17. UM LIVRO, UM POETA - José Gomes Ferreira
José Gome Ferreira nasceu no Porto em 1900, tendo morrido em Lisboa em 1985. Embora literáriamente não se
tenha limitado à poesia, foi aí que deixou marcas mais fundas. Licenciado em
Direito em 1924, exerceu funções diplomáticas até 1930. Antes de se afirmar
como poeta, tentou uma carreira como compositor, que viria a abandonar, chegando
a ver a sua obra Suite Rústica estreada em Lisboa, pela orquestra de
David de Sousa, quando o poeta tinha 17 anos.
Com José Gome Ferreira,
as palavras libertam-se, para gritarem mais alto a imaginação da revolta.
Nunca vêm sozinhas. Trazem sempre com elas o perfume trágico da vida e como
ruído de fundo insuportável o sofrimento dos povos. José Gomes Ferreira nunca
deixa adormecer as palavras nos lugares comuns. Abre as portas com elas aos
jardins da amargura e escreve nas paredes a sua liberdade.
Poeta que os neo-realistas sentiam como irmão, fugia de
qualquer possível cânone pela sua irreprimível originalidade. E, no entanto, um
livro seu esteve para integrar a coleção do Novo Cancioneiro, o que só não
aconteceu por circunstâncias extra-literárias e acidentais. Se afinal isso
tivesse acontecido, a descoincidência geracional teria sido secundarizada pela partilha da
coleção fundadora. Essa comunhão teria talvez tornado mais nítido que o verdadeiro cerne da
poesia neo-realista talvez não fosse um cânone estético ou literário, sob uma égide
ideológica discretamente omnipresente, mas principalmente a partilha de uma
revolta moral , de uma insurreição ideológica libertadora, de uma fome
ilimitada de liberdade para todos. Talvez , as circunstâncias cronológicas e
geracionais tenham suscitado uma
ressonância humanizante e trágica no seu intimismo presencista, levando-o à
qualidade de “poeta militante” que expressamente assumiu como ambição telúrica
de um mundo mais justo e livre.
Vai ser aqui evocado através de quatro poemas publicados na “Poesia
I”, em 1948 (1ª edição), mas que haviam sido escritos ( como é expressamente
mencionado) entre 1931 e 1938. Ou
seja, foram escritos quando a geração do Novo Cancioneiro estava ainda a
despontar, publicados quando ela já tinha irrompido com robustez. O primeiro,
aliás, foi considerado pelo próprio autor o poema que materializou uma viragem decisiva
rumo ao que viria a ser o seu universo poético.
Viver sempre também cansa (1931)
Viver sempre também cansa!
O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinza, negro, quase verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
As paisagens não se transformam
Não cai neve vermelha
Não há flores que voem,
A lua não tem olhos
Ninguém vai pintar olhos à lua
Tudo é igual, mecânico e exato
Ainda por cima os homens são os homens
Soluçam, bebem riem e digerem
sem imaginação.
E há bairros miseráveis sempre os mesmos
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe
automóveis de corrida...
E obrigam-me a viver até à morte!
Pois não era mais humano
Morrer por um bocadinho
De vez em quando
E recomeçar depois
Achando tudo mais novo?
Ah! Se eu pudesse suicidar-me por seis meses
Morrer em cima dum divã
Com a cabeça sobre uma almofada
Confiante e sereno por saber
Que tu velavas, meu amor do norte.
Quando viessem perguntar por mim
Havias de dizer com teu sorriso
Onde arde um coração em melodia
Matou-se esta manhã
Agora não o vou ressuscitar
Por uma bagatela
E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo..
Comício (1934)
Vivam, apenas.
Sejam bons como o sol.
Livres como o vento.
Naturais como as fontes.
Imitem as árvores dos caminhos
que dão flores e frutos
sem complicações.
Mas não queiram convencer os cardos
a transformar os espinhos
em rosas e canções.
E principalmente não pensem na Morte.
Não sofram por causa dos cadáveres
que só são belos
quando se desenham na terra em flores.
Vivam, apenas.
A Morte é para os mortos!
O nosso mundo é
este
(último poema do “Panfleto contra a paisagem” -1936/37)
O nosso mundo é este
Vil suado
Dos dedos dos homens
Sujos de morte.
Um mundo forrado
De pele de mãos
Com pedras roídas
das nossas sombras.
Um mundo lodoso
Do suor dos outros
E sangue nos ecos
Colado aos passos…
Um mundo tocado
Dos nossos olhos
A chorarem musgo
De lágrimas podres…
Um mundo de cárceres
Com grades de súplica
E o vento a soprar
Nos muros de gritos.
Um mundo de látegos
E vielas negras
Com braços de fome
A saírem das pedras…
O nosso mundo é este
Suado de morte
E não o das árvores
Floridas de música
A ignorarem
Que vão morrer.
E se soubessem, dariam flor?
Pois os homens sabem
E cantam e cantam
Com morte e suor.
O nosso mundo é este….
( Mas há-de ser outro.)
Heróicas (1936/37/38)
VII - (Junto a minha voz ao coro dos poetas mais novos.
Recuso-me a ter mais de vinte anos.)
Não, não queremos cantar
as canções azuis
dos pássaros moribundos.
Preferimos andar aos gritos
para que os homens nos entendam
na escuridão das raízes.
Aos gritos como os pescadores quando puxam as redes
em tardes de fome pitoresca para quadros de exposição.
Aos gritos como os fogueiros que se lançam vivos nas fornalhas
para que os navios cheguem intactos aos destinos dos outros.
Aos gritos como os escravos que arrastaram as pedras no Deserto
para o grande monumento à Dor Humana do Egipto.
Aos gritos como o idílio dum operário e duma operária
a falarem de amor
ao pé duma máquina de tempestade
a soluçar cidades de fome
na cólera dos ruídos...
Aos gritos, sim, aos gritos.
E não há melhor orgulho
do que o nosso destino
de nascer em todas as bocas...
...Nós, os poetas viris
que trazemos nos olhos
as lágrimas dos outros.
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