quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

À Procura das Funções do Estado



1. Nas páginas onde se escreve o discurso político e até em algumas das pequenas, médias e grandes arenas, onde se travam os respectivos combates, aflora uma circunspecta preocupação quanto às funções do Estado.

É com se, de repente, umas tantas centenas de cérebros se tivessem acendido, por força de uma providência que a todos nos transcende, e tivessem assumido, em conjunto, a generosa tarefa de iluminar o espírito dos actores políticos mais ostensivos e, principalmente, dos timoneiros que conduzem o aparelho de Estado.
E se no seio dessa legião luminosa, que nos quer ajudar a descobrir os caminhos para onde deveremos empurrar o Estado, quer ele queira quer não, se distinguem muitos dos mais subtis arautos do neoliberalismo imperante, não pode deixar de se reconhecer que, também aí, se detectam muitos honestos promotores de uma crítica insistente a esse neoliberalismo.

É certo que esse grande projecto de investigação acerca do Estado continua ainda a ser um grande salto nunca dado, embora muitos continuem a tomar balanço para ele. Mesmo assim, todavia, assombra já os corredores dos templos da sabedoria, contamina a tranquilidade dos areópagos políticos e espreita nas páginas dos panfletários de serviço, embora assemelhando-se mais a uma velada ameaça não cumprida do que a uma boa intenção frustrada.

Na verdade, nos meandros dessa sombra, acabamos sempre por encontrar as pegadas de uma vulgata neoliberal, que só não o é por completo, graças à subtileza com que se insinua. De facto, no fundo no fundo, se virmos bem, ela acaba por olhar para o Estado como para o mafarrico, porfiando na empresa de o ir enfraquecendo, para mais facilmente o poder transformar numa espécie de ronronante cão de luxo dos poderosos, encarregado de miar carinhosamente contra os donos, mas disposto a morder sem piedade em quem os incomode.

É certo que, no seio dessa nebulosa de potenciais estudiosos, que ambicionam construir o catálogo sólido e definitivo das funções do Estado, alguns cultivam a esperança de que será a estabilização de um catálogo consensual das funções do Estado, o dique capaz de conter a enxurrada das mistificações neoliberais, acerca dessas funções. Não questiono as suas intenções, mas desconfio da sua eficácia.

Na verdade, se estes últimos me pedissem um atestado de honestidade intelectual e de boas intenções, descontada a ilegitimidade absoluta de, seja quem for, atestar coisas dessas, passá-lo-ia sem hesitar. Mas, se me pedissem para me juntar a eles na exaltação da utilidade da pesquisa das funções em causa, não os poderia acompanhar.
De facto, o Estado ou é um animal livre ou não serve para nada. É certo que os cidadãos revelariam a mais funda imprudência se não garantissem perante ele a sua esfera de liberdade, individual e colectiva. Mas uma coisa é a nossa indispensável afirmação de cidadãos livres perante um Estado livre, mas confinado pelos limites da democracia, outra coisa é tecer habilmente um Estado anémico engessado por interesses privados.

2. Ora, há dois passos que devem ser dados para que a discussão das funções do Estado não se reduza a um artefacto ideológico, destinado a porfiar na simples reprodução do capitalismo,ou seja, a uma verdadeira partitura neoliberal, mesmo quando na sua execução participem músicos que o não são.

O primeiro implica uma tomada de consciência de que o debate acerca das funções do Estado está longe de poder ser um percurso teórico desfasado da realidade social, que se vá traduzindo, pouco a pouco, num leque de conclusões idealmente objectivas, vocacionadas para pairarem sobre as paixões humanas e destinadas a promoverem um amplo consenso. Consenso cuja cientificidade relativa acabaria por levar à correcção dos erros dos maus governos e de incentivar o fulgor dos bons.
De facto, uma das lutas nucleares do combate político moderno é a que se trava em torno da conquista da hegemonia quanto à concepção do Estado e, portanto, quanto às suas funções. A escolha das funções do Estado que devem ser privilegiadas e das que devem ficar fora do seu âmbito é , na verdade, um dos instrumentos estratégicos essenciais no combate político actual. Pretender chegar a um consenso politicamente neutro acerca delas é, por isso, o mesmo que procurar acabar com a luta política numa sociedade desigual, injusta e estropiada nos seus fundamentos.

Por isso, a grande questão para os socialistas reformistas, que verdadeiramente sejam ambas as coisas, é a de saber quais são as funções do Estado que devem ser incrementadas para potenciarem a eficácia da sua estratégia e quais são as que podem ser partilhadas com as entidades que dividam com eles o essencial do horizonte que temos pela frente. A questão não deve ser, por isso, a de saber quais devem ser as funções do Estado, em abstracto.

O segundo passo tem conexão com o anterior, já que nenhum sujeito político, colectivamente organizado que se assuma como socialista, pode renunciar a ter um papel decisivo na pilotagem da sociedade, em que se integre, para fora do capitalismo, ou seja, na acção dirigida a abreviar e a fazer com que decorra da melhor maneira possível a emergência de um pós-capitalismo. Portanto, a estratégia dos socialistas há-de ter como aspecto nuclear o papel que desempenhem no trajecto que as sociedades que somos percorrem rumo a um pós-capitalismo historicamente provável e que, para os socialistas, deverá ter como referência dominante um horizonte socialista.

Por isso, se os socialistas reformistas não podem desinteressar-se do modo como o capitalismo deve ser gerido, para que não ocorram disfunções no seu quotidiano que se traduzam num acréscimo brusco e dramático do sofrimento de muitos, ainda menos se podem esquecer do imperativo de contribuírem para que se chegue ao pós-capitalismo com o máximo de rapidez possível e com um mínimo de perturbações na vida dos cidadãos. Aliás, verdadeiramente, o êxito desse trajecto estará na rapidez com que se combine, no dia a dia, a diminuição das desigualdades sociais, a melhoria da qualidade da democracia, o refinamento e a universalização da humanidade, numa atmosfera que permita respeitar, sem peias, a liberdade, a solidariedade e a criatividade. Ou seja, é construindo uma sociedade justa que se chega a um pós-capitalismo no qual os socialistas se possam reconhecer.

Deste modo, para os socialistas esta participação na pilotagem de um processo de transição assumido é, verdadeiramente, o aspecto determinante das funções do Estado, o factor de congregação de todas as outras, o eixo estruturante da lógica de todas elas. Também por isto, reflectir em abstracto acerca de uma hipotética determinação de umas funções do Estado que pudessem ser partilhadas pelos que defendem o capitalismo e pelos que se querem ver livres dele, será sempre um caminho ilusório.

Por isso, há um objecto que tem plena actualidade como vector importante das preocupações teóricas dos socialista: a procura das funções que devem ser assumidas pelo Estado para que ele possa desempenhar, na globalidade e em simultâneo, o seu papel de guia da gestão corrente e de piloto da desejada metamorfose das sociedades capitalistas em que actualmente vivemos, rumo a um pós-capitalismo em que nos possamos reconhecer.

Pelo contrário, é uma empresa ilusória de significado duvidoso procurar um perfil abstracto e consensual das funções do Estado que possa ser assumido, como se fosse um contexto objectivo, por todas as correntes político-ideológicas.

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