É
urgente substituir o povo!
1. Deixei
passar uns dias antes de tecer alguns comentários a propósito das recentes
eleições legislativas. Deixar assentar as poeiras mais imediatas pode ajudar na
crítica. Não pretendo fazer uma
abordagem global. Pretendo apenas escolher alguns tópicos dispersos que me
pareçam sugestivos e possam ser envolvidos em relevâncias futuras.
No dia 30 de janeiro, o (im)plural panorama da comunicação
social portuguesa foi acossado por um violento sopro de realidade.
2. Uma
vasta corte de comentadores políticos da direita ressequida, de oráculos
reformados da esquerdíssima mais cortante, de cultores luminosamente
científicos da vulgata neoliberal, de jornalistas previsíveis e de
comunicólogos emaranhados, partilhou uma esforçada campanha destinada a
explicar por que razão estavam em perigo , nas eleições do passado dia 30, o PS
e António Costa, a quem seria servido inevitavelmente, na melhor hipótese, o
amargo sabor de uma vitória pífia; e, na pior, o compreensível e merecido
castigo de uma derrota paralisante.
Ora, se acusava AC de ser um inconfessado e oculto amante da
maioria absoluta, ora se trovejava contra o alegado descaramento de a pedir
expressamente. Mas ao mesmo tempo, qualificava-se como puro delírio o sonho de
a vir a obter.
Com melíflua comiseração, apontava-se o seu óbvio cansaço,
traçando-se um quadro dramático das
sucessivas não remodelações do seu Governo, acentuando o gigantismo de
alguns minúsculos casos com que o tentaram cercar, para afirmar com a frieza
gulosa de um imaginário rigor, que também o bom povo estava cansado dele, muito
cansado.
Cientes do excesso de culparem directamente o governo do
coronavírus 19, atiravam-lhe para cima imaginárias insuficiências e falhas de
comunicação. O povo estava farto, fartíssimo de António Costa e do governo do
PS.
3. Despertos
para o grande desígnio nacional do reformismo holístico, no âmbito do qual cada
corporação de interesses e cada corte ideológica do abrangente conservadorismo
vigente, tingem a sua feroz apetência alegadamente reformista com a cor forte
dos seus interesse mais egoísticos, deixavam cair implacáveis a sua mastigada e
incontornável sentença: o governo do PS liderado por António Costa fugiu dramaticamente
de todas as reformas.
Rigorosos,
aprestavam-se por isso ao registo frio de uma derrota quente das cores
socialistas. Mansa, a matilha mediática uivava concordância, com toda a
energia.
Mas a arguta matilha tinha uma visão de largo espectro.
Atenta – vigiava qualquer tique do odiado António Costa para, como um bando de
arcanjos virtuosos, o denunciar em praça pública sem contemplações. E assim na
sua lucidez esotérica foi identificando sinais de uma evidente ainda que
discreta arrogância.
AC defendia o acerto das medidas do seu governo e logo
gritavam: arrogância! AC mostrava um qualquer sinal internacional de
reconhecimento do mérito do seu Governo e logo vociferavam: arrogância! AC
respondia a alguma das pedradas políticas que lhe dirigiam, num simples
exercício de legítima defesa e logo se indignavam: arrogância!
Mas se AC tomava uma posição pública na qual fosse impossível encontrar a mais leve aparência de
arrogância, regougavam com incontida reprovação: hipocrisia!
Ou seja, o nosso bando de arcanjos mediáticos tingia de
evidência o seu próprio delírio e condenava irremediavelmente AC como
arrogante. Por definição; dispensando-se por isso de mostrar o arrogantismo
dessas arrogâncias.
4. O
despontar tímido de um punhado de vitórias em autarquias importantes nas recentes eleições
autárquicas, foi suficiente para se gritar como óbvia uma firme rejeição
popular de AC e do Governo do PS ( apesar
de ele ser de longe o partido autárquico maioritário, quer em número de CM quer
de F). A promessa firme de um tsunami laranja ia pairando assim com crescente intensidade.
Mas o povo enganou-se! Driblou oposições, comentadores
graves, expoentes da ciência política, economeses de largo espectro. O PS teve
maioria absoluta.
5. É pois
urgente substituir o povo! É , pelo menos, o que pensa ousadamente a direita
lusitana mais bem pensante, bem como a deslumbrada bolha comunicacional, o
comentariato elucrabativo e os vultos graves dos alegados senadores do dislate. Não podem permitir que o PS se ponha a ganhar
eleições desregradamente. Uma de quando em vez, desde que modesta, ainda vá lá.
Relativazinha – e é um luxo. Mas o despautério de uma vitória sem peias- nunca mais!
E a vasta corte dos oráculos políticos cujas previsões são
sempre revistas em alta ou em baixa, raramente antecipando realmente a
realidade, lambidas as feridas auto-infligidas pela sua desesperada e inútil
cruzada contra o PS e contra António Costa, procura agora respirar com exigência a maioria absoluta instituída.
Forçadamente despidos
da arrogância de invocarem a inexistente soberba de um e outro para agoirarem a
sua derrota ou, mínimo dos mínimos, uma vitória esquálida, os da bolha
político-mediática aprestam-se agora a apresentar a AC o catálogo das suas exigências.
O deve haver da arrogância que inventaram e que a realidade(teimosa!) não
absorveu.
Uma azougada constelação de interesses, de preconceitos e de
narizes de cera apronta um caderno de encargos para assombração do PS e de AC.
Ignora que o caminho a seguir pelo próximo Governo tem as raízes numa ampla convergência
de vontades geradora de 119 deputados na AR e não das vocações resmungonas de
um punhado der oráculos decadentes.
Com o tom solene de um Conselheiro de Estado, Mendes já decretou
que se o governo fizer o que ele lhe
mandar é dialogante , se não lhe obedecer mostra a sua arrogância. Foi
aplaudido e seguido. Quanto á vontade dos milhões de portugueses que deliberaram
dar maioria ao PS e a AC e disseram querer ver cumprido o respectivo programa
os iluminados nada disseram.
6. Por mim olhando para a paisagem reinante como um todo,
começo por recordar Brecht.
Confrontado com um conflito que no seu tempo opôs o governo da RDA ao povo
trabalhador que aí vivia, Brecht , poeta e comunista, escreveu um breve poema,
onde numa atitude crítica perante as posições oficiais que assim concluiu:
“Pois
não seria
Então
mais fácil que o Governo
Dissolvesse
o Povo e
Elegesse
outro ?”
É um poema lendário que esvazia uma vasta área da retórica eleiçoeira dos políticos pernósticos.
Quiçá sem o saber, a deputada e
vice-presidente do PSD, Isabel Meirelles, quando lhe pediram para
explicar o que falhou e conduziu à hecatombe da retórica já vencedorista do
partido a cuja direcção pertence, deu uma resposta que fez com que se lhe
enterrasse até às orelhas a “carapuça” brechtiana
“O que
falhou foi o foi o povo
português"!
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