Uma carta para LULA de um juiz brasileiro.
Neste fim de ano, que antecede um tempo especialmente dramático
para o Brasil, faz sentido enviar uma
mensagem tácita de solidariedade para com o Presidente Lula, transcrevendo da página virtual da revista brasileira
CartaCapital uma carta pessoal do juiz brasileiro Luís Carlos Valois que é juiz de direito no Amazonas, mestre e doutor em
direito penal e criminologia pela USP, pós-doutorando em criminologia em Hamburgo
– Alemanha, membro da Associação de Juízes para Democracia e do Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais.
Sem deixar de ser um texto político, tem uma tonalidade pessoal que lhe transmite uma particular humanidade , sublinhando especialmente quão bárbaro é o que a direita brasileira, através das instituições que domina, está a fazer a LULA. Eis a carta:
Lula, meu caro, faz tempo que estou querendo te escrever. Esse pessoal do
meio carcerário tem uma espécie de tara por proibir as coisas, então não sabia
se minha carta ia chegar a ti, já que muita gente importante sequer conseguiu
entrar para trocar umas palavras contigo, razão pela qual resolvi escrever por
intermédio da internet mesmo, um dia tu vais ler.
Cara, eu sei que tu não és santo, nem eu sou, nem ninguém é, então todos
nós temos um monte de culpa por aí, mas o crime que tu cometeste realmente ninguém
sabe até agora qual foi. Bem, você sabe disso, você já disse que aceitaria a
pena tranquilamente se te mostrassem provas de um crime, só estou repetindo
porque a carta será publicada e porque quero ressaltar uma coisa.
Hoje em dia com tanta culpa por aí, já nem precisa de crime para se
condenar uma pessoa, basta querer condenar alguém que todo mundo já acha esse
alguém culpado. É como um juiz me falou certa vez, que ele não sabia porque
estava condenando o cidadão, mas o cidadão sabia porque estava sendo condenado.
É mais ou menos assim que estamos vivendo, e é cada um por si.
No teu caso, um recibo de pedágio, a tua visita a um apartamento, mais dois
ou três presos dedos-duros loucos para ganhar a liberdade, e pronto, está
formada a prova necessária para a tua condenação, mesmo que ninguém diga onde
está o teu dinheiro, onde está o benefício que tu tiveste nisso tudo, ninguém
diz. E ninguém quer saber.
Pode ser que digam que há mais coisas no teu processo,
pode ser que haja, mas tenho certeza que se houvesse algo tão sério já teria
sido divulgado aos quatro ventos, porque uma das coisas que mais se discute
aqui fora é justamente a tua culpa, ou não culpa, e até agora só essa tua
visita no apartamento que, obviamente, não é teu.
Xará (acabei de me tocar para o fato que temos o mesmo nome…rs…), a coisa
tá difícil. Não quero entrar aqui na questão política, se fizeram tudo para te
tirar da eleição, se têm ódio de ti porque és nordestino, um nordestino que
teria chegado onde incomoda muita gente, e feito outros tantos nordestinos
incomodarem mais gente por chegarem onde chegaram, não quero falar dessas
questões políticas, quero conversar contigo sobre a tua situação atual.
Tenho trabalhado com presos a vida inteira e sei o quanto é difícil,
principalmente em situação de isolamento, o encarceramento. Eu queria
inclusive, com esta carta, te mandar uns livros, mas também não sei se
chegariam até ti, são meios subversivos, acho que tu tens que ler algumas
coisas subversivas, sabe? Tu tens que conhecer o sistema a fundo para entender
a tua própria situação de encarcerado.
Um dia Nilo Batista disse que todo preso é um preso político. Pena que a
maioria dos presos não sabe disso. O sistema, nele incluído o sistema penal,
tem uma função primordial em fazer todos acreditarem, inclusive os próprios
presos, que tudo funciona na mais perfeita ordem e, se tu estás preso, é porque
devias estar preso.
Aliás, falando em Nilo Batista, e desviando do assunto novamente para a
política, esse sim era um nome que tu devias ter nomeado para o Supremo. Poxa,
tu não nomeaste nenhum penalista, e agora o que acontece, acontece que a maior
parte dos integrantes do Supremo não sabe o que é uma prisão, dá para manter
todo mundo preso sem um pingo de peso na consciência, convalidam mandado de
busca e apreensão como se fosse um mandado de penhora, permitem condução
coercitiva como se fosse uma intimação para depor em juizado, autorizam
execução antecipada da pena como se ninguém corresse um grande risco de morrer,
assassinado ou por doenças, atrás das grades.
Eu sei, eu sei, tu vais dizer que já percebeste isso, afinal estás preso e
muitos dos que te mantiveram preso foram nomeados por ti. Eu também sofri na
pele uma medida policial, uma busca e apreensão na minha casa autorizada à
Polícia Federal por um magistrado nomeado por ti, mas até agora, pelo menos
após a violência da busca, não tenho nada para dizer do juiz, apenas que ele
não é da área penal, e ser da área penal é muito importante, porque o direito
penal é como uma metralhadora, só serve para provocar dor e mortes. Não basta
boa vontade para manusear uma metralhadora.
Qual a justificativa dessa medida contra mim? Alguns presos me elogiavam em
interceptações telefônicas. O juiz não pode ser respeitado por preso, juiz deve
ser odiado, essa é a imagem com a qual o poder judiciário tem buscado
legitimidade frente a uma população sofrida por causa da criminalidade
crescente, demonstrando-se rigoroso, mais um temido órgão de repressão. Mas
depois eu volto a falar dos presos, dos outros presos.
Olha, esse fato acima parece irrelevante, mas é a prova de que eu podia
muito bem achar bem feito o que aconteceu contigo, querer te ver preso, mas
não, não quero. Seja pela tua idade, seja pelo que você representou para o Brasil,
seja porque prisão não resolve nada, seja porque ainda não vi efetivamente o
que tu usufruíste do crime, que também não sei qual é, que te imputam.
O mais interessante é que, e isso deve te deixar
louco, tem um monte de gente pega com malas de dinheiro, helicóptero com
cocaína, motorista milionário, ou seja, gente com dinheiro de verdade na conta,
coisa mais fácil de provar, dinheiro na conta, mas estão todos soltos.
E, pior, nessas horas eles alegam o princípio da presunção de inocência, o
devido processo legal, a ampla defesa, essas garantias jurídicas facilmente
manuseáveis, principalmente em uma sociedade de memória fraca.
Sabe o que é, Lula, o sistema capitalista é feito de dinheiro, status,
aparência e malícia, muita malícia, mas acima de tudo o sistema é feito de
instituições, todas funcionando sob a mesma base, a que privilegia o acúmulo de
capital, a que privilegia o mercado financeiro, em detrimento dos pobres.
Lá estou eu falando de política novamente. Nesse assunto, do mercado
financeiro, nem quero tocar mesmo, porque seria a única coisa que estragaria
esta carta, pois poderia falar coisas mais pesadas, a ponto de te deixar
chateado comigo. Fostes muito bom para os bancos, para o mercado financeiro.
Bem, deixa pra lá, pode ser que tu não tenhas tido outra saída, pois, afinal,
ninguém ajudou mais os pobres do que você.
O fato é que tu és, além de tudo, um cara simpático. Não sei se vou te
conhecer pessoalmente um dia, mas se isso acontecer, tenho muito mais coisa
para te falar do que permite uma carta, “privada” (na condição em que tu estás
nada é privado, e esse é um agravamento da pena, os presos perdem além da
liberdade, a privacidade) ou principalmente pública, como essa que escrevo
gora.
O que é importante é ter força, cara, as coisas mudam muito rapidamente
nesse mundo. Nunca abaixe a cabeça, porque a esperança combina com cabeças
erguidas, e há milhares de pessoas que ainda acreditam em ti, estão te
esperando aqui fora, e isso deve ser capaz de te dar uma força tremenda.
Já recebi, na vida, milhares de cartas de presos, e em resposta a quase
todas eu vou até o presídio e falo pessoalmente com o preso, mas essa é a
primeira vez que escrevo a um preso. E não podia encerrar sem te dizer isso,
Lula, mesmo que você tivesse cometido o crime mais bárbaro do mundo, todos os
presos são seres humanos, todos os presos têm, acima de tudo, direito, se não
porque são seres humanos, porque esse direito está na lei e na Constituição, de
serem tratados com dignidade.
Espero que saias daí logo, possas voltar a conviver
com os teus familiares, teus netos, mas não esqueças nunca essa situação de
encarceramento, percebas o que muitas pessoas passam e passam em condições
muito mais severas, em celas imundas, lotadas, com ratos e baratas, do que
essas que tu estás vivendo.
Falo isso porque tu és, ainda és, um porta-voz do povo, de boa parte do
povo, brasileiro, e grande parte desse povo está atrás das grades.
No mais, quero te desejar sorte, muita sorte. Que as pessoas que te odeiam,
que também não são poucas, percebam a covardia que é espezinhar de uma pessoa
presa, porque, acredite, Lula, não há limites para o ódio à pessoa encarcerada.
Sorte, meu caro, não só tu como todos os brasileiros vão precisar neste novo
ano de sorte. Não sou um cara religioso, posso até me considerar um ateu,
embora essa conceituação não seja lá de muita importância para mim, mas te
desejo muita sorte e, ainda com pouca fé, que tu fiques com Deus.
Grande abraço,
Luís Carlos Valois
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