sexta-feira, 31 de agosto de 2012

A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DOS PANINHOS QUENTES


Os números do desemprego sobem. Isso significa sofrimento, aflição e frustração para mais portugueses.

Os amanuenses da economia explicam, garantindo com segurança  que estava tudo previsto.

Os partidos políticos do governo, os partidos políticos da oposição, os sindicatos, as associações patronais, dizem exactamente o que se esperaria que dissessem, depois de tantas vezes terem reagido a notícias idênticas.

Os partidos políticos da direita do alto do seu governo parecem zombies desorientados, prometendo como solução medidas iguais às que causaram este agravamento do desemprego. Os patrões começam a desconfiar da capacidade destes seus apaniguados  para os fazerem sair por cima na actual crise.

Os partidos políticos da esquerda, acantonados na sua oposição, tal como os sindicatos, todos seguindo o impulso que lhes dita o respectivo ADN político, insistem no facto de que eles bem disseram que era preciso crescimento, que austeridade sobre austeridade teria que dar nisto, que a austeridade não tem sido repartida com justiça. Enfim, pequenas coisas muito razoáveis, mas evidentemente carecidas de nervo alternativo.

Por isso , não resisto a perguntar a mim mesmo: se o Governo se comportasse como as oposições preconizam   os portugueses, que realmente sofrem a crise enquanto seres humanos,  sairiam só por isso do sufoco em que estão ?

Se por obra de um milagre, que nem os mais crentes acham provável, o crescimento económico surgisse e se mantivesse, por dois ou três anos, num patamar relevante, o desemprego desapareceria e o pais ficaria, só por isso, diferente para melhor, tornando-se mais justo e menos vulnerável ao risco da rapacidade dos senhores da finança e da imbecilidade política dos zombies  do neoliberalismo? Não me parece.

Por isso, seria bom que para além das declarações previsíveis, presas ao imediato, se começasse a dizer também que sem empreendermos a urgente viagem de superação do capitalismo nada de consistente se conseguirá melhorar duravelmente. Sem uma radical contenção da rapacidade do capital financeiro que coloque a banca no seu devido lugar, pondo fora do alcance da sua apetência  predatória o nosso destino, tudo o que for feito será com um castelo de cartas.

Responder ao imediato sem dúvida, com competência e decisão. Mas, desde logo, é preciso perceber que o imediato, podendo ser o ataque a problemas urgentes da banca, em nenhuma circunstância pode esquecer os problemas pessoais dos seres humanos. E, por outro lado, passar também a integrar na equação que se tem que  resolver a impossibilidade de podermos deixar que decida sobra a nossa vida um sistema que já perdeu o norte. Um sistema em que uma frase tacanha  de um ministro alemão pode deixar na penúria milhares de trabalhadores de outros países europeus, em que um burocrata do FMI pode fechar fábricas ou destruir sistemas de saúde, em que um tecnocrata de Bruxelas pode deixar os reformados de alguns países à míngua e as crianças sem ensino pré-escolar, em que um director imprudente e reaccionário de uma agência de notação, após um fim de semana menos bem passado, pode pôr em causa a nossa segurança quotidiana. 

As alavancas da economia portuguesa e europeia têm de passar para as mãos de quem tenha representatividade democrática e possa ser chamado a prestar contas pelos seus erros e desmandos. O desemprego, flagelo humano, social e económico, não pode ser apenas combatido com medidas homeopáticas que realmente, na melhor das hipóteses, o influenciam muito marginalmente. Tem, realmente, que se ir mais longe, caminhando-se com realismo, mas com decisão, para a repartição do trabalho e dos rendimentos , porque só dessa maneira se poderá  não desistir da democracia, da liberdade e da justiça.

sábado, 25 de agosto de 2012

ANTONIO TABUCCHI - uma homenagem

O mais recente número da revista italiana MicroMega, grande expoente de uma cultura crítica de esquerda, é uma homenagem a Antonio Tabucchi.
A maior parte do número é ocupada por um apreciável conjunto de textos da sua autoria, quase todos já antes publicados na própria revista; textos críticos de intervenção cívica, cultural e política.Inclui também uma conversa entre Tabucchi e  um magistrado italiano, ocorrida em 2001, a propósito da grave crise da justiça italiana então em pleno auge e suas implicações políticas . Seguem-se , por fim, vários textos de homenagem de:  Paolo Flores D'Arcais (director  da MicroMega); Norman Manea (escritor romeno que vive nos USA); Marco Travaglio ( jornalista italiano) e Enrique Villa-Matas ( escritor espanhol com grande projecção internacional).
Sobre Antonio Tabucchi ( Pisa, 24 de setembro de 1943 - Lisboa, 24 de março de 2012), diz-se na revista: "Foi um dos maiores escritores italianos contemporâneos, intelectual de largo fôlego, sempre empenhado. também nas grandes batalhas cívicas (...). Amante de Portugal, onde vivia, foi o maior conhecedor, crítico e tradutor da obra do escritor Fernando Fessoa".Sobre ele escreveu Paolo Flores D'Arcais:"Antonio era um homem coerente com os valores que proclamava".

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

ASSALTO À RTP - o capataz de luxo e o licenciado rápido


1. O assessor Borges e o seu  auxiliar, com título de ministro, Relvas, já anunciaram a privatização da RTP. Estes dois qualificados personagens, conhecidos pelo seu desinteressado empenho pela causa pública, apenas vieram ilustrar com uma expressividade maior o enorme descaramento que se apossou do PSD, como propulsor do actual governo. A troika é cada vez mais um álibi distante, para tentar anestesiar a revolta contra algumas das medidas governamentais. Em muitos casos, tende até a converter-se  numa simples baliza que os novos cavaleiros andantes do neoliberalismo ultrapassam fogosa e irresponsavelmente.

Mas neste ataque à RTP pública não é apenas o perfume da negociata que se faz sentir, associado à pilhagem desregrada do património público, ainda que  embrulhada na generosa intenção de poupar. Intenção essa que, aliás, não nos poupa  de continuarmos a pagar uma taxa que envolve a televisão, mas que agora passa a ser canalizada para os futuros senhores da RTP, como se fossem candidatos a um especial rendimento de inserção social. Neste ataque á RTP pública é também um profundo golpe na democracia que se está a preparar, através do qual  se garante, a cem por cento, o domínio da televisão em Portugal por capitalistas privados ou por Estados estrangeiros através das sua empresas públicas.O patriotismo da nossa direita governamental termina mesmo nos bolsos dos seus  patrões.

É pois um salto qualitativo no nível de malfeitorias deste governo que um seu assessor, que se suspeita ser uma espécie de ministro na sombra, despudoradamente anunciou publicamente  com intolerável pesporrência. Relvas, o sacristão, estranhamente veio resmungar publicamente a sua concordância com Borges, o sacerdote. Estranha igreja. Realmente, estamos perante uma dupla explosiva entre o inefável  Borges, antigo capataz desse monumento ético da banca mundial que é o Banco Goldman Sachs, e o estudioso Relvas, esse licenciado relâmpago cuja sede de conhecimento o mundo se habituou a venerar.

2. Espera-se pois que o PS diga com clareza  qual é a sua posição perante este assalto a um dos  pressupostos da decência democrática em Portugal,  que, ainda por cima, parece vir embrulhado na insalubre sombra de possíveis negociatas lesivas do interesse público.

Desde logo, não é possível que o Governo peça  ao PS compreensão para com as medidas suscitadas pelo memorando de entendimento, ao mesmo tempo que agrava o significado negativo delas, tomando outras profundamente agressivas das sua posições. Na verdade, ao provocar desta maneira o PS, Governo deixa de poder esperar qualquer complacência para qualquer aspecto da sua política, ao qual o PS  frontalmente se oponha. De facto, nenhuma medida vale politicamente apenas por si própria; outras, que eventualmente a acompanhem, podem mudar-lhe o sentido. Por isso, se já é  discutível se, perante as ultrapassagens da troika perpetradas pelo actual Governo,ainda resta alguma obrigação política ao PS de ser complacente para com ele, perante agressões como esta  não parece haver dúvidas . Isto é um corte, uma declaração de guerra implícita ao povo de esquerda feita pelo governo. Se o PS se agachasse perante isto, podia correr o risco de  que as vítimas desta governação, que são muitas, o passassem a ver  como uma espécie de capacho do actual  Governo. Por tudo isto, talvez fosse politicamente pedagógico e acertado que, com serenidade e firmeza, o PS fizesse publicamente um aviso solene. O aviso de que,  logo que volte a ser Governo, reverterá a privatização da RTP, colocando tudo como estava antes do golpe que este Governo está a preparar. Os custos dessa reversão só podem, por tudo o que se disse, ser imputados  moral e politicamente ao actual Governo.

Reforçando o que escrevi, pergunto: se a direita se sente sempre legitimada para desfazer , quando chega ao Governo,  algumas das coisas boas que os governos do PS fizeram, por que razão estará o PS impedido de remediar os dislates por ela cometidos quando lhe suceda  no Governo?

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

CONTRA A LETARGIA ESTRATÉGICA



1. Se as sondagens tornadas públicas espelharem com uma fidelidade razoável as disponibilidades de voto do eleitorado português, elas são uma razão forte para que os partidos de esquerda em Portugal se preocupem com o que parecem reflectir.

O governo de direita impulsionado pelo neoliberalismo estrutural e primário da “troika” caiu numa deriva fundamentalista, cujo absurdo só tem par no desprezo total pelos dados que a realidade desesperadamente lhe transmite, dia após dia. E apesar disso os eleitores parecem estar a dar um generoso benefício da dúvida ao manhoso CDS e a castigarem ligeira, embora crescentemente, o PSD. As últimas sondagens apontam para uma possível perda de maioria por parte da direita, mas não a mostram inapelavelmente condenada a uma derrota.

Na oposição, o PCP e o BE em conjunto, embora cada um deles com ligeiras oscilações, continuam a rondar os 15 %, o que, tornando essa área politicamente incontornável, não lhe abre consistentemente a hipótese de uma mudança qualitativa de papel. O PS, tendo passado a barreira simbólica dos 30%, não conseguiu ainda alcançar o PSD, embora se tenha vindo a aproximar dele, estando agora a pouco mais de 1%. A este ritmo muito dificilmente o PS chegará ao patamar de uma maioria absoluta e mantém-se viva a possibilidade de, perante circunstâncias conjunturais novas, se reeditar uma maioria de direita. A hipótese de uma concertação do PS com as outras esquerdas permanece envolvida numa forte neblina de improbabilidade.

Tudo isto significa que o profundo descontentamento popular contra este governo e que o enorme desprestígio que o atinge não conduziram, até agora, a uma atitude de confiança e de esperança no que representam os actuais partidos de esquerda, quer um por um, quer como um todo politicamente fragmentado. Sobre eles, em termos genéricos, talvez se possa dizer que, embora algo agitados no plano táctico, parecem mergulhados numa profunda letargia estratégica. E, no entanto, uma reflexão simples sobre o modo como, em Portugal, nos últimos anos, evoluiu a relação de forças, no plano político institucional, mostra com clareza como é imprudente para todas as esquerdas , mas principalmente para o PS como partido potencialmente hegemónico em qualquer solução de alternativa à direita, manterem-se acantonadas nas suas rotinas.

Esta combinação explosiva, entre a desconfiança de uma parte do povo de esquerda nos seus actuais partidos políticos e a paralisia estratégica que parece tê-los atingido, é um terreno fértil para aventuras e equívocos. Aventuras que podem  traduzir-se na criação de mais um partido de esquerda; equívocos aventureiros que podem resultar da tentativa  de se atrair uma parte do povo de esquerda a iniciativas populistas, cuja marca de direita facilmente se percebe, se compararmos o que nos dizem os seus mais visíveis oráculos e o que nos diziam os chefes do populismo de direita no pós-guerra (por exemplo, na Itália com o “qualunquismo”, na França com o “poujadismo”). É claro, que como qualquer iniciativa direitista encapotada, esses projectos ambíguos proclamam sempre bem alto que já não há esquerda nem direita; ou que, pelo menos eles, nem são uma coisa nem outra. Se algum se concretizar, principalmente dentro dos que correspondem a este último tipo, não se estará a abrir a porta a um tempo mais auspicioso, mas a tornar ainda mais difícil alcançá-lo.

No entanto, o facto de ser negativo que alguma iniciativa deste tipo se materialize não quer dizer que ela não possa consumar-se. Não tenho uma receita para minorar o risco de que isso aconteça, mas estou certo de que ele aumentará com o imobilismo estratégico dos partidos de esquerda. Também me parece indispensável distinguir com nitidez as inquietações que movem muitos dos cidadãos que se envolvem nesse tipo de dinâmicas e o mérito geral dessas iniciativas, em si próprias. Na verdade, apesar das críticas que acabo de formular, creio que muitas das motivações, que animam muitos dos envolvidos nesses movimentos, são legítimas e reflectem problemas e deficiências reais, quer do tipo de sociedade em que vivemos, quer do funcionamento das instituições. Uma vez mais, a letargia estratégica dos partidos existentes dificulta estruturalmente as respostas que devem ser dadas a este tipo de problemas, as quais passam necessariamente por uma atenção profunda aos sinais que, por si próprias, essas iniciativas dão.

2. Neste contexto, a abordagem das próximas eleições autárquicas pelo PS tem que mudar radicalmente, sob pena de as podermos perder numericamente de maneira clara, ou de as podermos perder politicamente, mesmo que as ganhemos numericamente. A última coisa que devemos fazer é renunciar a uma imagem política forte de um projecto autárquico para o conjunto do país, que em si próprio seja um primeiro contributo para um salto em frente no desenvolvimento do país. Um projecto de verdadeira mudança social que imprima a nossa identidade socialista  ao conjunto das nossas candidaturas, mas que seja suficientemente flexível para poder incorporar com naturalidade, num primeiro plano, as especificidades inerentes ao tipo de cada território abrangido, num segundo plano, a identidade própria de cada autarquia.

E se é decisiva a afirmação substancial de um projecto próprio, não pode também ser descurada a maneira de envolver nele o eleitorado. Simplificando muito: quando cresce o prestígio da ideia dos orçamentos participativos como eixos da política autárquica, aposte-se agora na ideia de uma campanha eleitoral participativa, onde se envolvam realmente os cidadãos, antecipando-se assim a vontade de os envolver depois, no dia a dia da gestão autárquica.

Na verdade, se o PS fizer da campanha eleitoral para as autarquias uma afirmação de renovação da sua maneira de fazer política e do seu modo de exprimir  a sua natureza de partido político de uma esquerda popular, tem garantida a vitória política nas eleições e vê aumentarem  as hipóteses de as vencer também numericamente. E se as vencer politicamente, estará a beneficiar muito a sua participação nos processos eleitorais subsequentes; se as vencer também numericamente estará a reforçar a importância da vitória política.

Em contrapartida, à luz do que acabo de dizer, pode verificar-se como tem sido rotineira e pobre a  simples esgrima de nomes, a implícita subordinação ao que nos possam dizer as sondagens, o arremesso cruzado de acusações que reflecte mais o confronto entre grupos quase-tribais do que e qualquer diferença ideológica. Também se pode compreender melhor como as primárias abertas na escolha dos nossos candidatos potenciariam o significado de um projecto global e de uma campanha participativa, na qual aliás se poderiam considerar incluídas. E também se percebe como as pseudo-primárias que foram consentidas e o acotovelar de nomes como processo de escolha se inscrevem nesse caminho político estreito, que o PS teima percorrer numa estranha pulsão politicamente suicidária.

Em conclusão, o PS pode aproveitar as eleições autárquicas para as abordar através de um novo tipo de campanha,  que por si própria seria não só uma importante movimentação estratégica, mas também um instrumento adequado para vencer essas eleições e para fazer dessa vitória um impulso decisivo para eleições futuras e um reforço decisivo do seu peso político e social. Também pode deixar correr o marfim da previsibilidade, entregando-se nos braços da sorte à espera de ser premiado. Pode, mas o meu pessimismo não é suficiente para admitir que isso aconteça.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

A TRAGÉDIA DO YPSILON


O grande dirigente Xis da organização Ypsilon resolveu deixar de o ser. Uma vez que a organização Ypsilon não é uma monarquia, ele não passou o poder  ao filho para lhe suceder. Mas indicou alguém. E inesperadamente indicou Zê e ßeta, e não apenas Zê ou apenas  ßeta. Como Zê é homem e ßeta é mulher pôs um casal à frente da organização, dizendo que isso se inscrevia no modo de agir próprio do século XXI.Não explicou porquê, mas se o disse lá terá as suas razões. 

Houve quem maldosamente insinuasse que ele apenas estava a procurar sugerir que para o substituírem na liderança da organização não era suficiente um outro mortal. Eram necessários, pelo menos dois. Se essa alegada  maldade, for afinal a verdade, isso significa que em tal organização não abundam potenciais dirigentes. E isso não é prestigiante. Se essa possível maldade o for realmente, da proposta de Xis não resultará nada de positivo para as imagens quer de Zê quer de ßeta, por que ficaria a saber-se que para Xis cada um deles vale apenas metade do que ele vale.

Embora sem o  mesmo eco, houve também quem visse nesta indicação de Xis uma tentativa de evitar uma guerra civil entre os vermelhos escuros e os vermelhos sombrios, duas tonalidades que arregimentam muitos dentro de Ypsilon. Talvez se trate de pura imaginação.

Mas entre os integrantes da organização Ypsilon começa a crescer uma ideia que pode ter algum sentido. Quem tem que decidir quem vai ser o futuro dirigente de Ypsilon (dizem esses irrequietos militantes), devem ser os seus membros, por sua livre iniciativa e por livre escolha, sendo completamente absurdo que Xis indique Zê, ßeta, ou seja lá quem for.Esses  ousados imaginativos teimam assim inesperadamente  em querer  escolher quem os vai liderar, sem testamentos políticos, sem bênçãos, nem ungimentos.

Não deixam de ser credores da minha simpatia. Realmente, aqui para nós que ninguém nos ouve, votações condicionadas, votações entre ungidos e os outros , votações entre os escolhidos e os outros, só muito vagamente têm algo a ver com democracia. 

E já agora imaginem que Ypsilon , em vez de ser o Bloco de Esquerda era o Partido Socialista?Quantos anátemas, quantas excomunhões...

domingo, 19 de agosto de 2012

A CONSPIRATA NEOLIBERAL

No site da prestigiada revista semanal brasileira de grande circulação, CartaCapital, Claudio Bernabucci, um dos seus colunistas, publicou um interessante texto que merece ser lido. O autor é conselheiro especial da United Nations Office for Project Services – UNOPS. O texto tem como sugestivo título "A conspirata neoliberal". Ei-lo:

"Em toda parte estamos assistindo a uma epidemia de comportamentos criminosos e corruptos nos vértices do capitalismo. Os escândalos bancários não representam exceções nem erros, são fruto de fraudes sistêmicas, de uma avidez e arrogância sempre mais difundidas.”
A autor dessa declaração, poucas semanas atrás, não é um líder bolivariano ou um jovem contestador do movimento Occupy Wall Street. Trata-se do renomado professor americano Jeffrey Sachs, economista que outrora flertou com o neoliberalismo, consultor do BM, FMI e ONU, entre outros atributos. Por sorte, Sachs não está só na batalha de ideias que ocorre, finalmente, contra o modelo econômico dominante: numerosas vozes do mundo acadêmico e da intelligentzia internacional, protestos dos jovens, alguns governos do Hemisfério Sul e, mais recentemente, parte da Europa, fazem parte da minoritária tropa. Já é alguma coisa, mas é dramaticamente pouco para domar a fera do capitalismo selvagem.
Resulta particularmente perigoso é que, paralelamente, foi desencadeado um ataque sem precedentes à evolução democrática do chamado Ocidente. Nestas cruciais semanas de agosto, acho importante conferir uma leitura política, precisa e sem nuances, aos acontecimentos econômico-financeiros europeus, de sorte a aumentar a atenção sobre os riscos deste momento, inclusive nas nossas latitudes.
O epicentro da guerra em curso – que não utiliza armas de destruição física, mas visa igualmente a férrea submissão de homens a outros homens – encontra-se hoje na Europa, com ataques especulativos furiosos contra os países mais frágeis do Euro. O objetivo estratégico, evidentemente, não é a falência deste ou daquele país, mas o fracasso ruinoso da experiência da moeda única e do processo de integração europeia.
Uma vez superado o momento agudo da crise bancária em 2008, graças ao socorro providencial dos governos centrais, o sistema financeiro neoliberal conseguiu evitar qualquer satisfação à pressão da Administração Obama para o estabelecimento de novas regras e controles. Diante da aliança lobista entre Wall Street, a City londrina, Fundos Hedge e bancos de investimento americanos que administram, entre outros, os imensos tesouros dos paraísos fiscais, até mesmo o mais poderoso governo do planeta teve de baixar a crista. Ainda assim, foi dado o sinal de que a política quer enfrentar o problema. Juntamente com um novo clima geral, os donos dos mercados (vale lembrar: poucas dezenas de grupos de poder multinacional) perceberam recentemente outros sinais “subversivos”, como a vitória socialista na França e a onda de críticas teórico-ideológicas, inimaginável na fase precedente do pensamento único.
Qual ocasião melhor que a derrubada do Euro, para reverter a própria momentânea fraqueza em um sucesso histórico? A inadequada arquitetura do sistema político e financeiro da Europa tem se manifestado de forma patente, com lutas e contradições internas que podem provocar paralisia fatal. Resulta claro que a sobrevivência do Euro se liga de forma indissolúvel à aceleração da união política federal, fortalecimento que representaria ameaça gravíssima para os senhores das finanças. Por outro lado, se a zona da moeda europeia precipitar-se em uma depressão ainda mais aguda – comprometendo a fraca recuperação americana –os donos dos mercados alcançariam o primeiro objetivo de curto prazo: a derrota de Obama pelo reacionário integralista Romney, aliado político por definição. Uma vez eliminado o inimigo principal, seria mais fácil o ataque final à moeda antagônica e, com essa, a definitiva humilhação do quanto resta do modelo social europeu.
Enormes lucros especulativos, dizem os especialistas, escondem-se por trás da constante conspiração de Wall Street & cia. contra o Euro. A possível explosão da União Europeia e a volta às antigas moedas nacionais, ademais, abriria pradarias a novas incursões bárbaras, com compras de bens, territórios e almas do Velho Continente a preços de saldo.
Fantapolítica, como dizem os italianos? A realidade dos fatos nos diz que a bandidagem do capitalismo contemporâneo supera as piores fantasias.
A integração europeia, com todos os limites, representa um exemplo decisivo para similares processos como o Mercosul, uma experiência democrática e um modelo de pacificação acompanhados por crescimento econômico e políticas sociais sem paralelo. A desgraçada hipótese de sua derrota pode representar uma involução da civilização ocidental com consequências inimagináveis no mundo inteiro. A manutenção e possível evolução virtuosa de tal experiência enfrenta inimigos mortais e, hoje, necessita da aliança vitoriosa entre progressistas e federalistas europeus. Seria importante que os aliados destes, se existem, se manifestassem já."

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O PRESENTE COMO SOMBRA, O FUTURO COMO ESPERANÇA


1. Houve tempo em que uma posição anti-capitalista explícita era a marca de uma radicalidade de objectivos, quase sempre entrelaçada num extremismo de processos. Isto é, a autenticidade do anti-capitalismo media-se pela decisão de derrubar pela força a ordem vigente, em nome de um programa simples marcado por uma alternatividade clara, mas difusa. O anti-capitalismo também não estava ausente entre os que, apostando nas eleições como alavanca de mudança, não deixavam de inscrever nos seus objectivos a superação do capitalismo através de uma cadeia de políticas públicas que em muitos aspectos não se distanciavam muito do programa dos que seguiam a via anterior. Apenas queriam agir num quadro democrático.

Muitas destas medidas eram reflexo de uma ambição social igualitária e de uma identificação com as justas aspirações dos que viviam dos frutos do seu trabalho ( e não do fruto dos seus investimentos em capital ou das suas rendas).  Para concorrerem eleitoralmente com eles, os partidos da direita, para melhor protegerem o sistema capitalista e através deles os interesses de todos os que eram beneficiários da desigualdade reinante, foram aprendendo a inscrever na sua agenda algumas medidas próximas das apresentadas pela esquerda, para evitarem derrotas eleitorais sucessivas e excessivas.

O nacionalismo emancipa tório  anti-colonial subsequente à Segunda Guerra Mundial, exprimiu-se através de um novo tipo de protagonistas que praticavam a violência como instrumento principal de libertação , embora nem sempre assumissem um anti-capitalismo radical..

Antes do desmoronamento soviético, a guerra-fria tendeu a reduzir a amplitude das mudanças em cada um dos lados, deixando o imprevisto para uma parte do mundo, aberta á expansão de cada um dos blocos. A transgressão do pacto tácito entre os dois lados não desapareceu mas era rara. A sombra de uma possível guerra nuclear continha os ímpetos, ainda que evidentemente não apagasse por completo os conflitos estruturais existentes. Cada lado tinha os seus centros imperdíveis, os seus vassalos mais distantes e ambos disputavam um vasto terreno de caça a ambos consentida.

 2. Esse mundo bipolar acabou com o desmoronamento soviético e o esmorecimento da guerra fria. O capitalismo pareceu triunfante, apesar da sobrevivência da excepção chinesa. Uma grande excepção que ainda hoje verdadeiramente não se sabe o que significa geoestrategicamente num plano prospectivo.

Mas passadas algumas décadas, mesmo desembaraçado da competição com o colectivismo de estado soviético, o capitalismo não funciona como um precioso relógio capaz de fazer a felicidade dos povos por intermédio da prosperidade dos ricos. Pelo contrário, tornou-se num predador compulsivo, tendo-se conseguido libertar da tutela política dos Estados , objectivamente condicionados, em maior ou menor medida, pelo exercício democrático da vontade dos povos. Vagueia agora como uma cão sem dono, produzindo um conjunto cada vez mais pequeno de ricos cada vez mais ricos, à custa do exacerbar da miséria de multidões de seres humanos, de um relativo  esvaziamento das classes médias e da desqualificação acelerada do trabalho, reduzido à desumana condição de mercadoria. Desgovernado, parece imune à interferência dos poderes democráticos, contaminado por uma sofreguidão do capital financeiro que se tornou num jogo de roleta russa praticado por uma incontrolável pistola apontada á cabeça dos povos.

Por isso, não é realista não ser radicalmente anti-capitalista. O capitalismo é um cancro que corrói a humanidade, não é sensato combatê-lo apenas com chás de cidreira. E isso acontece á escala global e acontece dentro de cada país.

3. Como em todos os grandes combates históricos, não é possível conseguirem-se vitórias sem inteligência, sem persistência, sem sacrifícios e sem uma coragem persistente e incansável, mas não se trata de preparar um golpe de força para tomar o poder num assalto feliz a um palácio de inverno. Não se trata de tomar bruscamente as rédeas  do poder em Lisboa para exercer depois uma acção política  forte e transformadora. Trata-se de pôr toda a sociedade em movimento, especialmente os membros da sociedade que pagam com o cinzento desesperado das suas vidas o preço da sobrevivência do capitalismo. Sem uma cultura popular emancipatória, sem um protagonismo social radicado num território susceptível de contribuir para identidade cívica dos seres humanos, sem uma economia humana suficientemente pós-capitalista para se deixar impregnar pelos valores do socialismo, sem uma clara instrumentalização do capital ( que, no fundo,  é trabalho morto) pelo trabalho vivo dos humanos, o poder do Estado que é indispensável nunca terá a força suficiente para pilotar uma superação do capitalismo sem catástrofe.

Por isso, todas as estratégias que na prática se esgotem no plano da política institucional, por mais brilhantes e certeiras que sejam, objectivamente, são insuficientes e estão condenadas ao fracasso. É preciso jogar em todos os tabuleiros, saber pôr a sociedade em movimento em convergência e através de políticas transformadoras.  Não estamos dispensados de fazer o melhor no plano da política institucional, mas o melhor, apenas num tabuleiro, não é suficiente.

Por isso, me parece mais grave a ausência de intervenção do PS nas áreas que acima referi do que a prática de erros conjunturais ou de tomada de posições pouco convincentes.

4. Sei que é difícil percorrer um caminho tão complexo. Mas não há outro. Para além, de que os explorados e os oprimidos, os excluídos e os desempregados, já perceberam intuitivamente que os vários discursos das várias oposições de esquerda, das oposições cuja identidade essencial é a não identificação com o capitalismo, são palavras que escorrem ao longo da realidade pouco contribuindo para a modificar. Realmente, e para dar apenas um exemplo, é cada dia mais claro que um desemprego como aquele que existe em Portugal, como aquele existe na União Europeia, não se combate satisfatoriamente com simples estratégias de crescimento económico. De facto, mesmo que através apenas delas, o reduzissem a metade do que é hoje isso já seria um  êxito retumbante. E a outra metade, os seres humanos desempregados  que nessa hipótese idílica ficariam de fora ? Esqueciam-se ? Os defensores de capitalismo, não o dizem, mas acham que sim. os socialistas que também assim pensarem só podem dizer-se socialistas por hipocrisia.De facto, a única maneira realista de combater o desemprego é a repartição dos trabalho e dos rendimentos (não a dos rendimentos do trabalho, mas a de todos os rendimentos ), o que é incompatível com o tipo de capitalismo hoje existente, mas pode ser um aspecto do caminho a percorrer como saída do capitalismo, como transição para um pós-capitalismo, democraticamente controlada. 

Pode discutir-se a via a seguir , o seu ritmo, as suas características , a distribuição dos sacrifícios que essa metamorfose implica, mas um partido de esquerda , um partido socialista, não pode continuar amarrado á ficção de que bastam alguns pontos de crescimento económico para se atingir uma sociedade digna. Não menosprezo a importância dessas medidas se forem tomadas com a noção de que são apenas um pequeno aliviar de tensões,  que nada valerá se não for completado por outro tipo de medidas verdadeiramente transformadores.

5. Se os militantes do PS, se os militantes de todas as esquerdas, souberem  concentrar-se nestas questões, se conseguirem criar dinâmicas colectivas em torno delas, podemos ter esperança. Se tudo continuar no remanso das rotinas e das previsibilidades, cada um fechado nas suas luzidias razões, incólume ás opiniões diferentes, aristocrata da sua verdade olhada como única, mestre de uma visão da história tecida de anjos e demónios, é realista recearmos o pior.

Enquanto os de baixo e as suas organizações se digladiarem pelas suas diferenças e prezarem mais o que julgam ser a sua verdade do que a saída desta sociedade através de uma metamorfose libertadora, os de cima podem dormir descansados. Mas se os de baixo e as suas organizações aprenderem a pôr, ao serviço de um amplo movimento comum de mudança total, as suas ideias e as sua emoções, mesmo com todos os seus labirintos, os de cima perderão o sono. Os de baixo e as suas organizações não têm que ser o eco de uma só voz, mas têm que ser o colorido de uma única orquestra que nem precisa de ter maestro. Basta que os violinos dêem às trompas o direito de o continuarem a ser; e que estas se habituem ao entrelaçamento com eles.  Sem esperar guias, sem aguardar sinais de partida, é da responsabilidade de todos os de baixo porem-se a caminho já, cada um à sua maneira, mas fazendo também  com que as suas organizações se ponham a caminho.

Se soubermos partir rumo ao futuro, mesmo de sítios diferentes, um dia nos encontraremos numa  corrente histórica. Se esperarmos, pessimistas e desesperados, a oportunidade única de um caminho bem nosso, estacionados num pessimismo certamente esclarecido e rigoroso, apenas poderemos esperar encontrarmo-nos no futuro  coma nossa  própria solidão, dia após dia , ano após ano.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

COIMBRA - na escolha de um candidato, abrir novos horizontes.


Quando se trata de optar entre vários atalhos, talvez seja realista dizer-se que há uns melhores do que outros.

Mas, em política, parece-me ilusória a ideia de se poder alcançar o que está à frente de um caminho evidente, através da falsa esperteza de um atalho.

Ora, para ir ao que hoje interessa, há um caminho cada vez mais óbvio para a escolha dos candidatos do PS em todas as eleições, que alguns de nós propõem há quase dez anos: eleições primárias abertas a todos os eleitores habituais do PS. Entretanto, tem crescido o número de partidos de esquerda de outros países que escolhem esse caminho. Há pelo menos um exemplo recente (França) em que a escolha deste método foi uma das causas que mais contribuiu para uma vitória, que muitos consideravam impossível.

A camada dirigente do PS já percebeu que não é possível fingir que essa questão não existe. Todavia, a maioria saída do mais recente Congresso Nacional caiu na ilusão de que podia enfrentar este problema através da hipocrisia de uma solução híbrida. Foi o que fez, mesmo correndo o risco de escolher uma via pior do que uma recusa assumida, que apontasse com clareza para a manutenção do que estava.

O caso de Coimbra é apenas mais uma ilustração das dificuldades que a opção seguida está a criar e vai criar, cada vez mais fortemente. O boato de que vão ser feitas sondagens para ajudar a escolher o candidato do PS à Câmara de Coimbra apenas mostra que a solução nacional adoptada não é uma mudança assumida e sincera, mas uma simples manobra de diversão para diminuir os custos políticos da recusa de primárias abertas. Na verdade, quem adira realmente à solução saída da Comissão Nacional do PS (aliás, tomada através de um processo de duvidosa legalidade) quanto a eleições autárquicas, não pode promover estas sondagens, uma vez que elas não se encaixam na lógica por que o PS optou. Mas, se isto assim é quanto a quaisquer sondagens, muito mais o é quanto a sondagens feitas apenas com base em alguns nomes. De facto, a escolha desses nomes representa uma distorção grosseira do processo eleitoral, tal como os actuais Estatutos do PS prevêem, pois desfavorece gravemente qualquer nome que não seja testado relativamente aos que o são. Ora, o caminho consagrado nos Estatutos, embora cave uma incompreensível diferença entre candidatos “oficiais” e candidatos “de oposição”, não atribui a ninguém poder e legitimidade para escolher quem deve e quem não deve ser submetido a qualquer tipo de sondagem.

Ainda estamos a tempo: alcancemos um acordo autêntico no seio da Concelhia de Coimbra, aceite quer pela Federação quer pelo Secretário-Geral, no sentido de fazermos primárias abertas para escolha do nosso candidato à Câmara. O acordo da Concelhia implicaria que ela se comprometia a designar o candidato escolhido nas primárias abertas e a organizar essas primárias( nomeadamente, elaborando um regulamento realista e honesto que tivesse em conta a situação concreta vivida  e fosse homologado quer pelo Presidente da Federação, quer pelo Secretário Geral ).

Seria um exemplo que poderia ser seguido noutros concelhos ou até noutros distritos. Uma luta leal em que cada pré-candidato se identificasse pelas propostas e pelas ideias, garantisse apoio ao vencedor no caso de perder e mostrasse na prática como se pode ser um entusiasta pelo que se defende, ao mesmo tempo que se respeita realmente quem concorre connosco. Uma luta assim seria uma preciosa pré-campanha que realmente uniria o PS, fixaria os eleitores habituais e ganharia espaço  entre os eleitores que poucas vezes ou nunca votam em nós. O candidato prestigiar-se-ia e o PS também.

Este é um caminho urgente que vale a pena ser seguido. Escolher um atalho, seja ele qual for, não significa com absoluta certeza uma derrota, mas seguramente que significa que será muito mais difícil vencer.