AS CINZAS DA SOFREGUIDÃO
Há uma sofreguidão aflita na tentativa de apoucar
politicamente este Governo, de modo a diminuir-se eleitoralmente o PS. Essa
aflição sôfrega não é boa conselheira. Sem deixar de perturbar o PS, pode
fazê-lo num grau maior ou menor, mas também pode virar-se contra os seus
promotores. Desnorteada e descalibrada, radicando-se principalmente em ficções,
distorções, empolamentos artificiais ou simples falsidades , essa sofreguidão corrói
a qualidade da democracia e inquina a
racionalidade da ação política.
Centremo-nos no binómio ─ máscaras inflamáveis,
inibição de familiares de certos titulares de cargos políticos celebrarem
contratos com entidades públicas. São questões distintas, mas a segunda só foi
trazida à ribalta mediática na esteira da eclosão da primeira.
Não discutindo a utilidade e o mérito da campanha dirigida
à melhoria das condições de segurança em aldeias isoladas, perante o risco de
incêndio, um órgão de comunicação social concentrou-se num dos seus aspetos parcelares,
para denunciar perentoriamente o perigo gerado pela inflamabilidade de umas
máscaras de proteção contra o fumo, fornecidas no âmbito da campanha
referida.
Foi aberto um inquérito e, na sequência disso, uma
entidade técnico-científica de credibilidade inquestionável concluiu que as
máscaras em causa afinal não eram inflamáveis. Concluiu também que a uma curta
distância as máscaras, embora não se incendiassem, podiam ser eram perfuradas
pelo fogo. No entanto, teve o cuidado de esclarecer que essa perfurabilidade
era na prática irrelevante, uma vez que a essa curta distância quem estivesse
atrás da máscara não resistiria ao fogo, com ou sem máscara.
Mas essa perfurabilidade,
independentemente disto, não desmentia a falsidade daquilo que o meio de comunicação
social falsamente alegou, no que foi acriticamente seguido por outros agentes
mediáticos e por vários protagonistas políticos hostis ao governo.
Durante o período que antecedeu a revelação
pública de que se estava perante um notícia falsa, houve reações públicas de
membros do Governo, algumas das quais discutíveis, que foram aproveitadas para
desencadear um grande alarido político-mediático.
Revelada a natureza de falsa
notícia da inflamabilidade das máscaras, não me lembro de alguém vir
publicamente pedir desculpa pela falsidade que publicitou ou comentou dando-a como
certa. Muitos dos objetivamente falsários preferiram esquecer o seu próprio
erro, para insistirem na alegação de um excesso de reação do Governo,
esquecendo-se que ela foi uma
resposta à falsidade com que eles
próprios o agrediram.
Outros, na ânsia de reduzirem o eco do seu próprio
erro, descobriram três contratos celebrados com entidades públicas por uma
empresa de que era sócio minoritário um filho do Secretário de Estado com maior
conexão com a questão das máscaras. E na esteira de uma nova interpretação da lei aplicável , diferente da
que nos vinte e quatro anos anteriores fora
dominante, alegarem a nulidade desses contratos e a imperatividade desse
Secretário de Estado perder o mandato.
Esta luminosa descoberta tinha a modesta pretensão
de acabar com vinte e quatro anos do que ela pressupunha ser uma generalizada
cegueira das mais diversas e qualificadas instâncias. E implicava que se
imputasse a todas elas um incumprimento de uma lei durante duas dúzias de anos.
Ouvimos desde então uma enorme variedade de cacofonias jurídicas, alheias aos
mais elementares ensinamentos da teoria de interpretação das leis, mas
perentórias na garantia de que, perante o que eles sabiam do alto da sua
infalibilidade subjetiva ser o texto da lei, do que se tratava era de um
incumprimento generalizado de uma lei durante vinte e quatro anos. Não se
tratava simplesmente de uma interpretação da lei dominantemente partilhada
pelos atores jurídicos, políticos e administrativos mais relevantes, contrária àquela agora invocada
na esteira do caso das máscaras falsamente incendiáveis.
Aliás, uma recente alteração legislativa já
consumada, mas ainda não vigente, viera clarificar o texto legal, de modo a tornar
mais nítido o entendimento dominante desde 1995.
