sexta-feira, 9 de abril de 2010

Bebendo do seu próprio cálice


Há poucos anos atrás, em conversa com um colega brasileiro, dirigente do PT, verificámos que nas análises que cada um de nós fazia sobre o que se passava em cada um dos nossos países, a Igreja Católica surgia em ambos como factor relevante, mas o sentido da sua intervenção em Portugal e no Brasil era praticamente o oposto um do outro.

Nos dois casos, com relativa subtileza, pode dizer-se que enquanto no Brasil ela pressionava tendencialmente o governo PT mais pela sua esquerda social, em Portugal pressionava tendencialmente o governo PS mais pela sua direita ideológica.E, no entanto, se passarmos em revista as posições assumidas pelas duas igrejas católicas, as diferenças explícitas de posição, se as houver, são afinal escassas e pouco intensas.

Como explicar essa aparente contradição? Na minha opinião, a Igreja Brasileira, pese embora a sua retirada institucional do terreno da teologia da libertação, nunca chegou a regressar aos bons velhos tempos da cumplicidade estrutural com a direita conservadora, mantendo uma solidariedade prática apreciável em face do sofrimento e das aspirações sociais e políticas do povo cristão explorado e oprimido. Embora inevitavelmente presente, o Vaticano está, apesar de tudo, algo distante do grande espaço latino-americano.

Pelo contrário, a Igreja Portuguesa (com a prudência necessária, para que a esquerda não se veja obrigada a lembrar-lhe a sua longa cumplicidade para com o salazarismo) adopta genericamente a linha geral da cúria romana, alinhando no mesmo tipo de posicionamento, com as igrejas do sul da Europa, em especial, a italiana e a espanhola.

É claro, que não estamos a falar de uma coincidência absoluta de estilos e de tácticas, estamos a falar da partilha do mesmo tipo de política. Assim, ela favorece os partidos de direita, tanto quanto lho permita uma neutralidade formal no campo partidário, que publicamente afixa e proclama. E o modo que encontrou para tornar o mais eficaz possível esse apoio, sem desmentir grosseiramente a sua declarada neutralidade, foi a outorga de uma centralidade pastoral a questões ético-culturais, tais como o aborto, a contracepção, o casamento gay, a eutanásia ou o divórcio. Para, depois, a partir de uma coincidência quase total com esse tipo de opções da direita política, procurar favorecer indirectamente os partidos de direita, procurando, nessa medida, afastar os católicos dos partidos de esquerda.

E não se diga que não estamos perante um expediente estratégico, mas apenas perante um reflexo autêntico de uma convicção profunda. Se assim fosse, a Igreja Católica não reagiria perante os massacres da guerra com a mansidão discreta com que o faz, nem seria tão contida perante o escândalo da miséria e da fome que matam todos os dias milhares de crianças pelo mundo fora. Realmente, a Igreja oficial, o topo da sua hierarquia romana, perante sequelas tão ostensivas do capitalismo dominante, é tão parca em indignação que fica claro que há aqui uma sensibilidade selectiva, uma selectividade na indignação, que não pode deixar de ter um significado político e ideológico, bem marcados. A Igreja de Roma não se indigna consequentemente com a correspondente intensidade com tudo o que põe em causa a vida e a dignidade humanas. Limita-se a adoptar uma agenda conservadora clássica que privilegia os tópicos fracturantes que acima citei, mas que esquece outros que a nenhuma luz se podem considerar menos graves.

Acontece que por um daqueles malabarismos do destino em que a História é fértil, a Igreja Católica viu transformar-se a sua florentina habilidade numa inesperada armadilha. De facto, subitamente, começaram a emergir, em catadupa crescente, acusações de pedofilia, que como mancha indelével foram subindo degrau a degrau pela hierarquia da Igreja Católica. A mancha tem-se espalhado pouco a pouco, de país para país, avançando como fatalidade sobre Roma.

E mesmo a milenar sabedoria institucional da Igreja, não evitou que algumas declarações agravassem os estragos, grandes, que uma, outra e mais outra acusação de antigas vítimas vinham fazendo. Afinal, os mesmos que publicamente trovejavam, como anjos de uma virtude branquíssima, maldições e diatribes, contra os mortais indignos, que se deixavam possuir pelos demoníacos desvios conducentes ao aborto , à eutanásia, ao divórcio, à contracepção, ronronaram mansamente como gatos de pecado, escondendo no aconchego das sacristias, ano após ano, num e noutro país, os abusos sexuais contra crianças. Contra as crianças, que neles confiavam como homens de Deus, mas que para com elas se comportavam como enviados do diabo.

E a Igreja Católica sofre tanto mais com isso, quanto, pelo menos no Vaticano e na maior parte dos países do primeiro mundo, elegeu as virtudes privadas como a primeira pedra de toque da santidade e a esfera mais sulfurosa das tentações demoníacas. Bebe agora do seu próprio cálice, pois o tipo de questões que por cálculo político elegera como as que verdadeiramente separam as águas, distinguindo os bons dos maus, os infiéis dos pios, inscrevem-na agora na lista dos ímpios e prevaricadores.

Chegou pois à Igreja Católica um tempo de encruzilhada: ou se arrasta numa via sacra de desculpas e tímidos anátemas defensivos, de atrapalhados perdões e subtis esquecimentos, numa girândola terrível de deslegitimação ética, ou regressa de uma vez por todas ao Vaticano II, assumindo finalmente o imperativo da sua própria mudança.

Pode então cooperar, natural e lealmente, com a justiça dos homens, quando for caso disso, quando ela tiver razões para actuar, em casos de pedofilia ou noutros, mas no quadro de uma mudança do seu eixo estratégico, de uma mudança profunda da sua posição na humanidade. Abandonará assim finalmente a sua cumplicidade histórica em face dos poderes instituídos, a sua conivência de última instância com os senhores do dinheiro, o seu conformismo em face do sistema universal de reprodução da pobreza, preço inevitável da abastança de alguns.

Talvez então ela possa vir a ser a casa de uma nova teologia da libertação, apontada para o futuro, conquistando-se como Igreja do século XXI. De facto, só rompendo com a ganga conservadora que há séculos a tem tolhido, para se colocar, como já tem acontecido, num ou noutro país, numa ou noutra circunstância histórica, dentro dos explorados e oprimidos, poderá ser uma esperança limpa para a humanidade aflita dos nossos dias. Só assim estes tristes episódios da pedofilia poderão reduzir-se a simples casos de polícia, para como tais serem resolvidos.

Mas se, pelo contrário, continuar a distanciar-se do Concílio do Vaticano II, para tender a ser cada vez mais a casa comum da ideologia das direitas do primeiro mundo, melifluamente deitando para debaixo do tapete as suas vergonhas como se nada tivesse acontecido, insistindo em reproduzir-se no futuro como simples sombra de um passado recorrente, é natural que se empobreça no mundo dos ricos e se desvaneça no mundo dos pobres, que se separe dos justos e entre na fila das grandes casas vazias de um ocidente dissipado.

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