terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O amargo sabor do abismo



Uma parte da esquerda portuguesa combate a outra parte, ao lado da direita, alegando que essa parte da esquerda, que ela assim combate, não é verdadeiramente esquerda.

É estranho, no entanto, que a partir dessa ideia, aceite combater essa esquerda, assim acusada de ser direita, aliando-se à direita que se assume sem subterfúgios como tal; e que combate essa esquerda acusada de ser direita, não em virtude dessa acusação, mas precisamente por não a levar a sério. E das duas uma, ou é a direita que está estrategicamente enganada, já que está a combater um governo, alegadamente de direita, por julgar erradamente que ele é de esquerda, quando afinal não o é; ou é a esquerda anti-governamental que está estrategicamente enganada, já que está a combater um governo por julgar que ele é de direita, quando afinal não o é.

Pode haver argumentos que apontem para a instrumentalização da oposição de esquerda pela de direita e vice-versa, congeminados com maior ou menos argúcia por arautos de uns e de outros. Mas a oposição de esquerda tem aqui uma desvantagem objectiva importante: se o governo da "esquerda-que-está-no-governo" cair, nunca poderá ser substituído por um governo da actual oposição de esquerda. Pelo contrário, será sempre substituído por um governo da actual oposição de direita. Por isso, sejam quais forem as intenções subjectivas de uns e de outros, é objectivamente impossível que a oposição de esquerda esteja a instrumentalizar a oposição de direita, mas é objectivamente possível que a oposição de direita esteja a instrumentalizar a oposição de esquerda.

E isto só é possível porque ambas as esquerdas parecem ter grandes dificuldades em pensarem estrategicamente a política, como se os seus dirigentes mais não soubessem do que perder-se nos labirintos imediatistas da táctica.

No entanto, todos se deviam lembrar que a espinha dorsal da esquerda são os seus partidos e os sindicatos, sendo certo que estes últimos, embora importantes, ficam politicamente desamparados se os partidos de esquerda desaparecerem ou se tornarem politicamente impotentes, no plano institucional. Pelo contrário, os partidos da direita são apenas organizações menores do complexo organizacional da direita. Se desaparecessem, a direita perderia muito menos do que a esquerda em situação idêntica. Por isso, quando o populismo fascizante vocifera com ódio contra todos os partidos não está a agredir simultaneamente a esquerda e a direita: está sim a arranhar ao de leve a direita e a procurar ferir profundamente toda a esquerda. E se para cúmulo a esquerda se digladiar entre si, seja qual for a justa distribuição das culpas pelos vários partidos, a direita fica sempre a ganhar.

Por tudo isso, acho estranho que as organizações de esquerda continuem a repetir-se a si próprias sem imaginação, a enfrentar-se com ferocidade, que uma parte da esquerda se alie à direita para combater um governo da outra parte da esquerda, como se o mundo não fosse mais do que a pequena feira do complexo mediático-partidário vigente, onde apenas se jogam pequenas vitórias e ligeiras derrotas num bocejo de quase irrelevância. E estranho-o tanto mais, quanto é visível que, lentamente, uma nova direita, vinda das organizações e entidades que reflectem directamente os poderes de facto, exterior aos partidos políticos, vai usando os vastos instrumentos que tem ao dispor, para se congregar, para se afirmar, para se preparar. Para se preparar para num possível momento de mais dramática crise, que julgue propício para uma aventura, poder estar à altura de tentar com êxito o desencadear de uma profunda regressão histórica, apostada em anular por completo o 25 de Abril.

Dir-se-á: se assim fosse, isso apenas significaria que a direita era afinal mais capaz do que a esquerda, sendo por isso bom para o país que ela acrescentasse, ao poder que já tem, o poder político-institucional. Mas as coisas são menos simples: em Portugal, uma democracia, com esquerda e direita vivas, poderá continuar a manter as portas abertas à esperança; em especial á esperança dos que mais sofrem com esta sociedade injusta, e inigualitária que é a sociedade capitalista. Mas uma direita que, junte ao ser poder de facto um poder político sem democracia, apenas fará sentir como é inviável ou inútil dentro dela qualquer luta política pacífica e democrática dos que são explorados e oprimidos pelo tipo de sociedade actual. E destapada a caixa do desepero dos explorados e oprimidos, ficariam abertas as portas a novos tempos de violência e desespero, de regressão social, de auto-exclusão do mundo democrático. Seria bom que os nossos loquazes amanuenses da política, os nossos desvelados contabilistas sociais, mas principalmente os cidadãos livres, não esquecessem que a democracia pode ser descrita como um objecto precioso, mas sempre frágil, que num momento se pode destruir, mas que depois de destruído leva necessariamente, muito, muito tempo a reconstruir.

O pior pode não vir a acontecer, mas não é seguro que assim seja, se as actuais esquerdas portuguesas continuarem aprisionadas no imediato, fechadas no pequeno horizonte dos sectarismos mútuos, recusando assumirem-se como partes de um conjunto que pelo facto de ser heterogéneo não deixa de as abranger a todas. Mas façam as esquerdas o que fizerem, estejam certas que a direita já está em movimento, preparando o seu desforço, assuma ele, para já, o rosto de um economicismo perene de rigor, de um justicialismo piedosamente virtuoso ou de um angelismo moral tão comovente quanto hipócrita.

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