segunda-feira, 3 de novembro de 2008

A política brasileira depois das recentes eleições

As recentes eleições municipais brasileiras, realizadas em Outubro passado, projectaram-se na comunicação social através de um amplo leque de comentários, dos quais poucos não pecaram por simplismo. Mesmo alguns jornais europeus de referência [El País,Le Monde] reduziram o seu comentário a breves considerações superficiais sobre os resultados da segunda volta em quatro ou cinco grandes cidades brasileiras. O mesmo aconteceu em Portugal, nalguns jornais e até num site conotado com o Bloco de Esquerda que deturpava o significado dos resultados dessas eleições, reduzindo-o a uma derrota do Presidente Lula.

Sem prejuízo de, eu próprio, ainda não ter abandonado a hipótese de publicar neste mesmo blog um cometário circunstanciado sobre os resultados dessas eleições, achei que nos podia fornecer um quadro muito clarificador do significafo político desses resultados, a reprodução de uma entrevista dada ao diário brasileiro "Folha de S. Paulo", pelo politólogo André Singer [que, por sinal, é filho do eminente economista brasileiro Paul Singer, especialista em economia solidária e membro do actual Governo brasileiro, onde lidera uma Secretaria de Estado que se ocupa da área em que é especialista, e que já esteve por diversas vezes em Portugal, onde proferiu várias conferências de que alguns de vós se lembrarão].
Como se diz nos destaques do jornal brasileiro, André Singer acha que "a parceria PSDB-PT é inviável", acrescentando que "o PMDB não será o fiel da balança entre PT e PSDB, pois sempre se inclina para o favorito".

Em seguida a "Folha de S.Paulo", por intermédio de um membro da sua Redacção, Maurício Puls, apresenta o referido cientista político, destacando aspectos das suas respostas que considera mais relevantes:


"O cientista político André Singer, 50, diz que o PT se consolidou como partido do proletariado, e o PSDB, como partido da classe média. A polarização entre eles impede que o projeto de união entre petistas e tucanos, articulado pelo governador Aécio Neves (PSDB), tenha êxito no plano nacional. Autor de "Esquerda e Direita no Eleitorado Brasileiro" (2000) e ex-porta-voz do presidente Lula, Singer diz que o PMDB não será o fiel da balança, mas o termômetro: "O PMDB vai se inclinar para onde o vento estiver soprando" ".



[ André Singer toma o pequeno almoço com o Presidente Lula]

Eis o texto da entrevista:

"Na entrevista a seguir, concedida na quarta, o professor do Departamento de Ciência Política da USP observa que o DEM se converteu em um partido auxiliar da candidatura de José Serra (PSDB) à Presidência.

FOLHA - Sua tese destaca a importância da identificação ideológica para explicar o comportamento do eleitor. Mas, numa eleição local, o que distingue esquerda e direita?Tanto Marta quanto Kassab prometiam construir hospitais, escolas...


ANDRÉ SINGER - A campanha de São Paulo foi uma campanha pouco ideológica de parte dos grandes partidos, mas eu acredito que o corte ideológico está acontecendo por baixo das campanhas, no que diz respeito ao alinhamento do eleitorado: o eleitorado está se alinhando ideologicamente. A eleição revelou alinhamentos que antes não estavam postos da maneira como estão colocados hoje.

FOLHA - Quais são eles?

SINGER - Existe uma consolidação do PT como o partido do proletariado, e do PSDB enquanto um partido da classe média. Esse é um alinhamento de natureza social que envolve aspectos ideológicos da maior importância, e que se revelou melhor na eleição de 2008, que, por ser local, não é puxada por candidatos nacionais. Ficou mais claro o perfil dos partidos.O PT está se consolidando como um partido do proletariado. Se você olha para a Grande São Paulo, o PT perde na capital, que é um distrito eleitoral predominantemente de classe média, mas ganha na maioria das cidades do cinturão proletário de São Paulo -São Bernardo, Diadema, Osasco, Guarulhos. No Rio Grande do Sul, o PT perdeu em Porto Alegre, mas ganhou em Canoas; no Rio, o partido teve pouca expressão na capital, mas ganhou em Nova Iguaçu e Belford Roxo; em Minas, não disputou diretamente em Belo Horizonte, mas ganhou em Betim e Contagem.Já o PSDB vai bem em Franca e São José dos Campos, que têm uma classe média forte. A grande capital que o PSDB ganhou foi Curitiba, típica cidade de classe média. A vitória dos Democratas em São Paulo é também uma vitória do PSDB.Formalmente é uma vitória dos Democratas, porque Serra fez uma costura política muito arriscada que acabou dando certo e que colocou os Democratas como partido auxiliar do PSDB e particularmente da candidatura de Serra à Presidência.

FOLHA - Que papel no espectro ideológico está reservado ao PMDB?

SINGER - O PMDB é o que a gente poderia chamar de um partido da classe política. Não é um partido de classe. O PMDB tem características muito adequadas para abrigar lideranças políticas locais, pois tem a flexibilidade para que essas lideranças possam negociar posições junto ao governo federal. Essa é uma forma que liga eleições municipais às eleições federais e que faz com que lideranças locais que orbitam em torno do centro, mas que podem se deslocar tanto para a direita quanto para a esquerda, encontrem uma legenda nacional que as permita estar em posições diferentes de acordo com as tendências do país. Isso significa que o PMDB, ao contrário do que tem se dito, não é o fiel da balança: ele é o termômetro. O PMDB vai se inclinar para onde o vento estiver soprando. Pouco provavelmente o PMDB estará unido em qualquer das circunstâncias, como já não está unido hoje. O PMDB de São Paulo está com Serra, e o PMDB do Rio está com Lula.

FOLHA - Isso explica por que o PMDB está sempre se dividindo.

SINGER - Possivelmente continuará assim, porque essa é a característica que lhe dá força. O que está se chamando de vitória do PMDB é na realidade a vitória de uma forma política que atrai lideranças locais. A vitória do PMDB em Salvador e Porto Alegre é a vitória de lideranças locais que migraram de outros partidos para o PMDB.

FOLHA - Na prática o PMDB cresceu antes da eleição: elegeu 1.059 prefeitos em 2004, subiu para 1.212 com as trocas, e agora elegeu 1.202.

SINGER - Exatamente. Não é uma vitória eleitoral: é uma vitória do jogo político. É que houve uma migração para o PMDB à medida que o partido se alinhou ao governo Lula. O enfraquecimento do Democratas tem a ver com isso: é que uma parte de sua base migrou para o PMDB porque este se revelou uma legenda mais confortável, porque pode oscilar entre quem está no poder. Isso faz com que o PMDB não tenha uma característica definida, nem ideológica nem social.É diferente do caso dos Democratas, uma legenda que procura se caracterizar ideologicamente: tem uma postura de centro-direita. Essa postura perdeu espaço, e o Democratas está transitando de um partido grande para um partido médio.

FOLHA - Um fato muito ressaltado é a distância entre a aprovação a Lula e a votação dos candidatos que ele apoiou. Por que parte do eleitorado apóia Lula, mas rejeita o PT?

SINGER - As pesquisas mostraram que houve uma ascensão importante da aprovação ao governo Lula. Isso não significa que as pessoas, por aprovarem o governo, votarão automaticamente nos partidos ou candidatos desse governo. Essa ligação não é imediata. Se você considerar que boa parte do PMDB está associada ao governo, é preciso contabilizar esses votos como votos alinhados ao governo Lula, porém não ao PT. O PT tem características próprias, diferentes das características do governo Lula. O PT está se caracterizando agora, mais até do que antes, como partido ligado ao proletariado, e nessa medida ele é fortemente rejeitado pela classe média. A oposição PSDB-PT tem raízes sociais: o PT vai perder as eleições sempre que o centro e a direita estiverem aliados em circunscrições em que eles tenham a maioria. Isso explica por que o PT não tem, e não terá, o tamanho do apoio ao governo Lula.

FOLHA - É cedo para apontar as perspectivas de eventuais candidatos governistas, como Dilma Rousseff, que hoje só tem 3% dos votos?

SINGER - É cedo no sentido de que existe a dinâmica econômica entre este momento e 2010, e é cedo no sentido de que sempre existem acontecimentos políticos que influenciam. Mas não é cedo para fazer uma projeção com base nos dados que nós temos hoje. O fato de Dilma ter uma intenção de voto baixa é absolutamente natural. Em Belo Horizonte, Marcio Lacerda tinha baixíssima intenção de voto até o início do horário eleitoral. Grande parte do eleitorado não acompanha a política, não sabe quem são os candidatos e as alianças que estão se formando. Esses eleitores precisarão ser informados a respeito. A partir do momento em que essa informação chegar, ela terá um efeito imediato: uma parte importante do eleitorado quererá, por razões objetivas, votar na continuidade deste governo, e uma parte importante quererá votar contra. Isso independe um pouco de quem seja o candidato. O país está dividido entre uma classe média que votará contra o candidato do governo e um proletariado que votará a favor.Isso significa que a disputa de 2010 será muito dura.

FOLHA - Serra tem uma estratégia de confronto com o governo Lula, enquanto Aécio parece buscar uma candidatura de consenso. Mas, dada a polarização entre PT e PSDB, a opção de Aécio parece cada vez difícil.

SINGER - Na eleição de 2008, Serra conseguiu dois trunfos.Primeiro, conseguiu costurar uma aliança com o Democratas, que foi um dos problemas mais sérios que ele teve em 2002, quando afastou esse grupo da sua candidatura. Neste momento ele fez uma ponte com a ala direita da oposição, e isso aumenta o cacife dele numa região que ele não tinha. O segundo trunfo que ele conquistou foi uma aliança momentaneamente sólida com a seção paulista do PMDB -leia-se Orestes Quércia. Isso significa que ele não tem a maior parte do PMDB, mas tem uma parcela importante, significativa.A distinção entre Serra e Aécio é muito interessante porque há uma espécie de inversão. Serra cresceu porque, tendo sido um homem de esquerda, sabe como fazer política social. Não é por acaso que o governo dele, e depois o de Kassab na cidade, deram continuidade às políticas sociais do PT. Essa foi uma das razões de sua vitória, porque ele soube somar o apoio natural que esse bloco tem junto à classe média com uma certa penetração nas camadas de menor renda. Por outro lado, Aécio, que sempre está dentro do espectro da oposição mais à direita do que o governador Serra, fez uma aliança mais à esquerda, com o PT.O PT de Belo Horizonte fez uma opção que aponta para um possível caminho do PT -um caminho mais centrista. Por razões de como está estruturado o jogo político e ideológico no Brasil, não há nenhuma possibilidade de aliança nacional. E, porque ela não existe, esse experimento de Belo Horizonte é um experimento artificial. Essa característica artificial foi notada pelos eleitores, e por isso Marcio Lacerda teve dificuldades para ganhar no primeiro turno. É um arranjo de conveniências locais com alguma incidência sobre o jogo político nacional, mas que provavelmente não terá muita influência, a menos que Aécio decida sair do PSDB. O que considero muito pouco provável.

FOLHA - É improvável que ele saia candidato pelo PMDB?

SINGER - Acho muito improvável porque me parece que, embora os políticos sejam muito flexíveis, os cortes sociais e ideológicos não são. Aécio sabe disso e sabe que ele terá um prejuízo muito grande saindo do PSDB. A disputa brasileira se dará, por muito tempo, entre dois grandes projetos representados pelo PT e pelo PSDB, que são projetos diferentes, embora eles tenham tentado aliança em Belo Horizonte, que a meu ver não deu certo. Creio que o que aconteceu em Belo Horizonte terá servido mais para Aécio se manter em evidência e participar do jogo numa condição em que, até por sua juventude, lhe permitirá ainda dar muitos passos pela frente e ser um personagem importante da política brasileira. Mas não saindo do PSDB."

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