Vamos, hoje, recorrer à
33ª edição da “Morte e Vida Severina e outros poemas em voz alta” do poeta
brasileiro João Cabral de Melo Neto (José Olympio – Editora, Rio de Janeiro,
1993).
“Morte e Vida Severina”
é um “auto de natal pernambucano”, escrito entre 1954 e 1955 e publicado em
1955. Radica-se na saga dos trabalhadores pobres do nordeste ("retirantes") que emigravam para a
parte mais rica do Brasil, em longas caminhadas, em busca da sobrevivência.
Editado pela primeira vez nos anos cinquenta, fala por si o número de edições
publicadas. Como sugere o título da coletânea, está escrito num
registo de oralidade. O “auto de natal” foi teatralizado, declamado, cantado.
Através dele, sentimos respirar o sofrimento ancestral do povo brasileiro, a
sua profunda dignidade e a marca dorida de uma esperança improvável, mas
irremovível.
A poesia de João Cabral
de Melo Neto é tecida por versos secos, por sílabas medidas , sem enfeites; como
se a aridez, por vezes dramática, do real, apenas precisasse de palavras exatas
para ser dita. Escreve com “facas”, com “pedras”, com “arestas”, atravessando
paisagens de uma aridez cortante. É um dos grandes poetas de língua portuguesa
do século XX.
João Cabral de Melo Neto nasceu no Recife (9 de janeiro
de 1920)
e morreu no Rio de Janeiro (9 de outubro
de 1999).
Foi diplomata.
Hoje, vamos publicar
três extratos da “Morte e Vida Severina”:
o início, o fim e uma parte intermédia, especialmente conhecida.
Morte e Vida Severina
(extratos)
João Cabral de Melo Neto
1. O RETIRANTE
EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI
— O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.
— O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.
2. ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO CEMITÉRIO
— Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a conta menor
que tiraste em vida.
— É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
— Não é cova grande,
é cova medida,
á a terra que querias
ver dividida.
— É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
— É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
— É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.
3. O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE EM NADA
— Severino retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga.
É difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais
quando ela é
esta que vê,
severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.
1 comentário:
RUI
Ao lembrares «Morte e Vida Severina», fizeste-me lembrar o brilhante espectáculo que vi no desaparecido Teatro Avenida, em Lisboa,pelos estudantes da Pontifícia Universidade Católica de S. Paulo,o TUCA, premiado em Nancy e estreado naquela Universidade em 1965.Roberto Freire era o Director-Geral do grupo,Silnei Siqueira o Director de Actores e a música foi uma das grandes criações do Chico Buarque, como muita gente saberá, sendo este então aluno da Faculdade de Arquitectura e Urbanismo, da U. de S. Paulo.
É um dos espectáculos que me ficaram gravados na memória.
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