sexta-feira, 6 de junho de 2008

A economia do mal-estar


O Júlio Mota enviou-me excertos de um texto, por ele traduzido, do economista francês, Jean-Paul Fitoussi (Croissance : des Cassandre aux Candide), que foi publicado no "LE MONDE ", de 31 Maio de 2008.

Destinava-se a ser enviado aos membros do Clube Político Margem Esquerda, como texto para reflexão e debate. Resolvi colocá-lo neste blog. A sua leitura dá que pensar. Pode ajudar-nos a pensar, protegendo-nos das falsas evidências da vulgata mediática.
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Crescimento:
das Cassandras aos Candide.


A estagnação anunciada da zona euro suscita um verdadeiro mal-estar e apela para a utilização de políticas económicas reactivas e coordenadas, contrariamente à posição que tinha prevalecido desde 2000-2001.

A primeira razão deste mal-estar deve-se aos resultados da zona euro na primeira metade dos anos 2000, que foram medíocres, a taxa do crescimento a não ultrapassar, entre 2001 e 2005, 1,4% ao ano (contra 2,4% nos Estados Unidos). Certamente, em 2006 e 2007, a zona euro teve êxito em conseguir alcançar um décimo de ponto de crescimento a mais do que os Estados Unidos! Mas no conjunto do período, o rendimento per capita aumentou mais nos Estados Unidos que na Europa, apesar de uma diferença marcada da evolução demográfica. A segunda razão é a aceitação do futuro que se avizinha de uma redução do ritmo de crescimento como se se trate de um facto meteorológico. Os responsáveis europeus exigem governos que se resignem a esta triste perspectiva em vez de tentarem contrapor-se a ela. A França vê-se criticada porque o seu défice poderá atingir os 3% em 2009; a Itália está sob estreita vigilância, apesar de um défice baixo. Felicita-se a Espanha pelo seu excesso de zelo orçamental. No mínimo, a análise económica subjacente a tal interpretação do pacto de estabilidade é incorrecta e, no pior dos casos, no limite, a Comissão Europeia, perfeita no seu papel de Secretário de Estado da vigilância orçamental, esquece-se de se preocupar com o bem-estar geral europeu.

O enigma do pacto de estabilidade é que este parece obedecer a uma dinâmica autónoma, tornando-o cada vez mais vinculativo apesar de uma suposta reforma lhe dar mais flexibilidade. É que, progressivamente, o ponto focal do pacto desloca-se do défice máximo autorizado para o do regresso a médio prazo ao equilíbrio orçamental. Muitos economistas europeus defendem a introdução de regras orçamentais nas constituições nacionais com o fim de melhor internalizar a lógica do pacto, ou mesmo de o ultrapassar. Esta obstinação doutrinal é específica à Europa, e não se reencontra em nenhum outro grande país do planeta.

A variável de ajustamento

Outro sinal da passividade do governo europeu face às circunstâncias presentes tem a ver com a política monetária. A taxa de juro é a mesma que há dez meses, 4%, enquanto que, sobre o mesmo período, nos Estados Unidos passou de 5,25 % para 2%. O FED está ele errado ao reagir tão vigorosamente, quando a taxa de inflação americana é mais elevada que a taxa europeia? O BCE diz temer os efeitos de " segunda volta" , isto é, a compensação pelos salários do aumento dos preços, porque então uma espiral inflacionista poderia arruinar todos os seus esforços. Faz efectivamente a sua obrigação no âmbito do mandato que lhe foi confiado. Mas é necessário compreender as consequências.
A taxa externa à qual equivale o aumento do preço do petróleo e das outras matérias-primas pesa sobretudo sobre os salários. A baixa do poder de compra do salário mediano torna-se a variável de ajustamento susceptível de acalmar as pressões inflacionistas, ajudando de facto as autoridades monetárias a atingir o seu objectivo. Ora todos os choques actuais têm um impacto desigual. Estes atingem de maneira desproporcionada mais as pessoas de baixos rendimentos: para os bens de consumo primários, a carga é tanto mais elevada quanto o salário é fraco, enquanto que pode ser vizinho de zero para rendimentos elevados que beneficiam da baixa dos preços dos outros bens. A crise bancária, que vai racionar ainda mais o acesso ao crédito dos menos favorecidos, é também criadora de novas desigualdades.
Também, quer se trate da política monetária ou orçamental, a policy mix europeia aparece inadaptada aos tempos presentes e futuros. Se acrescentarmos que a perspectiva de uma redução do crescimento mundial, dada como certa para muitos, e a apreciação do euro só podem levar a que se reduzam as exportações liquidas europeias, é então o conjunto das componentes da procura que correm o risco de serem orientadas à baixa. Os Estados Unidos estão empenhados numa política oposta: a depreciação do dólar para aumentar a procura externa; políticas monetária e orçamental expansionistas para apoiar a procura interna
Pode-se admitir que a política americana seja má, mas os resultados anteriores da sua economia deveriam pelo menos incitar Candide à dúvida, ou mesmo à introspecção. Mas porque é que, então, as duas maiores economias do mundo, confrontadas com choques de natureza vizinha mas de graus diferentes, conduzem políticas tão divergentes? A resposta mais evidente é que uma tem um governo e a outra um sistema de governança. Um governo deve e pode reagir rapidamente. Um sistema de governança é muito mais lento a pôr-se em movimento.
Porque as regras dum sistema de governança só se podem aplicar ao uso dos instrumentos e não às suas finalidades, não é nada de espantar que a trilogia - estabilidade dos preços, equilíbrio orçamental, concorrência - constitua o horizonte das políticas europeias. Numa economia governada, as autoridades políticas estão mais conscientes das finalidades - crescimento, emprego, poder de compra - uma vez que não podem dissociar as regras da boa gestão dos resultados da sua aplicação.

[Jean-Paul Fitoussi, Croissance : des Cassandre aux Candide, LE MONDE , 31 Maio, 2008].

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