segunda-feira, 1 de junho de 2020

9 - UM LIVRO, UM POETA - Pablo Neruda




9 - UM LIVRO, UM  POETA -  Pablo  Neruda

Hoje, evoco um poeta radicalmente chileno e completamente universal. De uma universalidade que chegou ao coração dos povos, antes de ter conduzido Pablo Neruda em 1971, ao clube restrito dos que conquistaram o Prémio Nobel da Literatura. Um poeta que teceu uma épica emancipatória, enraizada no sofrimento dos explorados e dos oprimidos, exprimindo-a na paisagem calorosa das suas palavras, irmãs de planícies e de montanhas, e da larga respiração da esperança.
Regresso recorrendo a um livro lendário ─ “Los versos del capitan” ─, publicado pela primeira vez em 1952, em Nápoles, numa edição restrita com omissão da identidade do autor. Um livro que nasceu sem autor, ou cujo autor começou por se omitir.
 É um livro de júbilo e homenagem que tem as suas raízes num amor que se supõe concreto. São poemas de amor que não se deixam aprisionar na mulher que os inspira, porque constantemente fazem passar através dela, do seu corpo construído pelas palavras mágicas do poeta, o marulhar profundo da cólera dos povos.
Abre-o uma carta vinda de Havana, datada de outubro de 1951, escrita pela suposta musa que fez nascer o livro, Rosario De La Cerda. Como elemento da própria ocultação da identidade do autor, diz-nos ela: “Lamento não poder indicar o seu nome. Nunca soube qual era o verdadeiro, se Martinez, Ramirez ou Sanchez. Eu chamo-o simplesmente meu Capitão e este é o nome que quero conservar neste livro.”
Numa explicação, datada de novembro de 1963 (Isla Negra)  que abre a edição publicada na Argentina pela Editorial Losada, em 1964, escreveu Pablo Neruda : “ Entrego, pois, este livro sem explicá-lo mais, como se fosse meu e não o fosse: basta que possa andar sozinho pelo mundo e crescer por sua conta. Agora que o reconheço, espero que o seu sangue furioso me reconheça também.”
Vou hoje transcrever dois poemas de Pablo Neruda, extraídos de uma tradução em português de Albano Martins que a ambos dignifica. Esta edição do livro ”Os Versos do Capitão” foi publicada no Porto, pelo Campo das Letras, em 1996. Ei-los:



O OLEIRO

Há em todo o teu corpo
uma taça ou doçura a mim destinada.

Quando levanto a mão
encontro em cada lugar uma pomba
qua andava à minha procura, como
se te houvessem, meu amor, feito de argila
para as minhas mãos de oleiro.

Os teus joelhos, os teus seios,
a tua cintura,
faltam em mim como no côncavo
duma terra sedenta
a que retiraram
uma forma,
e, juntos,
estamos completos como um só rio,
como um só areal.


O TIGRE

Sou o tigre.
Espio-te entre as folhas
largas como lingotes
de mineral molhado.

O rio branco cresce
sob a névoa. Chegas.
Nua, mergulhas.
Espero.

Então, num salto
de fogo, sangue, dentes,
com uma pancada derrubo
teu peito, tuas ancas.


Bebo o teu sangue, despedaço-te
os membros um a um.

E fico a velar
durante anos, na selva,
teus ossos, tua cinza,
imóvel, longe
do ódio e da cólera,
desarmado em tua morte,
enredado nos cipós,
imóvel à chuva,
sentinela implacável
do meu amor assassino.


Sem comentários: