sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

É urgente substituir o povo!

 



É urgente substituir o povo!

1. Deixei passar uns dias antes de tecer alguns comentários a propósito das recentes eleições legislativas. Deixar assentar as poeiras mais imediatas pode ajudar na  crítica. Não pretendo fazer uma abordagem global. Pretendo apenas escolher alguns tópicos dispersos que me pareçam sugestivos e possam ser envolvidos em relevâncias futuras.

No dia 30 de janeiro, o (im)plural panorama da comunicação social portuguesa foi acossado por um violento sopro de realidade.

 

2. Uma vasta corte de comentadores políticos da direita ressequida, de oráculos reformados da esquerdíssima mais cortante, de cultores luminosamente científicos da vulgata neoliberal, de jornalistas previsíveis e de comunicólogos emaranhados, partilhou uma esforçada campanha destinada a explicar por que razão estavam em perigo , nas eleições do passado dia 30, o PS e António Costa, a quem seria servido inevitavelmente, na melhor hipótese, o amargo sabor de uma vitória pífia; e, na pior, o compreensível e merecido castigo de uma derrota paralisante.

Ora, se acusava AC de ser um inconfessado e oculto amante da maioria absoluta, ora se trovejava contra o alegado descaramento de a pedir expressamente. Mas ao mesmo tempo, qualificava-se como puro delírio o sonho de a vir a obter.

Com melíflua comiseração, apontava-se o seu óbvio cansaço, traçando-se um quadro dramático das  sucessivas não remodelações do seu Governo, acentuando o gigantismo de alguns minúsculos casos com que o tentaram cercar, para afirmar com a frieza gulosa de um imaginário rigor, que também o bom povo estava cansado dele, muito cansado.

Cientes do excesso de culparem directamente o governo do coronavírus 19, atiravam-lhe para cima imaginárias insuficiências e falhas de comunicação. O povo estava farto, fartíssimo de António Costa e do governo do PS.

 

3. Despertos para o grande desígnio nacional do reformismo holístico, no âmbito do qual cada corporação de interesses e cada corte ideológica do abrangente conservadorismo vigente, tingem a sua feroz apetência alegadamente reformista com a cor forte dos seus interesse mais egoísticos, deixavam cair implacáveis a sua mastigada e incontornável sentença: o governo do PS liderado por António Costa fugiu dramaticamente de todas as reformas.

 Rigorosos, aprestavam-se por isso ao registo frio de uma derrota quente das cores socialistas. Mansa, a matilha mediática uivava concordância, com toda a energia.

Mas a arguta matilha tinha uma visão de largo espectro. Atenta – vigiava qualquer tique do odiado António Costa para, como um bando de arcanjos virtuosos, o denunciar em praça pública sem contemplações. E assim na sua lucidez esotérica foi identificando sinais de uma evidente ainda que discreta arrogância.

AC defendia o acerto das medidas do seu governo e logo gritavam: arrogância! AC mostrava um qualquer sinal internacional de reconhecimento do mérito do seu Governo e logo vociferavam: arrogância! AC respondia a alguma das pedradas políticas que lhe dirigiam, num simples exercício de legítima defesa e logo se indignavam: arrogância!

Mas se AC tomava uma posição pública na qual fosse  impossível encontrar a mais leve aparência de arrogância, regougavam com incontida reprovação: hipocrisia!

Ou seja, o nosso bando de arcanjos mediáticos tingia de evidência o seu próprio delírio e condenava irremediavelmente AC como arrogante. Por definição; dispensando-se por isso de mostrar o arrogantismo dessas arrogâncias.

 

4. O despontar tímido de um punhado de vitórias em autarquias  importantes nas recentes eleições autárquicas, foi suficiente para se gritar como óbvia uma firme rejeição popular  de AC e do Governo do PS ( apesar de ele ser de longe o partido autárquico maioritário, quer em número de CM quer de F). A promessa firme de um tsunami laranja ia pairando assim com crescente intensidade.

Mas o povo enganou-se! Driblou oposições, comentadores graves, expoentes da ciência política, economeses de largo espectro. O PS teve maioria absoluta.

 

5. É pois urgente substituir o povo! É , pelo menos, o que pensa ousadamente a direita lusitana mais bem pensante, bem como a deslumbrada bolha comunicacional, o comentariato elucrabativo e os vultos graves dos alegados senadores do dislate.  Não podem permitir que o PS se ponha a ganhar eleições desregradamente. Uma de quando em vez, desde que modesta, ainda vá lá. Relativazinha – e é um luxo. Mas o despautério de uma vitória sem peias- nunca mais!

E a vasta corte dos oráculos políticos cujas previsões são sempre revistas em alta ou em baixa, raramente antecipando realmente a realidade, lambidas as feridas auto-infligidas pela sua desesperada e inútil cruzada contra o PS e contra António Costa, procura agora respirar com  exigência a maioria absoluta instituída.

 Forçadamente despidos da arrogância de invocarem a inexistente soberba de um e outro para agoirarem a sua derrota ou, mínimo dos mínimos, uma vitória esquálida, os da bolha político-mediática aprestam-se agora a apresentar a AC o catálogo das suas exigências. O deve haver da arrogância que inventaram e que a realidade(teimosa!) não absorveu.

Uma azougada constelação de interesses, de preconceitos e de narizes de cera apronta um caderno de encargos para assombração do PS e de AC. Ignora que o caminho a seguir pelo próximo Governo tem as raízes numa ampla convergência de vontades geradora de 119 deputados na AR e não das vocações resmungonas de um punhado der oráculos decadentes.

Com o tom solene de um Conselheiro de Estado, Mendes já decretou que  se o governo fizer o que ele lhe mandar é dialogante , se não lhe obedecer mostra a sua arrogância. Foi aplaudido e seguido. Quanto á vontade dos milhões de portugueses que deliberaram dar maioria ao PS e a AC e disseram querer ver cumprido o respectivo programa os iluminados nada disseram.

 

6. Por mim olhando para a paisagem reinante como um todo, começo por recordar Brecht.

Confrontado com um conflito que no seu  tempo opôs o governo da RDA ao povo trabalhador que aí vivia, Brecht , poeta e comunista, escreveu um breve poema, onde numa atitude crítica perante as posições oficiais que assim concluiu:

“Pois não seria

Então mais fácil que o Governo

Dissolvesse o Povo e

Elegesse outro ?”

 

É um poema lendário que esvazia uma vasta área da retórica eleiçoeira dos políticos pernósticos.

Quiçá sem o saber, a deputada  e  vice-presidente do PSD, Isabel Meirelles, quando lhe pediram para explicar o que falhou e conduziu à hecatombe da retórica já vencedorista do partido a cuja direcção pertence, deu uma resposta que fez com que se lhe enterrasse até às orelhas a “carapuça” brechtiana

“O que falhou foi o foi o povo português"!

 

Sem comentários: