segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O CHARME DISCRETO DOS CROCODILOS

Fui surpreendido, nos últimos dias, por uma desusada afluência nos écrans televisivos de um diversificado leque de crocodilos. Todos choravam: uns quase convulsivamente, outros como se transportassem a discreta dor de viúvas saudosas. É certo que, a fazer fé na aparência que os embrulhava superficialmente, poder-se-ia até confundi-los com gente.

Mas sabendo-se quem eram, tendo-os ouvido, uma e outra vez, louvar, de olhos em alvo, o tipo de sociedade em que vivemos, as lágrimas que tão compulsivamente soltavam só podiam ser de crocodilo. Ora quem chora lágrimas de crocodilo, o que se pode dizer que seja. Um rouxinol ? Um tigre da Sibéria ? Um pacato cidadão ? Uma cobra de água? Não, certamente que não. Só pode ser um crocodilo.

Mas o que afligia os nossos sensíveis répteis ? Muito justamente, comovia-os a solidão e o descaso que assinalou a morte de um, dois, vários idosos, neste janeiro frio e pesado, fustigado pelos ventos insalubres de uma alegada tróica. As suas lágrimas vinham juntas com uma salada de bombeiros, de juntas de freguesia, de misericórdias e de vizinhos, convocando a todos para uma nova piedade, que poupasse à nossa sociedade este efeito colateral, que a tróica se esqueceu de discutir, que não está inscrito na dívida soberana e que não tira o sono à simpática dupla merklo-sarkosiana.

Pouco antes, lágrimas irmãs, talvez ligeiramente mais contidas, haviam chorado o esmorecer demográfico de Portugal, onde as crianças parecem recusar-se a nascer, onde os que podiam ser pais, aflitos pelo não-futuro com que os ameaçam, recusam ser causa de sofrimento para crianças futuras. Comovidos, os crocodilos falam neste caso em circunspectas políticas, desenrolando penosamente rosários de lugares-comuns, cuja lógica é, afinal, a recomendação de que é urgente fazer baixar a febre, mas está fora de questão curar a doença.

De facto, é de algo semelhante a uma doença, aquilo de que estamos a falar. O capitalismo, possuído pela fatalidade neoliberal, é cada vez mais uma doença para um número crescente de cidadãos, que pagam com os seus dramas vivenciais, com a sua infelicidade, os rios de leite e de mel que desaguam com abundância nas flácidas barrigas de um pequeno número de felizardos.

Não cabe na vasta sabedoria dos croquetes economicistas, alguns dos quais fabricados nas melhores universidades, que executam os mais sofisticados cálculos em equações de excelência, para sublinharem a fatalidade da desgraça dos povos e da ventura dos privilegiados, dar uma resposta para a sombra que se adensa sobre os mais velhos e que desencoraja os nascimentos. Por eles, chegaremos um dia ao colossal êxito de uma sociedade suficientemente rigorosa e disciplinada para que ninguém se atreva a nascer e ninguém tenha o desplante de viver .

É certo que qualquer capitalista, com o discernimento de uma criança de cinco anos, sabe que sem pessoas não há capitalismo; ou que, se houvesse um radioso futuro em que qualquer coisa como máquinas mandasse verdadeiramente, elas não teriam certamente um resíduo de generosidade que deixasse escapar com vida os resíduos humanos que embaciassem esse alegado paraíso. Mas, se é pensável, mesmo que absurdo, que essas endinheiradas criaturas possam sonhar com essa desumanidade, todos nós, todos os povos, toda a vasta legião de pessoas que pagam penosamente o preço da subsistência de um sistema retrógrado, imoral e destruidor, têm que acordar para o essencial: ou começamos a breve prazo a percorrer o difícil trajecto de saída deste tipo de sociedade, rumo a um pós-capitalismo humanizante, com justiça e liberdade; ou somos devorados por ele.

Todos compreendemos que numa sociedade cooperativa e solidária, em que se estimule o protagonismo livre de todos e se assegure a justiça, será muito menos frequente que haja pessoas idosas condenadas ao isolamento, à solidão e à miséria; tal como será mais improvável que os que poderiam vir a ser pais não queiram gerar novas vidas, por julgarem que elas estão, muito provavelmente, condenadas a ser de sofrimento.

Todos temos que compreender que consentir-se na subsistência de uma máquina de produzir injustiça, miséria e infelicidade, ao mesmo tempo que se fazem campanhas de solidariedade para se minorarem os resultados da manutenção dessa máquina, é uma generosidade desesperada, quando não é uma hipocrisia cínica. Tratemos pois das actuais sequelas do funcionamento dessa máquina com empenho e fraternidade, mas acabemos com a máquina.

Não nos conformemos, não aceitemos que se apresentem perante nós, com a pele viscosa dos crocodilos, chorando as suas lágrimas com a duplicidade de quem se recusa a salvar as vítimas, mas tem manha suficiente para chorar por elas.

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