terça-feira, 24 de outubro de 2017

Breve juízo sobre um juiz.



Breve juízo sobre um juiz.

Associo-me ao coro de indignação suscitado pelo facto de um juiz de um Tribunal da Relação ter fundamentado uma decisão sua com algumas alarvidades. Alarvidades das quais transparece uma depreciação genérica das mulheres, colocando-as num patamar inferior ao dos homens. Essa depreciação traduziu-se, no essencial, na ideia de que o adultério praticado por homens era um pecadilho que podia merecer um puxão de orelhas, quiçá cordial, mas o adultério praticado por mulheres justificava, inevitavelmente,  uma feroz carga de pancada.

Que uma ética tão tosca seja apanágio de um juiz, é algo que realmente surpreende pela negativa. Mas, em termos sistémicos, preocupa-me ainda mais que um juiz de um Tribunal da Relação tenha cometido a burrice de tornar público, através de uma sentença, um tal dislate. Burrice pura! E, penso eu, que para a qualidade e para a credibilidade de um sistema judicial, um juiz estúpido é ainda mais perigoso do que um juiz eticamente primitivo.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

RAÍZES ?



Há três grandes vetores implícitos das políticas públicas impostas pela União Europeia a Portugal, como pressupostos para a concessão de apoio, que talvez valha a pena recordar na atual conjuntura.

Primeiro ─ valorização da agricultura empresarial e destruição da pequena agricultura camponesa, subsidiando a atividade da primeira e a inatividade da segunda.

Segundo ─ encorajamento da substituição da atividade  dos serviços públicos por encomendas a entidades privadas dessas atividades.

Terceiro ─ privatização de serviços públicos essenciais, como, por exemplo, as telecomunicações.

Aos membros da União Europeia era dada a pequena liberdade de se moverem no quadro destes e de outros dogmas, esforçadamente inventados por legiões de lobistas que em Bruxelas iam convertendo em  pura ciência económica os prosaicos interesses estratégicos dos seus poderosos clientes. 

À Santa Globalização atribuía-se o poder desse milagre. Um milagre que para muito poucos era paraíso imediato para muitíssimos era um milagre sempre adiado que ainda hoje não lhes chegou.

Os três vetores acima mencionados tiveram consequências: colapso da pequena agricultura, despovoamento e desertificação dos campos, degradação da prestação de serviços públicos essenciais, quebra de confiabilidade nas telecomunicações.

Estes problemas não podem ser esquecidos e não pode ser afastada a hipótese de se reverter  esse tipo de medidas ou de se percorrerem caminhos que nos façam sair da insalubridade das suas consequência.

Se vamos procurar as raízes do que facilitou os dramas humanos e sociais vividos recentemente por causa dos incêndios florestais temos que as buscar até ao fundo, não esquecendo  nenhuma .Embora também o devamos fazer, não podemos limitar-nos a valorizar o que é importante, esquecendo os bloqueios essenciais. Bloqueios ou distorções que são principalmente sistémicos e  só em pequena medida funcionais; bloqueios que as alterações climáticas tendem, cada vez mais, a tingirem das cores negras da tragédia.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

O CHARME INDISCRETO



O CHARME  INDISCRETO  

1.Há vozes de direita trauliteiras e há vozes de direita meigas. Há vozes de direita que vociferam sempre e há vozes de direita que são hábeis nas tocaias, só atacando quando acham oportuno. Há vozes de direita que explodem ao vermelho e há vozes de direita que nunca perdem a calma. Há vozes de direita que atacam sempre e há vozes de direita que só atacam quando nos vêem frágeis. Há vozes de direita que atacam todas as esquerdas e há vozes de direita que atacam a parte das esquerdas que em cada momento lhes convém. Há vozes de direita que não disfarçam a sua acrimónia quanto à esquerda e há vozes de direita que batem nas costas das esquerdas com a subtileza de quem procura o lugar onde um dia cravarão o punhal.
Da direita, seja ela trauliteira ou subtil, não se espere lisura e lealdade no combate político. Da direita, seja ela trovejante ou melíflua, não se espere uma distinção entre as esquerdas, quando as puder ferir seriamente. Para todas as direitas, a esquerda enquanto alvo está sempre unida.

2. Disto as esquerdas nunca se devem esquecer. As suas diferenças, se forem autênticas e não destruírem a casa comum, são uma virtude e uma respiração natural. Repito: se tiverem sempre em conta que são um alvo comum para todas as direitas, sejam elas brutais ou melífluas.
E que nenhuma das esquerdas se esqueça que, por mais mansa que pareça, qualquer direita, pela sua própria natureza, sempre que puder cravará a faca nas costas de qualquer das esquerdas.

3.Muitos de nós podem ainda  lembrar-se de como era, quando a direita autoritária ocupava o poder sem freios, quando havia um poder não democrático em Portugal .
E se nem todas as direitas são iguais, todas cabem numa mesma palavra. Todas têm no seu código genético como desígnios, a conservação da desigualdade, a relativização da liberdade, a subalternização de facto das pessoas às coisas, do trabalho ao capital. Todas vivem com base no pressuposto de que as esquerdas são um empecilho ao paraíso dos privilégios. E só não afastam esse empecilho se não puderem.

4.Em prol do mundo que almejam, o combate político das esquerdas deve ser sempre leal e democrático. Mas isso não significa que possa assentar na ilusão de que a direita adopta uma posição simétrica. A direita política é a formalização dos poderes de facto no tipo de sociedade  em que vivemos. Só encara o futuro para o confiscar, de modo a torná-lo um espelho cada vez mais pobre do presente.
Assim, no mundo em que vivemos a esquerda tem sobre a direita uma superioridade trágica, que está longe de ser evidente, mas que se reforça dia a dia. Na verdade, se a direita através do uso das suas vastas alavancas de poder conseguisse destruir as esquerdas no mundo, reduzindo a nada qualquer resistência ao capitalismo neoliberal, pouco tempo teria para celebrar a sua imaginária vitória. Apenas teria passado a certidão de óbito, não à esquerda, mas à própria civilização humana e no limite à existência da própria espécie humana. No mundo de hoje,  o drama é pungente. E se cada país tem uma história própria, ela  no essencial não difere de todas as outras. Pricipalmente, não está imune a todas as outras.

Por isso, devemos ter sempre presente, em analogia com a célebre metáfora  do leve bater de asas de uma borboleta na China que inundaria o mundo de imensas tempestades, que em política por vezes uma pequena pulhice, mesmo envernizada, pode causar grandes tempestades. Tem um risco para o seu subtil autor: qualquer tempestade leva sempre tudo à sua frente. Sem distinções.

domingo, 15 de outubro de 2017

O sono da razão cria monstros



Os teóricos da mentira inventaram a pós-verdade para se lavarem a si próprios.

Esperemos que os linchadores mediáticos não se associem aos burocratas do direito para inventarem o pós-direito como ocultação do arbítrio, como regresso à lei do mais forte.

A justiça ver-se-ia assim forçada a descer do seu pedestal, deitando fora a balança, tirando a venda que lhe tapava os olhos e brandindo a espada como um gume sem norte.


O Estado de direito converter-se-ia numa expressão vazia e a civilização entraria num prolongado sono de angústia.

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

A noite dos prodígios ou a surpresa da recontagem



A noite dos prodígios ou a surpresa da recontagem

A contagem dos votos desenrolava-se com fluidez. No estado-maior dos “ roxos” o perfume do êxito insinuava-se como luz nascente. Respirava-se júbilo. Parecia certo que um dos seus “generais” ia entrar para o governo da cidade pela porta grande dos votos.
Mas à medida que os votos iam sendo contados a melodia de esperança  e regozijo começou a murchar. A noite foi ganhando um tom sépia. O tom  que prenuncia os outonos. Até que foram contados os votos da  última urna ; e a noite estendeu-se  como um manto fúnebre sobre uma alegria que não chegou a nascer.
A serenidade saiu assutada do estado-maior dos “roxos”. Explodia por todos os lados uma raiva surda contra as outras cores. Especialmente contra os de “cor rosa” que haviam conquistado aos “ roxos” o lugar sonhado.

