segunda-feira, 13 de março de 2017

NÓS, OS DA CRISE DE 62.



1. Nos passados dias 9,10 e 11 de Março a República dos Galifões, no âmbito das comemorações do seu 7º Milenário, evocou a crise académica de 1962 na sua dimensão coimbrã. Cinquenta e cinco anos depois, um punhado de gente vinda desses tempos já longínquos dialogou com estudantes de hoje.


Com esta iniciativa a República dos Galifões honrou-nos e honrou a memória das lutas e um episódio da parte luminosa da história da nossa Universidade. A Associação Académica de Coimbra apoiou e participou. A Universidade também, tendo o Magnífico Reitor presidido à sessão de encerramento.

No dia 9, a sessão de abertura foi presidida pelo Prof. Rui de Alarcão, reitor Honorário da Universidade de Coimbra da qual é Professor Jubilado. Tendo sido sucessivamente eleito Reitor da nossa Universidade desempenhou esse cargo durante dezasseis anos; é também “Galifão Honorário”. Falou também um vice-presidente da Direcção-Geral da AAC e Francisco Leal Paiva, antigo da República dos Galifões e Presidente  da Direcção-Geral da AAC em 1961/62.



Na primeira sessão, cujo tema foi “ A Consciencialização Coletiva ─ o despertar da Crise Académica de 62”, usaram da palavra José Augusto Rocha, membro da Direção- Geral da AAC, em 61/62  (orador vibrante e influente, capaz de incendiar as Assembleias Magnas) e de novo Francisco Paiva.

Na sessão seguinte, sobre “O papel da mulher nos movimentos cívicos”, mas centrando-se no contexto universitário, falaram Maria Fernanda Dias, da Direcção-Geral da AAC em 60/61, Margarida Lucas, da Direcção- Geral da AAC em 61/62 e Eliana Gersão, presidente do Conselho Feminino da AAC em 1962 e secretária de redacção da Via Latina em 1962.

Na terceira sessão, falei eu, Rui Namorado (que pertenci à redacção da Via Latina no final de 60/ 61 e em 61/62  bem como ao Círculo de Estudos Literários da AAC ), sobre “Coimbra da contestação ─ uma questão cultural”.

No fim da manhã do dia 10, tal como na véspera na emblemática Sala 17 de Abril, decorreu uma sessão  sobre “O I Encontro Nacional de Estudantes ─ objetivos comuns”. Usaram da palavra : por Coimbra – José Augusto Rocha e António Monteiro Taborda  ( também ele membro da Direcção-Geral da AAC em 61/62); pelo Porto – Carlos Morais , dirigente da Pró-Associação  da Faculdade de Ciências do Porto em 1962; por Lisboa - Eurico de Figueiredo, Presidente da Comissão Pró-Associação dos Estudantes de Medicina de Lisboa em 1962 e um dos mais emblemáticos dirigentes dos estudantes de Lisboa durante a crise.

No sábado , no início da tarde, decorreu um sessão sobre “As Crises Académicas e o seu papel na democracia”, tendo falado António Avelãs Nunes, director da Via Latina em 1961/62 ( que viria a ser Vice-Reitor da Universidade de Coimbra da qual é hoje Professor Jubilado); e José Lopes de Almeida, que foi eleito Presidente da Direcção-Geral da AAC em 1961/62, não tendo tomado posse por ter sido mobilizado para a guerra colonial.

Logo de seguida, decorreu a Sessão de Encerramento. Falou de novo o Francisco Leal Paiva, seguindo-se-lhe Jorge Soares da Silva membro atual da República dos Galifões. Como último orador, usou da palavra o Magnífico Reitor da Universidade de Coimbra, Prof. João Gabriel Silva.

Além destas sessões, houve na sexta-feira uma mesa-redonda sobre questões pedagógicas e depois um jantar-convívio. Na República dos Galifões foi aberta ao público uma exposição alusiva e no sábado houve atuação de um grupo de fados.