E como não há ciência jurídica que obrigue os atores
jurídicos ao absurdo, como a própria teoria da interpretação das leis integra
mecanismos e conceitos que previnem esse
risco, vale a pena olhar através do simples bom senso para o que está substancialmente
em causa neste caso.
Se realmente a lei impusesse aquilo que os
precipitados inovadores dizem que ela impõe, isso implicaria um conjunto de
consequências práticas que arrepiariam o simples bom senso.
Desse modo, suponhamos que uma empresa de que fosse
sócio A filho de um membro do Governo B (ou de qualquer outro dos múltiplos
titulares de cargos públicos alegadamente abrangidos pela lei) resolvia no
âmbito da sua esfera jurídica celebrar um contrato que essa visão da lei não
admite. Sendo A minoritário na empresa, mesmo que fosse contra a celebração desse
contrato, isso seria irrelevante na prática. Aliás, mesmo uma decisão a que ele fosse
contrário podia fazer com que o pai B perdesse o mandato. No entanto,
mesmo que A tivesse concordado com a celebração do tal contrato não vemos como
um comportamento seu pudesse fazer repercutir na esfera jurídica de um outro
sujeito jurídico (B) as consequências sancionatórias do seu ato.
Do mesmo modo, é difícil admitir que o sócio
maioritário de uma empresa possa deixar de poder fazer contratos com entidades
públicas só porque o pai de um dos seus sócios minoritários (mas com uma
percentagem que exceda um certo limite) entra para um Governo.
Basta o que se acaba de dizer, para vermos como é
absurdo pensar-se que estamos perante uma falha incompreensível no cumprimento
da lei, por parte de múltiplas entidades públicas durante vinte e quatro anos e
não perante o simples funcionamento normal das instituições. A simples
sofreguidão para criar dificuldades ao atual Governo não me parece suficiente
para tornar lógico o absurdo.
De facto, teria sido necessário que, ao longo de
vinte e quatro anos, Governos de cores diferentes e as respetivas oposições deixassem
passar em branco aquilo que estariam a ser sucessivas ilegalidades: uns
praticando-as, outros não as denunciando. E os que as praticavam hoje eram
aqueles que as não denunciavam amanhã, sendo certo que mesmo os partidos
habitualmente exteriores aos centros de poder político também se teriam calado, durante quase um quarto de século.
Se a isto juntarmos o facto dessa posição implicar
que se devesse achar natural que todas as empresas que poderiam beneficiar com
a nulidade desses contratos tivessem renunciado a essa possível vantagem durante
vinte e quatro anos, entramos ainda mais dentro do território do absurdo.
Na esteira da mesma sofreguidão mediática, três
Ministros foram trazidos à colação pelo mesmo motivo. Curiosamente, o cônjuge
de uma Ministra envolvida fora questionado, numa estação televisiva, há uns meses atrás sobre a inibição
que esse vínculo conjugal podia gerar no que diz respeito à sua prestação de
serviços jurídicos ao Estado. O questionado, um prestigiado Professor
Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, excluiu
sumária e perentoriamente a existência de qualquer razão de ser da questão que lhe foi
colocada. Não tive notícia de ninguém ter vindo publicamente pôr em causa essa
posição.
É politicamente compreensível que o Governo tenha
pedido um parecer jurídico ao Ministério Público. Os partidos de direita em
registos vários foram tentando participar na festa sem se queimarem, os partidos
de esquerda aliados ao PS nesta solução de governo não escaparam a uma
ambiguidade discreta, o PS procurou ficar naturalmente em linha com as posições
do Governo.
Um olhar rápido mostra como os partidos de direita esbracejam politicamente
agarrados às saias das notícias falsas e como os poderes mediáticos dominantes,
procurando levá-los ao colo, vão cavando mais fundo a crise da sua
credibilidade. Não sabem como vencer este Governo. Não sabendo evidenciar uma capacidade
maior para melhorarem a qualidade de vida do nosso povo , agarram-se ao
sonho de pelo menos o enlamearem com as suas intrigas, no que realmente são peritos. É um caminho que não os leva longe. Mas o mais estranho é espantarem-se
com o facto da sua rasteirice mesquinha não produzir os efeitos
com que sonharam.
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