sábado, 27 de novembro de 2010

UMA VISITA À IRLANDA EM 2001.


Um velho amigo e camarada, Nuno Filipe, pôs à minha disposição, para possível divulgação neste blog, um texto da sua autoria, publicado em 2001, quando a Irlanda era ainda um paradigma de sucesso, atirado pelos neo-liberais à cara dos que não se vergavam, por completo, à respectiva cartilha. O texto fala, por si. O seu autor achou apenas útil antecedê-lo de uma breve nota explicativa, onde diz que:


"Em resultado de uma visita de trabalho à Irlanda, escrevi para “As Beiras” em Junho de 2001 o artigo que a seguir se reproduz.
Infelizmente, as dúvidas e aquilo que apontámos como erros da corrente dominante do neoliberalismo, resultaram na dramática situação que hoje vive o povo Irlandês.
Por isso entendo, que uns por comodismo, e outros, nalguns casos, por facilitismo e corrupção, são responsáveis pela crise que se abateu sobre uma boa parte do mundo, estando na linha da frente os responsáveis por um modelo politico-económico que só pode conduzir os povos ao abismo, quer na Europa, quer noutras partes do Mundo."


O MITO IRLANDÊS

[Publicado em Junho de 2001]

Depois do movimentado e frenético aeroporto de Heathrow, em Londres, e de um voo de cerca de uma hora, o avião sobrevoou as terras calmas e verdes da Irlanda, aterrando suavemente no aeroporto de Shenanon, que há décadas atrás foi uma das mais importantes plataformas entre a América e a Europa, mas que deixou de o ser com a autonomia de voo acrescida das aeronaves.
De Shanonn a Limerick, confirma-se a paisagem verde e calma, com arvores e campos viçosos de planície fértil e rica em pastagem, que alimenta largo universo de animais, designadamente ovinos e bovinos, que se contam por largas centenas de milhares de cabeças, contribuindo de modo considerável para uma economia que aparece pintada de “milagre Irlandês”.
O povo Irlandês, logo nos primeiros contactos, revela-se de grande afectividade e hospitalidade, que faz lembrar a nossa maneira de ser e de receber, povo que no entanto não esquece a repressão dos Ingleses, do seu carrasco Cromwell e Guilherme III, que impuseram, um domínio violento do protestantismo, ao ponto de expulsarem muitos milhares de católicos. (1)
A curiosidade da visita era, pois, obvia, tanto mais que alguns políticos, provavelmente sem conhecerem, e por motivos puramente demagógicos, apontam o crescimento económico e o modelo da Irlanda como exemplo a seguir, sendo certo que não conseguem, ou não querem distinguir, entre crescimento económico e desenvolvimento social.
Face a esta postura, pretendemos colher o maior número de informações directas, para de modo isento, avaliarmos a realidade da Republica da Irlanda.
Percorremos, durante alguns dias, parte significativa do território, e dessa experiência e conhecimento directo, tentaremos uma síntese daquilo que julgamos ser fundamental para uma ideia geral da vida económica e social do pais.
O crescimento económico Irlandês, que nos últimos anos tem ultrapassado o dobro da média Europeia, permitiu, na verdade, dar um salto, especialmente na produção, na especialização e na multiplicação de grandes, mas também médias e pequenas unidades empresariais.
Resultou assim, nos últimos dez anos, um aumento da taxa de emprego e de níveis salariais significativos. Por exemplo, o salário médio mensal de um Farmer Worker (trabalhador agrícola), laborando 39 horas por semana, é em média de 700 Libras, cerca de 175 contos por mês.
Por outro lado, na educação, o ensino superior faz uma ligação directa e prática à industria e á produção, tendo hoje a Irlanda parques tecnológicos muito importantes.
Diria que estas são as notas mais positivas que devem ser destacadas.
No entanto, o crescimento foi selectivo de modo obsessivo e os aspectos negativos, mesmo francamente negativos, ressaltam de modo chocante.
Comecemos pela mão-de-obra. Actualmente, 70% dos trabalhadores são empregados de cinco grandes multinacionais, ligadas aos Estados Unidos.
Somente 30% da mão-de-obra Irlandesa tem emprego nas pequenas e médias empresas e na agricultura. Será interessante referir que o aparecimento das multinacionais é contemporâneo dos fundos comunitários e que, se para infelicidade dos Irlandeses, estas multinacionais “zarparem” será uma avalanche de desempregados com as consequências sociais e económicas que se adivinham.
Quanto ao desenvolvimento social o panorama é desolador: O governo Irlandês (neo-liberal) não tem qualquer projecto em áreas decisivas para a coesão social, como sejam a infância, juventude e terceira idade, isto é, não há qualquer política oficial, tanto para creches, como para o ensino pré-escolar e terceira idade. Centros-Dia, Lares Residenciais e Apoio Domiciliário, não existem. O que existe nestas áreas respeita quase exclusivamente á iniciativa privada e lucrativa.
Quanto a infra-estruturas básicas o seu nível de desenvolvimento fica muito distante do de Portugal.
A rede de estradas na Irlanda tem mais de 50 anos, e embora todas alcatroadas, são idênticas as nossas antes do 25 de Abril. Quanto a auto-estradas existem escassas dezenas de quilómetros.
O saneamento e a rede de abastecimento de água, fora dos centros urbanos são quase inexistentes.
Os pregadores políticos da nossa praça, não saberão também, que o transporte de energia eléctrica e os postos transformadores (Pts), são ainda de madeira e que o parque habitacional, em média, está muito longe do parque habitacional Português.
O tratamento de efluentes, só agora começa no rio Shannon. No entanto convém dizer que o aspecto das praças e outros lugares públicos é agradável e limpo.
Fomos recebidos, de modo acolhedor, no seio de famílias Irlandesas inexcedíveis em amabilidade. (O cuidado de Miss Pat era comovedor ao perguntar que desejávamos para o pequeno almoço do dia seguinte).
As habitações em que é praticado turismo de habitação, em Portugal não seriam licenciadas, por não terem as condições exigidas aqui.
Outro aspecto que nos deixou espantados, foi o de algumas unidades industriais que visitamos. Uma delas na terceira cidade da Irlanda, isto é, em Limerick. Impressionou tanto pela falta de higiene como de segurança. O ambiente de trabalho parece-se com as unidades de produção asiáticas: sem arejamento, ou pé direito mínimo, nem tão pouco medidas de segurança essenciais, como extintores e saídas de emergência.
O nosso desejo sincero é que o povo Irlandês não seja vitima da gula voraz do lucro e do crescimento cego, que foi erigido como modelo e milagre económico pelos neo-liberais, que não tiveram em conta o essencial, que são as pessoas.
Pretendemos com este apontamento ajudar a desmontar o discurso, tantas vezes inconsistente e demagógico de uma oposição sem pudor e que pretender vender, quase sempre, gato por lebre.

(1) (Mais tarde entre 1800-1829, com o recrudescimento do proselitismo protestante dirigido pelo Bispo anglicano Magee, opõe-se eficazmente o Bispo Irlandes Dr. Doyle, antigo aluno da nossa Universidade de Coimbra).

Sem comentários: