quinta-feira, 5 de maio de 2011

SOB O VERNIZ



Dia após dia, vão-se acumulando indícios de que Passos Coelho é um simples verniz político. Reveste-se de cores garridas, para chamar à atenção, procura tonalidades que sugiram profundidade, mas as suas propostas vêm demasiadas vezes eivadas de uma superficialidade chocante, quando não reflectem uma forte contaminação demagógica.

Ontem, a fazer fé na imprensa, ofereceu-nos mais uma das suas pérolas. Incluiu na sua carta de intenções programáticas a enérgica descida do número de deputados para 181.

Não trago aqui à colação de momento o mérito substancial da proposta, embora seja estranho que se esqueça que Portugal, entre os países membros da União Europeia, é um dos que têm um número menor de deputados em termos relativos, isto é, comparando a população com o número de deputados. Embora alguns pavões ignorantes continuem a insistir no contrário, há informação, estudos e até teses de doutoramento, onde se podiam esclarecer. Por outro lado, uma diminuição do número de deputados pode enfraquecer em demasia a representação parlamentar directa de algumas áreas do território nacional. Por último, sabe-se que em virtude da geografia eleitoral portuguesa há uma vantagem relativa importante do PSD em face do PS: o PSD precisa de uma percentagem de votos menor do que a do PS para atingir a maioria absoluta dos deputados. Dir-se-á: é um detalhe sem grande importância. Mas se nos lembrarmos que se tivesse sido o PSD a ter tido os votos que teve o PS de Guterres, teria tido duas maiorias absolutas, e o PS não as teve, não seremos tão displicentes. Ora, a diminuição do número de deputados alarga essa diferença, beneficiando sempre por si só o PSD em detrimento do PS. E se é certo que as leis eleitorais devem ser neutras, não se podem ignorar os favorecimentos e os prejuízos que suscitem as suas alterações.Estas considerações bastariam, por si sós, para fazer com que se pensasse duas vezes antes de seguir o salazarento preconceito anti-parlamentar que induz uma estranha cólera popular contra tudo o que é eleito, mas principalmente contra os deputados. Foi desse insalubre preconceito anti-democrático que Passos Coelho não hesitou em procurar aproveitar-se.

Acresce a tudo isso, a necessidade de uma maioria de dois terços para se fazerem as alterações que Passos Coelho prometeu como se dependessem da sua vontade, da vontade de uma simples maioria parlamentar. Lançar propostas destas numa campanha, num tom de pressão e demarcação do partido sem cujos votos tais medidas não serão aprovadas, não parece por isso o caminho mais inteligente, para quem queira realmente ver essas medidas aprovadas.

Por isso, das duas uma: ou Passo Coelho inscreveu nas suas intenções programáticas uma medida que não depende de uma eventual maioria que alcance, sendo indispensável o apoio de um partido do qual ele se pretende distinguir precisamente através dessa medida ( e assim, se estiver s ser sincero é imprudente, porque não tem condições para, sem o apoio do PS), atingir esse objectivo; ou apenas está a fazer chicana política, usando um tema político do maior relevo como arma de propaganda.

Nem uma nem outra hipótese são lisonjeiras, sendo ambas indícios preocupantes da superficialidade política do seu autor. Por isso, cada vez é mais legítimo desconfiar-se que por debaixo do verniz mediático que reveste Passos Coelho exista apenas um imenso vazio.

3 comentários:

jvcosta disse...

Este texto acaba por refletir uma visão de centrão, mesmo que conflitual. O essencial como consequência da redução do número de deputados não tem a ver com o balanço PS-PSD, Dupont-Dupond. Tem a ver é com a penalização da representação proporcional, não geográfica, como refere RV, mas partidária. A penalização é perincipalmente dos partidos mais pequenos, porque PS+PSD governam-se bem. Se mais um se mais outro, é coisa para o diabo escolher.

Noto neste Zoo, que vinha a ler regularmente, uma clara inflexão no sentido da ortodoxia PS, à querido líder. Não é crítica minha, porque claro que o autor tem o direito de tomar as posições que entende. Mas também talvez lhe interesse pensar se vai continuar a ter leitores fora do seu partido, quando talvez nem os tenha no seu partido. Não se pode ter o bolo e comê-lo.

Rui Namorado disse...

1. Todos nós temos a fraqueza de querer ser lidos, mas provavelmente não o seremos se torcermos o que pensamos na mira de aumentar o espectro dos nossos leitores.Isto sem menosprezo pela possível perda de leitores consistentemente críticos como é o caso de JVC.

2.É provável que, na presente conjuntura, eu seja especialmente marcado por ela, quando escrevo; mas também é natural que, da sua parte, haja uma tendência mais forte para o desagrado pelo meu alinhamento.

3. Não pretendi analisar por completo a questão da diminuição do número de deputados, mas sublinhar o significado de uma proposta. Concordo que a proporcionalidade entre votos e mandatos é um indício irremovível da qualidade democrática de um sistema eleitoral. E, pela própria natureza das coisas, ignorá-la penaliza especialmente os partidos com menos peso eleitoral. Não conheço vozes de apoiantes do PCP ou do BE que defendam a diminuição do número de deputados, mas é público que há dentro do PS quem estupidamente o admita. Talvez por isso tenha acentuado essa vertente da questão.

4. Não me considero integrado em qualquer centrão e acho que a lógica política que o encara positivamente é estéril e perversa, embora o possa admitir muito episodicamente num estado de necessidade.Se excluirmos este último aspecto, provavelmente, o que nos divide neste caso é a escolha da melhor maneira de inviabilizar na prática esse centrão. Mas este é um tema que não pode ser discutido numa instância tão apressada como esta.

jvcosta disse...

Obrigado. Gostei da sua resposta. A falar é que a gente se entende. E insisto num ponto: longe de mim arrogar-me o direito de criticar o que cada um entende escrever no seu próprio espaço de escrita, em termos de posicionamento e escolha polkítica. Criticar o conteúdo é que é outra coisa.