quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Bacalhau à Jorginho, uma novidade política.





Foi um memorável fim-de-semana. O Sol escorreu com leveza pelas tardes, emprestando às faldas da Serra de Estrela a luminosidade fria dos Outonos suaves. O João Rui e a Fátima cercaram-nos com a arte de bem receber. Um presunto desafiador e uma fila de enchidos exuberantes abriram alas para a chegada de um arroz de cabidela que nos reduziu ao célebre silêncio do quando se come não se fala. Os doces podiam ter vindo de um convento que concentrasse a sabedoria das gulas discretas das freiras com o sabor a pecado.





A flexigurança, o futuro da Europa, a anemia do PS, a “bronquidão” das oposições, iam sendo acompanhadas com um tinto garboso e traiçoeiro que merecia claramente ser de Silgueiros, embora realmente o não fosse. A deriva neo-liberal, a fúria do ministro Gago contra as Universidades, a evanescência do BE, o “dinossaurismo recreativo” do PC, resistiam mal a um queijo da serra de primeira água que um néctar catalão ladeava com elegância.




A pedido daquela discreta parte de todos nós encarregada das digestões, passeámos tranquilamente por Figueiró. Visitámos a outra casa dos nossos anfitriões, aconchegada entre duas ruas estreitas, em vizinhança solidária com casas irmãs, evocando o carinho espontâneo das avós. Um frio ainda manso ia-nos recebendo pelas ruas, enquanto a tarde se despedia lentamente. Hospitaleiros, os beirões, aflorando aqui e ali, cumprimentavam cordialmente o pequeno destacamento de urbanos. Por minutos, o João Rui vestia a bonomia do João Semana e inteirava-se da saúde deste ou daquele. Cordialmente, a aldeia via-nos passar.




A Igreja, forte da sua talha dourada, exigiu fotografias. O Jorginho cometeu algumas. Por mim, lutei com denodo contra um telemóvel de última geração, carregando com sofreguidão em todos os botões. Mas a máquina, alérgica e mal habituada, resistiu. Fotos, nem uma. Já no remanso de Coimbra, descobri indignado que o que escasseara em fotografias sobrara num vídeo absolutamente indiscreto, que mostra isso mesmo: a minha luta inglória por fotografias que nunca apareceram.

Uma sopa abriu-nos amigavelmente a porta da noite, segura dos seus sabores naturais, orgulhosamente oriundos de Figueiró da Granja. Ainda entrelaçámos algumas conversas. Percorremos alarmados o PS de Coimbra, olhámos para o circo melancólico do PSD e murmurámos qualquer coisa de irrelevante a propósito do PP. Rompendo a custo o grão cerrado de uma televisão ancestral, Portugal e a Arménia entraram pela sala dentro. Seguindo à letra as instruções do Sr. Scollari torcemos galhardamente pela selecção. Foi consensual que sem o nosso vigor apoiante, dificilmente o Hugo Almeida tinha salvo Portugal. Chegou então “ O Meu Tio” ; e enquanto os menos resistentes deslizaram par o vale de lençóis, os mais noctívagos confraternizaram com o saboroso humor do Jacques Tati.

A noite adormeceu-nos, concedendo um frio perfeitamente aceitável. A manhã irrompeu gloriosa com um sol tonitruante a ecoar desde a Serra de Estrela até aos montes que com ela dialogam numa paisagem de urzes e granito. Madrugador, o Alberto, ia conhecendo um a um os vultos de Fornos de Algodres, por intermédio de um compêndio grave, tirado da biblioteca da casa. Os mais relapsos lutavam galhardamente contra a preguiça matinal.




Quando a tribo ficou completa, puseram-se as máquinas em movimento e rumou-se ao passado mais longínquo. Depositados no coração de uma aldeia perdida nos segredos dos montes, lá caminhámos esforçadamente à procura da Necrópole das Forcadas, para encontrarmos um monumento de tranquilidade, serenamente absorto no silêncio dos montes.




Serpenteando um pouco mais, por vales e serranias, eis-nos na Anta de Cortiçô, olhando o céu através das suas pedras e imaginando a robusta arte de as erguer. Estava ganha a manhã. As consciências autorizavam agora que se comesse o almoço.



Com o almoço, aliás, o fim-de-semana caminhava para o seu ápice. Já se preparavam os protagonistas, contidos mas pressurosos. O bacalhau espreguiçava-se numa assadeira de barro preto, deslizando em postas tranquilas. A broa esfarelava-se com profissionalismo e o azeite aguardava sem pressas. O João Rui exercitava uma sabedoria sem falhas na arte de bem aquecer um forno de lenha. Queria oferecê-lo, no seu melhor, ao alegado talento culinário do Jorginho.


Medindo os gestos, imaginando cheiros, cultivando a memória de suculentos sabores, o novo Grande Chefe era agora apenas um artista, um artista do barro preto, um expoente emergente da gastronomia portuguesa. Estava escrito: o Grande Chefe ia ousar um bacalhau com broa.

Entre gulosos e cépticos os convivas aguardavam, entremeando a espera com despreocupadas tarefas e rápidas leituras.



As morcelas e as chouriças chegaram de rompante num derradeiro momento de glória. Um vinho honesto e robusto acompanhou-as discretamente. No forno, o bacalhau seguia um roteiro rigoroso. Os anos 60 pairaram por um momento, para logo serem substituídos pelo PREC, pelos anos dourados de Abril. O desfilar épico dos grandes gestos foi traduzido numa memória suave e bem disposta. Algo de chocante estava em vias de se aproximar. O Alberto não escondia a solenidade do momento: o seu vice-presidente oscilava entre a glória de um bacalhau sem fronteiras e o feroz apupar de convivas frustrados.




A Ção garantia com a sua presença o mínimo de legalidade gastronómica. Num assomo de regionalismo a Fátima Garção elogiava a açorda alentejana, no que teve o meu apoio. A Fernanda preparando-se para a incerteza conseguira um relevante boné. A Fátima e o João Rui, como bons anfitriões encorajavam educadamente o Jorge, que, com uma cara para grandes dias, atravessava temente o último quarto de hora de forno.

Subitamente, à nossa frente, impante de vaidade estava o bacalhau com broa. Com o ritmo repousado das grandes ocasiões, o Grande Chefe delegou na Clara o encargo de servir uma tribo suspensa, que olhava para o barro preto recheado de bacalhau com uma inquietação visível. As postas foram sendo depositadas nos pratos, a broa sorrateira foi-se entremeando com o bacalhau. Um pouco de azeite espreitava aqui e ali.




Foi então que os garfos subiram numa viagem que pareceu eterna, até à boca. O bacalhau chegou assim de mansinho, mas sem hesitações. Por um momento, o Jorginho pareceu empalidecer, o João Rui quase corou de emoção. Houve um curto momento de um imenso silêncio. Um curto momento, quase eterno.


Foi então que num rompante de exacerbamento gastronómico uma exclamação varreu a mesa de ponta a ponta: o bacalhau estava soberbo! O sorriso do Jorge rasgou-se. Só então se atreveu a algumas palavras de modéstia, gabando o forno, exaltando a qualidade do bacalhau. De nada valeu, o grande triunfador fora encontrado. Era precisamente ele o Grande Chefe. Um tinto indignado e invejoso, a quem já ninguém dava atenção, assistiu impotente ao triunfo do bacalhau. Com broa diria qualquer camponês de boa cepa. Concebido e executado pelo Jorginho, diria qualquer jornalista competente.





E por falar nisso: se um esforçado, embora talentoso, aquecedor de chouriças e de peixes, mereceu a capa da revista Visão, levado em ombros como especialista da arte culinária, como se poderia explicar que um Cozinheiro em Chefe de tão alto gabarito, possa continuar escondido dos leitores? Nem a Confraria do Bacalhau o consentiria...

2 comentários:

aminhapele disse...

Como é que uma cambada de ateus,consegue sentar-se à mesa do céu?!

Anónimo disse...

Há momentos inesquecíveis que, pela força da sua intensidade e beleza, inscrevem-se nas nossas memórias de forma duradoura.
Tivemos a rara felicidade de saborear aquele manjar dos Deuses - "Bacalhau á Jorginho" naquela tarde de Outouno rodeados de sol e amigos.
Quem sabe se daqui a uns tempos estamos a provar uma outra receita segredo - "Sopa de Knorr no forno de lenha"