domingo, 9 de setembro de 2018

O PRESTÍGIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO - uma fantasia interessada




O PRESTÍGIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
         - uma fantasia interessada

1. Está em curso uma campanha promovida pela direita justicialista para pressionar o Governo , constrangendo-o a propor a recondução da atual Procuradora- Geral da República (PGR) ao Presidente da República, a quem cabe nomeá-la sob proposta do Governo, para  um eventual segundo mandato.

Nunca, na vigência do atual quadro legal, ocorreu qualquer recondução. Há uns tempos atrás, a própria Procuradora exprimiu publicamente a posição de que entendia que o seu mandato era único. O mesmo aconteceu com o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público.

A mudança de regime jurídico que gerou o atual teve como objetivo central acabar com a admissibilidade da repetição ilimitada do mandato do PGR que,  até então, apenas dependia da vontade política de quem intervinha na sua nomeação. O mandato único prolongado parece ter sido a opção que foi seguida. Mas essa opção não ficou consagrada expressamente.

O argumento principal mais correntemente aduzido para a recondução da atual PGR é o de que o seu mandato foi um êxito que prestigiou o Ministério Público e a ordem jurídica portuguesa. Esta ideia de um mandato excelente proclamada por jornalistas, políticos e comentadores, é ancorada na afirmação recorrente do apreço que por ela têm os portugueses.

Poucas  vozes audíveis ousam erguer-se no espaço público para questionar esse novo dogma. E, no entanto, esse dogma exprime uma falsidade. Uma falsidade desesperadamente ocultada  pela nuvem mediática conservadora, que tanto se tem esforçado por enublar a verdade.

Aliás, bastaria o modesto esforço de ler o Expresso, certamente isento da suspeita de malvadez contra os arcanjos da coisa pública, para verificar que afinal os portugueses não vivem entusiasmados quanto à qualidade  do mandato de Joana Marques Vidal.

De facto, na hierarquia do prestígio e apreço públicos, os magistrados do Ministério Público batem ingloriamente os juízes na conquista do último lugar. É isso que nos mostra um estudo de opinião publicado em julho passado no Expresso. Consideram positiva a atuação do Ministério Público 15,3 % dos inquiridos, enquanto 34,7 % a acham negativa, o que significa um saldo negativo de 19,4%; 30,6% não a acham boa nem má. Nesta sondagem, nenhum outro órgão público tem saldo negativo, tendo alguns um forte saldo positivo. E, se olharmos para estudos idênticos publicados no último ano, podemos ver que os números obtidos não se afastam muito dos acima referidos.

Portanto, os comentadores, os jornalistas e os políticos que formulam opiniões com base na ideia de que o mandato da atual PGR projeta  uma imagem pública positiva,  estão enganados ou querem enganar-nos, confiando na nossa distração.

2. É óbvio que não depende da popularidade do possível  nomeado a legitimidade da escolha de um PGR por quem tenha competência legal para o fazer. Mas muito menos se pode, com decência, procurar condicionar uma escolha com alegações falsas. Menos ainda quando a falsidade dessas alegações é evidente e facilmente verificável.

A mesma nuvem mediática dá uma cor de excelência a tudo o que o MP fez acontecer nos últimos anos e esquece qualquer notícia de algo que tenha corrido mal. Mas basta que nos concentremos nas violações do segredo de justiça para se tornar notória uma deficiência grave no modo como tem funcionado o MP ao longo do mandato da atual PGR.

E não se está a falar de uma falha funcional esporádica e não premeditada. Está-se a falar de comportamentos reiterados que indiciam um padrão de promiscuidade entre uma parte da comunicação social e alguns protagonistas judiciais, entre os quais surgem muitas vezes como mais prováveis alguns magistrados do MP.

Embora pela sua natureza esta promiscuidade só seja mediaticamente apetecível quanto a alvos de elevada notoriedade pública ou de grande peso institucional, está na disponibilidade dos protagonistas do aparelho judicial a decisão de a praticar. Mas quem a praticar infringe a legalidade.

Em regra, as fugas de informação em fases iniciais dos processos são favoráveis aos desígnios de quem pretende acusar e mancham, muitas vezes indelevelmente, e desde logo, a reputação dos potenciais ou reais arguidos. As versões dos acusadores públicos são difundidas pela comunicação social como verdade substancial, instituída e final. E assim,  por vezes  durante anos, vão decorrendo em lume branco verdadeiros linchamentos mediáticos, apesar de se estar longe de qualquer julgamento final definitivo que condene ou absolva. 

Desse modo, está a aplicar-se desde logo uma pena pública de enxovalho ético, sem que o visado se possa defender com armas iguais. Um enxovalho consubstanciado em imputações mediático-políticas, cuja força depende, quase exclusivamente, de serem apresentadas como oriundas do aparelho judicial. Para muitos dos visados é mais penalizadora a exposição prolongada a campanhas de descredibilização ética e de forte reprovação social do que um cumprimento de pena.

Ou seja, em alguns casos um processo de investigação desdobra-se à partida em dois processos distintos: um processo judicial normal em regra prolongado com um respeito aceitável pelo contraditório, e um linchamento mediático, em regra feito a partir de uma enorme desproporção e forças, entre quem é linchado simbolicamente e quem lincha. Esta segunda vertente do processo é ilegal e é vergonhosa.

Embora, em regra, nos casos mais mediáticos, as fugas de informação convenham às acusações, não se tem provado que elas partam em exclusivo ou sequer principalmente do MP. É lógico que o sejam, mas não se têm  provado. Em contrapartida ,não há dúvida que, se os protagonistas do MP envolvidos nesses processo tivessem uma vontade firme de se oporem a essas fugas , seria muito difícil, ou até impossível, elas ocorrerem com a extensão com que se conhece.

Esta promiscuidade dificilmente será imune a estratégias de aproveitamento, nomeadamente de aproveitamento político, para se atingirem por via judicial o que se não consegue atingir pela via política, legítima e democraticamente. Não quer dizer que o seja necessariamente, mas não há nenhum obstáculo estrutural que o impeça.
Daí resultará, naturalmente, que o pluralismo ideológico e político da sociedade portuguesa conduza à aprovação ou ao consentimento de uns e à reprovação de outros.  Mas, uns e outros, no seu íntimo, ficarão mais céticos quanto à imparcialidade da máquina judicial. Pode ser que no momento em que enfrentem uma imparcialidade que lhes agrade se disponham a aplaudir, mas sabem que se mudar o vento ela  pode virar-se contra eles.

Como se vê, a promiscuidade acima mencionada não é uma sequela menor da questão do segredo de justiça, encarando-se esta como um problema técnico-jurídico sem verdadeira relevância. Ao contrário, é uma grave insalubridade estrutural do sistema judiciário que lesa gravemente a qualidade do trabalho judicial e desprotege os cidadãos num ponto nevrálgico da sua vida e dos seus direitos.

Desta maneira, ainda que tudo o resto fosse excelente, não se percebe como, perante esta falha tão grave, alguém possa apelar para que, quem não se mostrou capaz de a colmatar, continue a liderar o MP. Não se trata de alegar uma falha que justificasse uma demissão, trata-se de constatar uma impotência que, a prolongar-se, não será certamente benéfica para o sistema jurídico e para a democracia. Admitir sequer a recondução é por isso discutível, mas invocar o histórico do mandato como impulso para essa renovação é verdadeiramente caricato.

As sondagens que acima mencionei mostram que os  portugueses estão cientes dessas limitações, ao contrário da nuvem mediática insalubre e dos arautos justicialistas da direita mais sôfrega, a qual  tem oscilado neste campo  entre a desfaçatez e a pura desonestidade intelectual e política.

Há uma decisão a tomar, quanto a quem vai desempenhar as funções de PGR nos próximos seis anos, que cabe conjugadamente a dois órgãos de soberania por força da lei, o que torna impossível a qualquer deles nesta matéria ignorar o outro. Desse modo, para nenhum deles seria inteligente tentar forçar uma solução que não fosse justificável e objetivamente defensável. Ao  Presidente da República cabe a palavra final, ao Governo cabe fazer a proposta, devendo cada  um deles, naturalmente, exercer livremente os poderes de que dispõe.

Para concluir, não posso deixar de registar que a direita mais justicialista e a nuvem mediática insalubre se acham no direito de dizer a António Costa o que ele deve fazer, impedindo-se no entanto de ronronar a mais leve sugestão quanto ao que deve fazer neste caso Marcelo Rebelo de Sousa.


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