segunda-feira, 9 de março de 2020

O AVESSO DO DIREITO





O AVESSO  DO  DIREITO

Foi amplamente divulgado na comunicação social um alerta lançado pelo representante do Ministério Público no Processo Marquês no decorrer do debate instrutório que está em curso.
Esse alerta foi lançado no quadro de um apelo para que fosse acolhida pelo Juiz de Instrução toda a acusação feita pelo Ministério Público. No essencial, chamava-se assim a atenção para como se sentiria chocada a opinião pública, se fosse contrariada a tese do Ministério Público constante da acusação. Choque esse que reflexamente lesaria seguramente o prestígio do poder judicial
Deixei passar uns dias, para sopesar eventuais reações. Estranhamente, não tive conhecimento de nenhuma que fosse consistentemente crítica e que sublinhasse a relevância do episódio referido. Mas à anemia das reações que roçaram o zero, ainda neste domingo um comentador encartado, alegadamente de alto coturno, tocou ao de leve no caso como se fosse natural. Tudo se passou como se o procurador do Ministério Público tivesse proferido uma frase banal.
E, no entanto, foi assim publicamente assumida, no decurso do funcionamento formal de uma instância judicial, uma posição que reflete um pensamento e representa uma atitude que chocam frontalmente com o tipo de justiça que se espera de qualquer poder judicial decente e civilizado e a nossa Constituição impõe.
O agente do MP deixou claro que a razão principal  para dever ser acolhida a sua acusação não é o facto de ela ser justa, legítima e fiel à legalidade democrática, à luz da ordem jurídica portuguesa, mas sim o seu reflexo na opinião pública. Ora, na verdade, uma posição destas lesa profundamente  de forma , ostensiva e  grosseira  a ordem jurídica democrática vigente.
É , aliás, grave que alguém com uma filosofia jurídica destas tenha um lugar  de relevo numa magistratura de um Estado democrático. É um perigo estrutural para a aplicação da justiça. Mas não é menos lamentável e insalubre a indiferença com que foi encarada  a posição assumida, reduzida a uma simples  frase corrente numa retórica banal.
Mas um reforço da nossa atenção agrava o sentido do referido dislate jurídico. Na verdade, nesse mesmo processo, que decorre há vários anos, foram recorrentes , quando os autos estavam em segredo de justiça sob a égide do Ministério Público, as fugas de informação repercutidas e ampliadas na comunicação social, em regra projetando como realidade a versão do MP quanto a essa realidade. Fortemente desfavorável aos acusados que  explícita e reiteradamente a consideraram falsa.
Ou seja, o Ministério Público teceu uma narrativa acusatória que os arguidos e a defesa têm considerado como fantasiosa e desprovida de qualquer fundamento comprovado. Dando-a como verdade insofismável, foi alimentando a comunicação social, através de fugas de informação lesivas do segredo de justiça, selecionadas para instituírem e credibilizarem, como verdade evidente, uma narrativa acusatória desfavorável aos arguidos. Desse modo, em articulação óbvia com alguma comunicação social, foi criando na opinião pública a ideia que os arguidos eram culpados, ou seja, eram criminosos.
E assim os condenava socialmente, praticando quanto a eles e em especial quanto aos de maior notoriedade pública, um verdadeiro linchamento simbólico que muito fortemente os penalizava, esvaziando quase por completo a proteção à presunção de inocência até condenação transitada em julgado, que é um dos pilares de um sistema penal civilizado e democrático.
Para fechar esse círculo perverso, o Ministério Público acha agora que o resultado do julgamento tem que ser a confirmação judicial do linchamento mediático que estimulou contra os arguidos no espaço público.
E tão lamentável  como a tacanhez jurídica do Ministério Público é a passividade acrítica  quanto ao ocorrido, ocorrida no espaço público.

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