O REGRESSO DOS SOCIALISTAS ESPANHÓIS
1.Foi recentemente difundida em Espanha uma sondagem
( barómetro CIS), cujo trabalho de campo decorreu em julho. Ela merece alguma
reflexão pelas tendências que confirma e pela diferença que assinala em face do
que outras indiciavam há uns meses atrás, uma das quais em maio passado.
Como se recordam, no início de junho, um governo do
PSOE , liderado por Pedro Sánchez, tomou posse em Espanha, depois de ter derrubado com uma moção de
censura o governo de direita protagonizado pelo PP e liderado por Mariano
Rajoy. Pela lei espanhola, um derrube de um governo por essa via suscita a
instituição de um governo liderado pelo partido que apresentou a moção de
censura. Foi isso que aconteceu.
Foi um gesto ousado que se seguiu a uma sentença
judicial que atingiu em cheio o PP no campo da corrupção. A maioria necessária para
a aprovação da moção era de 176 deputados, tendo votado 180 a favor e 169
contra, com uma abstenção. De um lado, ficou o PP e os Cidadãos, do outro, o
PSOE, o Podemos e todos os partidos nacionalistas autonómicos, com exceção de
um deputado da Coligação Canária que se absteve.
Com um gesto político ousado o líder do PSOE, apenas
com 84 deputados em 350, chegou ao Governo. A sua base de apoio parlamentar é
objetivamente frágil, mas não deve ser menosprezada a força política que resultou
da sua ousadia e das dificuldades políticas que projetou nos campos dos seus
adversários e dos seus concorrentes.
2. Em maio, antes da queda do governo de Rajoy, uma
sondagem divulgada pela Metroscopia, dava o primeiro lugar aos Cidadãos com
29,1% das intenções de voto, com os outros três partidos na casa dos 19%: 19,8
% para o Podemos, 19,5% para o PP e 19 % para o PSOE. Os dois partidos de
direita somavam 48,6% dos votos, os dois partidos de esquerda somavam 38,8 %
dos votos.
No início de junho, entrou em funções o novo Governo
do PSOE. Já em agosto, foi difundida uma nova sondagem pelo barómetro do CIS (Centro
de Investigações Sociológicas) que oferece um panorama totalmente diferente. O
PSOE é quem reúne um maior número de intenções de voto, com 29.9 %, o que
representa uma subida superior a 10%, em comparação com a sondagem atrás
referida; o Podemos reúne 15,6% dos votos, o que traduz uma quebra de 4,4 %; os
Cidadãos e o PP ficaram empatados com 20,4% das intenções de voto, o que
representa um ligeiro acréscimo de 0,9% para o PP e uma perda de 8,7 % ara os
Cidadãos. Os dois partidos de esquerda somam agora 45,5% e os dois de direita
40,8%. Assim, foi nítida a inversão da relação de forças antes verificada. Por
outro lado, os partidos nacionalistas catalães somam 5,2 % e os nacionalistas
bascos somam 1,8%. E o facto de estarem concentrados em partes circunscritas do
espaço eleitoral garante-lhes uma representação parlamentar, cuja relevância não
é menosprezável.
É uma comparação muito significativa, mesmo cotejando
duas sondagens pelas quais foram responsáveis entidades diferentes, tanto mais
que são grandes tendências que aqui estão em causa.
3. No campo da direita, a mudança do contexto parece
ter quebrado o elan dos Cidadãos.
Eles reivindicavam-se como alternativos e totalmente diferentes do PP,
recusando qualquer corresponsabilidade na sua gestão. Davam centralidade a uma forte
crítica ao fisiologismo corrupto do PP e arvoravam a bandeira de uma inovação,
alegadamente radical, destinada a fazer murchar os partidos tradicionais.
Mas a moção de censura obrigou-os a mostrar quão
secundárias eram quer a sua incorrupção quer o seu ímpeto inovador. Na verdade,
ao terem que assumir a sua preferência pelo PP, em detrimento do PSOE, na
votação da moção de censura ,tornaram óbvio o que tanto queriam esconder: o seu
“nem de direita nem de esquerda” , afinal, não era mais do que uma ocultação da
sua pertença inequívoca ao campo da
direita. E assim se revelaram menos puros do que aquilo que queriam fazer crer
e menos novos do que aquilo que ostentavam.
O PP teve o desaire mais dramático para um partido
de direita, habituado ao exercício do poder: perdê-lo. Rajoy saiu de cena e a
disputa subsequente da liderança deu uma vitória ambígua a Pablo Casado , que
representa uma linha mais identitária e aparentemente mais direitista, no plano
ideológico. Foi desse modo derrotada Soraya Sáenz de Santamaría, um
importante esteio do governo de Rajoy, a qual parecia protagonizar uma via mais
pragmática e mais virada para o centro. Uma via que parecia estruturalmente
mais adequada a competir com os Cidadãos, no espaço político da direita que
aspira a mostrar um verniz mais democrático e modernizador. A disputa entre os
dois principais partidos da direita tornou-se mais complexa e mais incerta.
