O
estranho fantasma da maioria absoluta
O simplismo
jornalístico tecido pelo predomínio dos comentários rápidos, desde há décadas
que impregnou a esfera mediática em Portugal com a ideia de que o facto de um partido
político pedir uma maioria absoluta numa eleição tinha um
significado político substancial. Ou seja, a ideia de que pedir a cada eleitor
a maioria absoluta ia condicionar significativamente o seu voto num sentido que
fosse favorável ao suplicante.
Se a cada eleitor fosse
dada a possibilidade de exprimir a sua opinião sobre a bondade de uma maioria
absoluta (hipótese aliás impensável, sendo claro que cada eleitor pode achar
bem ou mal que o partido em que vota tenha maioria absoluta, mas seguramente
que não achará bem que um partido em que não vota possa dispor dela),
compreendia-se que as candidaturas pugnassem ou não pela sua obtenção. Mas como
a cada eleitor é apenas dada a faculdade de manifestar a sua preferência por
uma candidatura específica, pedir-lhe uma maioria absoluta não faz sentido. Na
verdade, não sabendo cada um de nós a opção dos outros, o nosso voto não poder
ser condicionado racionalmente pela nossa opinião sobre uma eventual maioria
absoluta deste ou aquele partido.
Nada disso impressiona,
no entanto, o trôpego pensamento dominante na esfera mediática. Pelo contrário,
o fantasma da maioria absoluta transformou-se numa categoria política, usada
para temperar os impulsos analíticos de muitos comentadores encartados e, pasme-se,
dos próprios porta-vozes formais ou informais de partidos políticos.
Todavia, como a cada
suspeito de aspirar à gulodice suprema de uma maioria absoluta é concedida a
prudência de a não pedir expressamente, foi emergindo da neblina em causa a
desconfiança de que mesmo não sendo pedida ela era afinal claramente sugerida
pelos suspeitos. Um sublinhado mais expressivo, um adjetivo mais forte, um
sorriso mais matreiro, uma cominação mais enérgica, passaram a ser suficientes
para se imputar com segurança a um acusado,
não só o sonho secreto de uma maioria absoluta, mas também a insidiosa
ousadia de a sugerir aos eleitores alegadamente desprevenidos. E a discussão da
substância das propostas e da agilidade dos protagonistas passou a ser
polvilhada com intensidade crescente por um denso filosofar sobre as maiorias
absolutas que ora nos acena com previsões luminosas, ora nos mostra pesadelos
noturnos. Os mais piedosos chegam mesmo a recorrer ao supremo argumento da
ética, ainda que muitas vezes torcida pela insidiosa força das conveniências
próprias.
Hoje, reduzido a pó,
pela força das cosias, o imprudente desígnio da Dr.ª Cristas de ocupar a
cadeira do poder pela força irresistível de uma alegada onda de eleitores
distraídos, resta a desconfiança que impende sobre o PS de ruminar no segredo
dos seus corredores mais remotos o sonho de uma maioria absoluta. Os filósofos
da intriga política, os garnisés circunspectos que cercam o PS, os tenores mais
tonitruantes das várias partituras partidárias, analisam meticulosamente o
dia-a-dia do PS. Ora mostram como essa maioria absoluta é um sonho impossível,
ora denunciam a sua sombra oculta nesta ou naquela medida, nesta ou naquela
posição, ora qualificam desde já como derrota uma hipotética vitória do PS que
a não alcance.
E, no entanto, essa
confusão virtual pode desfazer-se num segundo. Basta que qualquer de nós
aplique sem excesso um pouco da sua racionalidade, para que fique claro que
este tema, tal como é apresentado, não existe.
De facto, o que é real
é que cada partido procure ter o mais vasto apoio eleitoral possível. Não é
mesmo concebível que isso não aconteça. Essa ambição é naturalmente calibrada
pelos resultados anteriores e pelos estudos de opinião. Não é impossível, mas não é provável, que um
Partido que ronde habitualmente os dez por cento ou mesmo os vinte por cento
chegue à maioria absoluta. É mais provável, ainda que naturalmente difícil, que
um Partido que se situe frequentemente
acima dos trinta por cento , possa chegar á maioria absoluta. Na atual
conjuntura, só ao PS parece possível chegar a esse patamar , ainda que mesmo
quanto a ele isso se mostre difícil e até improvável.
Atingir-se essa
maioria, no entanto, não vai depender do facto de a pedir ou não pedir, ou da
opinião que os eleitores tenham quanto a uma maioria absoluta. Depende da soma
das decisões dos eleitores de votarem no PS pela identificação que tenham com a
sua política ou pela concordância que lhe mereça a sua governação.
E atingir esse objetivo
depende mais da capacidade de o PS suscitar uma identificação mais sólida com a
base social que potencialmente tem um interesse objetivo numa política de
igualdade e de justiça, ou seja, com os
setores populares que nele se reconhecem
ou podem reconhecer, do que de eventuais
narizes de cera retóricos, aparentemente habilidosos, que possam espalhar-se
pelo espaço mediático.
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