Para além dos intervenientes já citados , não foi grande a presença de gente desses tempos antigos. Sem menosprezo por outros, lembro-me de : Irene Namorado, Helena Lucas, David Rebelo (D.-G. da AAC de 61/62), Manuel Balonas [Manecas] (D.-G. da AAC de 63/64), Joaquim Loureiro (República dos Galifões), Vítor Miragaia (República do Palácio da Loucura).
Talvez valha a pena dizer que entre os 44 estudantes presos pela PIDE em 62 no quadro da crise académica, alguns estiveram presentes nas comemorações:  a Irene Namorado e a Margarida Lucas foram então  “hospedadas” na sede da PIDE em Coimbra,  enquanto o José Augusto Rocha , o Manuel Balonas  e o Rui Namorado o foram no Forte de Caxias.

Mencionando apenas os presentes, entre os 39 estudantes de Coimbra expulsos por causa da crise, entre os presentes foram então “honrados” com a expulsão de todas as Universidades portuguesas por dois anos: António Taborda, David Rebelo, Francisco Paiva, José Augusto Rocha e Margarida Lucas. Foram “honrados” com a expulsão por dois anos da Universidade de Coimbra a Fernanda Dias e o Rui Namorado.

Por causa da mesma crise, foram expulsos da Universidade de Lisboa 21 estudantes. Um deles foi o Eurico de Figueiredo, que assim foi forçado a regressar a Coimbra, cuja Universidade já antes havia frequentado.

2. Esta comemoração, talvez por ter sido uma  iniciativa dos estudantes actuais,  não se reduziu a um ato de saudade, não foi uma reunião de antigos combatentes. Foi um ato de memória em que todos os seus participantes olharam para um passado pelo que ele possa ter ainda de alavanca de futuros e não  por causa do perfume  sépia de qualquer melancolia. Quem se inscreve no lado futurante da História só muito lentamente desliza para o esquecimento, mas não deixa nunca de regressar quando se marcam novos encontros com a esperança e quando e se rompem as atmosferas cinzentas da injustiça e da opressão. Ilhas luminosas de uma cadeia que não acaba, pequenos passos de uma trajectória que partilhamos. Mesmo quando entrelaçámos os fios dispersos das pequenas memórias foi do presente que falámos, foi o futuro que procurámos.
3.
Em  26 de março de 2012, publiquei neste blog um poema de homenagem a quem participou na crise de 62, antecedido de um pequeno texto. Com a sua publicação reitero essa homenagem e reforço a comemoração que acabou de ser feita.
Eis esse texto e esse poema.

“Acabei hoje este poema. Apresso-me a publicá-lo em homenagem aos estudantes que, há meio século, em Lisboa e Coimbra lutaram pelas coisas simples que corroem as ditaduras. Não procuraram glória. Apenas não consentiram que as botas do poder os pisassem sem que resistissem. Os de cima talvez tivessem julgado que os tinham vencido. Se assim foi, hoje sabemos que se enganaram. Não me foi possível estar no sábado passado em Lisboa. Com este poema quero, de algum modo, não só compensar essa ausência, mas também evocar fraternalmente os estudantes que então juntaram as suas vozes nos "Poemas Livres".



Nós, os da crise de 62

Eram de frio as botas do poder,
dentes podres de um medo mergulhado

no simples respirar de cada dia.

Os sacerdotes negros do destino
eram sombras de inverno repetidas,
num abismo sem cor e sem limites.

Mas o vento da história regressou
e o cão foi arrancado do poder,
sem ter sequer a honra do vencido.

Nós fomos breve grão de liberdade,
ali tão rudemente semeado,
num gesto sem temor e sem amparo.

Abril foi então desembainhado
e a colheita nasceu em todos nós,
flor de audácia, gestos de ousadia.

Agora que os morcegos regressaram,
não esperem de nós que nos deitemos
numa cama de medo e de saudade.

Estamos ainda aqui de ideias limpas,
peregrinos que não perdem a memória,
viajantes no tempo que há de vir.

                                         [Rui Namorado]


 Os morcegos foram entretanto enxotados, mas continuam a a pairar.

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