Às vezes , a nossa emocionalidade mais profunda ou a nossa intuição poética criam evidências que a nossa racionalidade corrente demora mais tempo a alcançar. Isso ocorre muito a propósito das conjunturas políticas. Os primeiros sinais identificadores do actual governo de direita fizeram-me lembrar um poema que escrevi quando nos velhos tempos do fascismo as múmias do regime substituiram o incapacitado Salazar pelo engomado Marcelo Caetano. Esse poema viria a ser integrado no meu livro Maio Ausente , publicado em 1970. Recordando-o, sinto o vago incómodo de sentir nele alguma actualidade, como se a direita fosse no essencial a mesma, embora suficientemente ágil para ser tão democrática quanto tiver que o ser e tão autoritária quanto puder. Sempre a favor dos poderes de facto e sempre íntima do dinheiro. Eis o poema:
OS HOMENS DURAMENTE EXPERIMENTADOS
Há homem novo na cadeira velha
casaca ainda de perfume antigo
rosto esculpido em conhecida sombra
a palavra medida estável deserta
Homem de poltrona e velhos livros
caminha por entre frases tumulares
fala ao povo de longe por palavras
gastas em anos de discurso largo
Os mesmo guardas estão em seu redor
com fardas bastante conhecidas
guarnecida está a esperança deste medo
polícia a polícia alimentado
Neste país de muros e fantasmas
continua de pedra o tempo todo
velhos os meses no relógio antigo
os homens duramente experimentados
[Rui Namorado]
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