quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O Kosovo e os buscadores de abismos


Fatos azuis, pretos, cinzentos. Gravatas discretas, camisas claras. Aparecem nos palcos mediáticos. Falam fluentemente. Com precisão: cada palavra escolhida e colocada no lugar exacto. O rosto é uma paisagem tranquila. Sem tempestades. Os jornalistas perguntam. Respondem com segurança, mas quase nunca surpreendem: dizem o que já se calculava, como quem desvenda um mistério.

Quanto ao Kosovo atingiram o cume dessa arte mediática de dizer solenemente as palavras mais previsíveis, como se em cada palavra se jogasse o destino do mundo. Ministros, assessores, directores-gerais.

No terreno, pessoas de carne e osso, movidas por medos e paixões, acicatadas por esperanças e desilusões, sofrendo e sonhando, querendo o infinito e temendo o dia seguinte, agitam-se, ameaçam, movem-se confusamente. Sem norte?

Uns desfraldam a sua independência do Kosovo com a bandeira albanesa, como se dessem vida ao sonho da grande Albânia, que, no entanto, não confessam querer. Outros contêm uma tristeza que, subitamente, tem séculos. Vivem a amargura ancestral dos povos invadidos e humilhados. É como se a alegria dos outros lhes roubasse a própria casa. Os sonhos, os ódios, as frustrações e os medos, estão de regresso numa mistura explosiva.

Uns vivem a alegria de um sonho que aprenderam a ter, como se tudo fosse agora uma estrada para o infinito, sem leis e sem problemas. Sem obstáculos. Outros vivem a humilhação de terem o direito internacional pelo seu lado e de terem visto rasgá-lo com toda a desenvoltura aos mesmos que se arrogam o papel de juízes em nome desse mesmo direito.

A Sérvia aceitou submeter cidadãos seus ao império desse direito, esperando talvez que um dia obtivesse do respeito por esse direito um retorno positivo. Afinal, nem esse direito, nem as decisões expressas da ONU, foram suficientes para que os seus cultores mais devotos os respeitassem. Respeitassem os direitos da Sérvia sobre uma das suas províncias.

No terreno, alguns milhares de soldados perdidos são fantasmas que ignoram o que estão ali realmente a fazer. Soldados da paz? Irmãos auxiliadores? Ou, pura e simplesmente invasores, predadores gratuitos que fazem valer o discutível arbítrio dos mais fortes?

Nos tapetes fofos das chancelarias, nos silêncios florentinos dos corredores das organizações internacionais, há leves sorrisos postiços que se movem embrulhados em nebulosas figuras que executam um ritual guerreiro que eles próprios só superficialmente compreendem.

Os líderes europeus mostram, de si próprios, uma imagem terrível. Vagueiam como autómatos através da sua impolítica para os Balcãs como se fossem sombra de um zombie americano, apenas presente por inércia nos corredores do poder supremo, onde frui já sem norte os seus últimos meses.

Apoiam o Kosovo os mais irresponsáveis, convencidos de que a rapidez da decisão apagará a sua desorientação estratégica. Outros afastam-se pressurosos do que lhes parece ser um erro grosseiro, mas consentem que a União faça gestos simbólicos de cumplicidade com os albaneses do Kosovo e de hostilidade aos sérvios. Dizem coisas sobre o Kosovo e a Sérvia como se fossem seus donos ou fossem credores de uma qualquer subserviência, radicada no simples direito do mais forte.

O patrão americano respira fundo. Tem agora uns zombies europeus que executam espontaneamente estranhos rituais de obediência à sua política, sem que quase precisasse de mexer um dedo.

Após semanas dessa pesporrência infantil da União Europeia, o urso russo começou a achar que perante tantos gestos provocatórios lhe cabia comportar-se como se tivesse sido provocado. E foi assim que disse o que se esperaria que dissesse um urso relativamente poderoso, que já viu melhores dias, mas que está longe de estar acabado.
Um funcionário de uma terceira ou quarta linha resmungou qualquer coisa que tem a ver com força e com militar. Alguns dias depois alguém mais qualificado demarcou-se molemente da ameaça velada. Estava feito o aviso.

Os americanos tinham entretanto esboçado algo entre o lamento e o protesto. Os europeus assustaram-se e balbuciaram uns murmúrios de preocupação. Eles que têm uns milhares de soldados em terra alheia, em grosseira desobediência aos ditames da ONU, não viram que era a sua própria arbitrariedade que legitimava as ameaças que lhes eram dirigidas.

Enfim, se somarmos tudo isso à instabilidade que desponta nas regiões habitadas por sérvios no Kosovo e na Bósnia, podemos constatar que a realidade enviou um aviso a esses anões políticos que temos a infelicidade de ter à frente dos destinos da União Europeia. Há o risco de o não compreenderem.

De facto, o prestígio e a autoridade moral da Europa pode radicar-se na sua capacidade para induzir a paz, mas nunca na ligeireza com que se arrisque a desencadear guerras. E a verdadeira força política num século como o nosso, que será de paz ou poderá ser o último, não se conquista com a arrogância perante os fracos. Repito o que já escrevi. Há uma regra de ouro para evidenciar a dignidade de um Estado, ou de uma União de Estados: nunca adoptar um comportamento perante um Estado fraco que se não for capaz de ter perante um Estado forte.

Não sabemos ainda quais as sequelas da actual impolítica europeia para o Kosovo. E o mais trágico é que os dirigentes responsáveis por essa política parecem ter que dizer o mesmo. E esse é talvez o sinal mais preocupante. As solenes luminárias, não são afinal faróis que mos ajudam a vislumbrar o nosso futuro colectivo, são simples amanuenses da política, atrapalhados com as consequências do que vão decidindo, mas talvez mais cegos do que nós quanto ao que está por vir. Não são guias , são buscadores de abismos.

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