Mas, para grandes males, grandes remédios: exige-se a recontagem dos votos. Exigiu-se e os “roxos” venceram a árdua batalha: os votos foram recontados à sombra de um juiz.  Durante dias, a alegria perdida projetou uma ligeira esperança de voltar.
O juízo final chegou, enfim. E ó desgraça das desgraças! os  de “cor rosa” mantiveram o lugar que já tinham e os “roxos” continuaram sem ele. O perfume da alegria perdida que ainda restava esvaiu-se sem remissão.

E a sombra tornou-se um pouco mais sombria, quando na recontagem para uma assembleia coadjuvante se verificou que, aí sim, os de “cor rosa” perderam um lugar. Perderam-no para os “vermelhos”; não para os “roxos”. Consta que os “ vermelhos”  fizeram uma festa. Uma festa tanto mais suculenta quanto a ficaram a dever à fúria vencida dos “roxos”. Os de “cor rosa” perderam um lugar na assembleia, mas conservaram os que tinham-no governo. Nem caso para deitarem foguetes, nem para porem luto.


Moralidade: As paróquias das pequenas raivas são espaços asfixiantes. E quando se respira mal raramente se decide bem.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

FOI ONTEM E PASSARAM DEZ ANOS



1.Neste mesmo blog, no fatídico dia 9 de outubro de 2007, prestei ao Fausto Correia uma primeira homenagem. Eis o que então escrevi:

fausto, um grande abraço!
Tantas vezes homenageaste o Torga, que nesta hora extrema ele gostaria decerto de te poder também homenagear. E como podia fazê-lo melhor do que enviando-te um poema?
Pela nossa parte, eu e a Fernanda, aqui em casa, escolhemos ser mensageiros deste poema do Miguel Torga, para assim te darmos um abraço que é já de uma saudade sem medida.


Combate

Manhã do mundo que não amanheces!
Tantos poetas a cantar na sombra,
E nenhuma alvorada se anuncia!
Somos nós maus profetas no degredo,
Ou és tu, sol da vida, que tens medo
De iluminar a nossa profecia?

2. Poucos dias depois, 12 de outubro,  reiterando a homenagem prestada, socorri-me de um poema que o nosso camarada e poeta Gustavo Pimenta teve a amabilidade de me enviar como comentário ao que acima transcrevo.

Com o seu acordo, resolvi transcrever o comentário enviado para este blog pelo meu amigo e camarada Gustavo Pimenta, mensagem de fraternidade vinda do Porto, através de um poema de homenagem ao

Fausto Correia


Era um navio rumando à liberdade
como era
porto de abrigo em toda a tempestade

e era furacão rompendo a quietude
inquietando
a mansa hipocrisia da virtude

mas era
sobretudo
um porão imenso de amizade
que vamos enchendo
agora
e sempre
de saudade "


3. Foi ontem e passaram dez anos. Continuas a passear por entre nós, ouvindo as nossas piadas, sofrendo os nossos desgostos, ao nosso lado nos labirintos da vida, divertido e fraternal, acompanhando os nossos passos. 

Perdes com todos nós, quando perdemos e respiras de alívio e contentamento, quando ganhamos.

Dez anos passaram duramente sobre nós, cobrando implacáveis o preço do tempo. Mas na memória tudo está escrito como se tivesse sido ontem que te foste embora.

Não deixarias que te chorássemos. Preferirias um simples abraço de fraternidade. Não consentirias em palavras de melancolia que te colocassem no outono. Mas gostarias certamente que dez anos depois te continuássemos a levar connosco por dento dos nosso sonhos.

É isso que acontece enquanto prosseguir a nossa caminhada.

domingo, 1 de outubro de 2017

Homenagem à Catalunha



 
Como já afirmei noutro texto, no caso da Catalunha não tenho uma posição fechada, mas simpatizo com os independentistas. É certo que não tenho qualquer afinidade política com uma parte deles e que me identifico politicamente em termos genéricos com alguns espanholistas (PSOE). Mas o que para mim é determinante é o respeito pela vontade da maioria dos catalães. É pois necessário apurar, em condições democraticamente aceitáveis, essa vontade e não é legítima qualquer estratégia que vise impedir essa vontade de se revelar.

A dimensão jurídica da questão tem sido a única valorizada pelo poder de Madrid. Mas é estulto ou mistificatório esquecer-se a sua dimensão política. Tentar ignorá-la,  como se apenas estivesse em causa  uma questão de legalidade constitucional, é tão descaradamente simplista que mais parece  um simples expediente. 

No século XXI, as democracias mais maduras e mais decentes aceitam o direito de secessão das nações existentes no seu seio, sem subterfúgios. Compreende-se, por isso,  que  em questões como esta  a coerência internacional seja especialmente importante.

E ,neste caso, a União Europeia tem-se revelado particularmente incoerente. De facto, incentivou a divisão da Jugoslávia, indo até ao ponto de forçar a Sérvia a perder o Kosovo, pelo que não deveria agora, sem quebra de dignidade e de coerência,  fazer exactamente o contrário. Não se pode escolher um caminho político para depois o abandonar sempre que alguma conveniência ocasional o justifique. Quem forçou a Sérvia a perder o Kosovo, não pode anatematizar uma possível independência da Catalunha.

Por outro lado, no caso da Espanha, apresentar como um absoluto democrático o respeito pela Constituição é algo que merece ponderação. De facto, no topo do Estado espanhol há um rei como chefe de Estado, cuja legitimidade política está longe de ter uma raiz democrática. Foi um golpe de Estado fascista, dado contra uma república democrática, que gerou a  monarquia espanhola. Os representantes do povo desarmado negociaram com o poder franquista armado um armistício político. Uma negociação que para os representantes do povo não estava longe de ser um verdadeiro estado de necessidade. É nele que assenta a atual democracia espanhola, bem como as suas autonomias.

 Pode achar-se que esta solução é boa. Mas não se pode sublinhar até à exaustão o imperativo de os republicanos catalães se submeterem à legalidade constitucional plasmada na monarquia espanhola , ao mesmo tempo que se esquece que a monarquia espanhola foi instalada em Madrid, por força de um golpe de Estado fascista que desencadeou uma guerra civil que matou milhões de espanhóis. Uma guerra civil que os franquistas só vencerem porque foram ajudados pelos fascistas italianos de Mussolini e pelos nazis alemães de Hitler. Podemos aceitar a transigência dos desarmados como um preço justificado pela vontade de conseguirem paz, tendo em conta a relação de forças existente. Mas não podemos hoje ser intransigentes para com os republicanos da Catalunha, ao mesmo tempo que esquecemos o pecado original da monarquia espanhola.

A última experiência de república na Catalunha não foi vencida nas urnas, foi esmagada pela força das armas. E mais recentemente a humilhação da Catalunha materializada pelo chumbo da última versão do  Estatuto Autonómico, antes referendado em toda a Espanha e na Catalunha, foi equivalente a uma rotura do Pacto de Moncloa. O grande impulsionador do processo que desembocou nessa provocação foi precisamente o Partido Popular. Essa rotura agrava muito a dificuldade de invocar a ilegitimidade democrática do referendo que os catalães querem fazer. Eles têm sido longamente provocados pelo governo de Madrid e especialmente pelo Partido Popular.