Na esquerda, o Podemos passou a estar longe da desejada
“ultrapassagem” do PSOE que antes parecia estar em vias de conseguir, mas
conquistou uma influência político-institucional que antes lhe faltava. Em
termos absolutos, pode até parecer que recuou, no entanto, se olharmos para o
tabuleiro político no seu todo, fica claro a perda dos pontos percentuais referidos
não impediu o aumento da sua capacidade de influência político-institucional.
Seja como for, a atual relação de forças no xadrez
político espanhol sugere uma relativa volatilidade nos dois campos. Dentro da
esquerda, a relação de forças está longe de se poder considerar cristalizada,
parecendo claro que o protagonismo político de qualquer dos dois campos tem uma
componente interativa incontornável. Ou seja, a força política quer do PSOE
quer do Podemos depende muito do modo como cada um deles souber interagir com o
outro. Tanto o sectarismo como a arrogância parecem inclinações suicidárias, embora
o apoucamento consentido de qualquer deles esteja bem longe da salubridade.
4.Sem menosprezar o efeito positivo de algumas
medidas anunciadas e de algumas grandes linhas de orientação propostas, seria
pouco convincente atribuir-lhes a causalidade principal no espetacular aumento
das intenções de voto no PSOE. Mais admissível será valorizar-se a própria
ousadia do PSOE, ao assumir a sua alternatividade em face do governo de
direita, sem ambiguidades nem tergiversações, com base numa conjugação
ostensiva com todas as outras esquerdas, bem como com todos aqueles que, por
qualquer razão, se opunham a Rajoy.
Pedro Sánchez em 2014 foi eleito Secretário do PSOE
em eleições primárias internas. Em outubro de 2016, demitiu-se, uma vez que na
direção do partido se formara uma maioria que se lhe contrapunha. Essa maioria
na executiva federal do PSOE advogava uma atitude transigente em face do PP que
permitisse a este partido formar governo, o que dependeria do consentimento do
PSOE e viria a acontecer. Formou-se então uma comissão de gestão provisória que
dirigiu o PSOE até à realização de novas eleições primárias internas que viriam
a ter lugar em maio de 2017.
Pedro Sánchez concorreu de novo ao cargo de que
tinha sido forçado a demitir-se. Teve contra ele como principal adversária a
Presidente do governo andaluz Susana Díaz. Esta dispunha do apoio da
maioria dos deputados e dos senadores do PSOE, bem como dos Presidentes das
mais importantes comunidades autónomas dirigidas pelos socialistas, tendo ainda
a seu lado a preferência da larga maioria da Comissão Executiva provisória do
partido. Todos os antigos secretários-gerais do PSOE e alguns outros destacados
históricos do PSOE apoiaram publicamente a dirigente andaluza, que aliás
encabeçava a mais poderosa Federação do partido. Concorreu também Patxi López
que já havia sido Presidente
do Congresso dos Deputados e
Presidente
do Governo Basco, protagonizando
uma espécie de via intermédia. Os resultados foram claros Pedro
Sánchez recebeu cerca de 50% dos votos, Susana Díaz, 40% e Patxi López 10%.
Se olharmos com objetividade para tudo isso, podemos ver que os militantes
do PSOE desautorizaram claramente a deriva de complacência para com a direita,
defendida e praticada pelos opositores internos de Pedro Sánchez. No entanto, os
outros poderes internos do PSOE não deixaram de constranger Pedro Sánchez, potenciados
pela projeção institucional de muitos deles nos diversos níveis do Estado. Complementarmente,
a questão catalã veio perturbar ainda mais a afirmação de uma nova via que
Pedro Sánchez pretenderia protagonizar. O efeito positivo que tivera nas
intenções de voto o regresso de Sánchez à liderança do PSOE, foi-se esbatendo.
Voltou à superfície da memória do eleitorado de esquerda a sombra projetada
pela complacência perante o governo Rajoy. Uma complacência da responsabilidade
dos setores moderados dos socialistas espanhóis que cercaram Sánchez e que a tinham
imposto ao partido ao arrepio da vontade dos militantes.
A sondagem de maio, acima referida, projeta eloquentemente esse bloqueio a
que o PSOE fora levado pela inconsistência estratégica dos seus setores mais
moderados e mais envolvidos no exercício de poderes políticos. A sondagem mais
recente mostra como um gesto ousado pode romper um cerco aparentemente irremovível.
Tudo isto exige uma leitura crítica do que aconteceu, sendo desejável que nunca
esqueçamos e que os partidos de esquerda nunca esqueçam que têm uma base social
própria que os envolve e incorpora, cuja natureza mais funda está no facto de
globalmente ser ela a principal prejudicada com as desigualdades sociais
estruturais inerentes ao tipo de sociedade atual. Um tipo de sociedade em que o
capitalismo é predominante.
Na verdade, separar um partido de esquerda da sua base social é o mesmo que
cortar um ramo de uma árvore: não passará muito tempo até perder o viço e
secar. De facto, a realidade vai-nos mostrando, uma e outra vez, de várias
maneiras, em diversos planos, que um partido de esquerda, que um partido socialista,
que se deixe instrumentalizar pela direita perdendo o horizonte que lhe é
próprio, fica á beira de um precipício de irrelevância política que pode até
fazê-lo desparecer.
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