segunda-feira, 5 de novembro de 2007

A Argentina, as eleições e o peronismo







Na excelente revista brasileira CartaCapital, já antes citada neste blog, foi publicado um esclarecedor comentário às eleições argentinas recentemente realizadas, intitulado “Reeleição à argentina” e assinado por Antonio Luiz M. C. Costa.

O texto começa por desvalorizar a importância das diferenças que possam existir entre o casal Kirchner, destacando o que considera politicamente relevante, ou seja, a continuidade entre o actual Presidente e a Presidente eleita. E esclarece: “se o marido não tentou a reeleição, permitida pela Constituição, foi para tentar ficar ainda mais tempo no poder. Dado o personalismo, a volatilidade e o oportunismo da atual política argentina, um segundo e final mandato, logo o reduziria a um “pato manco”. A base de apoio no Congresso se dispersaria entre rivais a disputar a sucessão cada vez mais abertamente. Ou se desperdiçaria capital político em uma luta inglória, de resultado duvidoso, por uma emenda que permitisse o terceiro mandato.
A solução é esse revezamento, que seria difícil de aplicar fora da tradição argentina de matrimonialismo político. A partir de Evita, esperou-se de uma primeira-dama peronista a postura de uma liderança política que, ao mesmo tempo, deve ser unha e carne com o marido. Agora, Néstor não só pode “voltar” em 2011, sem nunca ter saído, como também pode se dedicar desde já, em tempo integral, a construir uma base partidária sólida e duradoura, coisa inexistente no país desde que a conversibilidade arrastou, no colapso, o tradicional bipartidarismo”.

De facto, a crise que antecedeu a vitória de Nestor Kirchner, em 2003, destroçou a União Cívica Radical (UCR,) e fragmentou ainda mais o Partido Justicialista de obediência peronista. De facto, dos quatro candidatos mais votados nas recentes eleições , o 1º, o 3º e o 4º, representam antigas facções do peronismo. Assim, os três candidatos de raiz peronista − Cristina Kirchner ( 45%), Roberto Lavagna ( 17%) e Alberto Rodríguez Saá ( 8%) − se pudessem juntar as suas forças teriam atingido os 70% dos votos expressos. A única candidata não peronista que conseguiu alguma expressão, foi Cristina foi Elisa Carrió, que ficou em segundo lugar, com 23%, à frente de uma “Aliança por uma República de Iguais (ARI)”, que é uma dissidência da UCR.

E o artigo citado acrescenta: “ela conquistou a maioria das classes médias e, portanto, da capital, cujos subúrbios pobres constituem municípios separados. Seu partido terá a segunda maior bancada da Câmara, com 35 cadeiras”. O candidato apoiado pelo carismático e conservador Prefeito de Buenos Aires, Maurício Macri, não passou do 1,5%, mas o candidato ao governo do Estado de Buenos Aires, em consonância com os Kirchner, ganhou com mais de 60% dos votos.

Comparando o que se passa na Argentina com a conjuntura brasileira, prossegue A. L. Costa : “sinal de que os Kirchner, como Lula, não contam com a simpatia da maior parte das elites de seu país. Mas também de que esse setor está ainda mais perplexo que seu equivalente brasileiro, pois foi o mesmo que pôs o conservador Macri na prefeitura. É quase como votar em Alckmin para governador e Heloísa Helena para presidente.
Também como no Brasil, o emprego se recuperou, mas principalmente para as camadas de baixa renda, e os pobres recebem auxílios comparáveis ao Bolsa Família. Por outro lado, Cristina conta com uma maioria bem mais confortável: kirchneristas e aliados ficarão com 153 das 257 cadeiras da Câmara e 44 das 72 do Senado.
Esse é o cenário político no qual os Kirchner governarão e tentarão criar um novo sistema partidário”.

Comenta-se depois a vertente económica dos problemas que se colocam ao novo governo, percebendo-se que tem pela frente uma equação complexa, onde intervêm o Brasil, a Venezuela e o próprio Chile, mas de onde está ausente a sombra de um qualquer Império, que possa ditar leis e distribuir anátemas. Se as esquerdas que estão no poder na América latina , souberem conjugar as suas óbvias diferenças com uma sólida solidariedade frente às tentações hegemónicas do Império, terão entrado num patamar de independência verdadeiramente precioso.

E no plano interno ? “No cenário interno − conclui o texto que temos vindo a seguir − os Kirchner precisarão, muito em breve, tomar medidas mais eficazes para lidar com a inflação. As práticas de congelar tarifas, controlar preços, maquiar índices e convidar o povo a boicotar produtos em alta estão chegando a seus limites.
As soluções, porém, não serão necessariamente de molde a melhorar o humor da classe média. Já pressionada pela alta das mensalidades das escolas particulares e dos planos de saúde privados, provavelmente terão de absorver a maior parte do reajuste das tarifas públicas congeladas desde janeiro de 2002, do qual os setores mais pobres deverão ser protegidos, pois são os aliados dos quais o casal mais necessita para governar”.

Recordemos que, nas eleições de 11de Março de 1973, que puseram termo a uma ditadura militar, os peronistas representados por Hector Câmpora obtiveram 49% dos votos e os radicais com Ricardo Balbín conseguiram 21%. Passaram-se quase 35 anos, mas, atravessando uma enorme variedade de vicissitudes ( algumas bem dramáticas), o peronismo tem-se conseguido perpetuar. Mérito de raízes que se tenham gravado no povo argentino ou a força subtil de uma heterogeneidade quase sem limites?

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