vinte e quatro anos, Governos de cores diferentes e as respetivas oposições deixassem passar em branco aquilo que estariam a ser sucessivas ilegalidades: uns praticando-as, outros não as denunciando. E os que as praticavam hoje eram aqueles que as não denunciavam amanhã, sendo certo que mesmo os partidos habitualmente exteriores aos centros de poder político também se teriam calado, durante quase um quarto de século.

Se a isto juntarmos o facto dessa posição implicar que se devesse achar natural que todas as empresas que poderiam beneficiar com a nulidade desses contratos tivessem renunciado a essa possível vantagem durante vinte e quatro anos, entramos ainda mais dentro do território do absurdo.

Na esteira da mesma sofreguidão mediática, três Ministros foram trazidos à colação pelo mesmo motivo. Curiosamente, o cônjuge de uma Ministra envolvida fora questionado, numa estação televisiva,  há uns meses atrás sobre a inibição que esse vínculo conjugal podia gerar no que diz respeito à sua prestação de serviços jurídicos ao Estado. O questionado, um prestigiado Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,  excluiu  sumária e perentoriamente a existência de qualquer razão de ser da questão que lhe foi colocada. Não tive notícia de ninguém ter vindo publicamente pôr em causa essa posição.

É politicamente compreensível que o Governo tenha pedido um parecer jurídico ao Ministério Público. Os partidos de direita em registos vários foram tentando participar na festa sem se queimarem, os partidos de esquerda aliados ao PS nesta solução de governo não escaparam a uma ambiguidade discreta, o PS procurou ficar naturalmente em linha com as posições do Governo.

Um olhar rápido mostra como os partidos de direita esbracejam politicamente agarrados às saias das notícias falsas e como os poderes mediáticos dominantes, procurando levá-los ao colo, vão cavando mais fundo a crise da sua credibilidade. Não sabem como vencer este Governo. Não sabendo evidenciar  uma capacidade maior para  melhorarem a qualidade de vida do nosso povo , agarram-se  ao sonho de pelo menos  o enlamearem com as suas intrigas, no que realmente são peritos. É um caminho que não os leva longe. Mas o mais estranho é espantarem-se com o facto da sua rasteirice mesquinha  não  produzir os efeitos com que sonharam.


Sem comentários: