sexta-feira, 30 de setembro de 2011

O PESCOÇO CANSADO

Percorremos sofridamente os caminhos sombrios de uma comédia trágica. O governo da direita mergulha na vertigem das mais complexas equações, para apurar com rigor até que ponto é que deve apertar o pescoço do povo. A si próprio se considera corajoso por levar um pouco mais longe a violência de cada aperto. Homens graves, esguios, cinzentos e estrangeiros, analisam à lupa o grau de aperto e muito circunspectamente, com a mais fria das objectividades, concluem que o governo está a ter a coragem de ser excessivo. No entanto, à cautela, murmuram vagamente a necessidade de um pouco mais de aperto. É certo que do pescoço do povo (ou do povo, enquanto pescoço que outros apertam) nada sabem. Mas não se lhes pode exigir algo de diferente. Eles são apenas técnicos de aperto, sacerdotes frios do sacrifício dos fracos para que os fortes possam continuar tranquilamente a vampirizá-los. É claro, que sem qualquer má intenção, escravos que são da fria objectividade de alegados números, que invocam com a força com que os crentes invocam o espírito santo.

As oposições de esquerda mais radicais gritam, é certo. Mas como já gritavam antes do garrote actual, quiçá com mais energia, vão passando despercebidas. O PS discorda da intensidade do aperto, é forte na recusa da posição dos dedos, no repúdio pela brusquidão dos gestos. Murmura, quando se esperava que gritasse.

O próprio pescoço apertado, ou seja, o povo, agita-se aflito com a falta de ar, espantado com esta comédia trágica que o atinge, representada por uns quantos almofadinhas que chegaram de repente para lhes apertar o pescoço, envoltos na ingénua fleuma de quem joga ao berlinde com a vida dos outros; mas vai consentindo no garrote que o asfixia. Por enquanto...

Ninguém parece ainda suficientemente acordado para poder perguntar: “É absolutamente inevitável que o governo aperte o pescoço do povo, apenas prometendo que terá coragem de o apertar ainda mais se os oráculos loucos da finança internacional assim o ordenarem ?” Ou talvez ninguém tenha ainda perdido suficientemente a paciência para dizer:
“ Tirem imediatamente a mão do meu pescoço!” Dizer ; e pegar na mãozinha do poder, arrancando-a de vez deste pescoço.


Quando o fizer , os numerólogos engravatados da finança internacional esvaziar-se-ão como um balão furado, porque o povo está previsto na sua obscura ciência como vítima e não como sujeito. Essa é, aliás, uma das limitações dos teóricos do garrote que suportam o actual governo; e talvez uma das causas que os impede de compreender que o caminho que seguem os vai levar, forçosamente, ao mesmo tempo que ficcionam em vão uma saída para a crise, a praticarem uma perigosa sementeira de tempestades.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

ROBIN TSE CRATO

Dir-me-ão que é um detalhe o facto de o Ministro da Educação ter confiscado os prémios de 500 euros atribuídos aos melhores alunos do secundário como estímulo ao mérito. Mas é um detalhe sintomático, pelo menos em dois sentidos.

Primeiro, revela não ter havido pejo em se recusar o cumprimento de uma obrigação já assumida. Assumida por um Governo anterior, é certo, mas no exercício das suas competências. Incumprimento esse revelado tarde e a más horas, apesar de representar uma agressão clara às esferas jurídicas privadas de muitos cidadãos.

Segundo, o Ministro teve a lata de vir dizer que nem tinha realmente retirado prémios , já que apenas iria fazer com com que os premiados os tivessem que oferecer às respectivas escolas. Ou seja, o Ministro Crato dá prendas com dinheiro alheio, ao subsidiar iniciativas de algumas escolas, não com financiamentos saídos do orçamento do seu ministério , mas com o dinheiro dos prémios atribuídos aos alunos, que dele foram esbulhados pelo inacreditável descaramento do ministro.

Perante tal pilhagem, apenas é legítimo que se duvide se estamos afinal perante uma recaída de Crato na atmosfera rude da revolução cultural chinesa ou perante uma imitação ingénua e compulsiva do avesso de um "robin dos bosques".

terça-feira, 27 de setembro de 2011

A VERDADEIRA LIÇÃO DINAMARQUESA


As eleições legislativas realizadas na Dinamarca, no passado dia 15 de Setembro , foram notícia pela vitória da esquerda. Uma ligeira brisa agitou a imprensa europeia. Entre nós o PS, algo contidamente, mostrou-se satisfeito. Um ou outro comentador deixou escapar a hipótese de uma nova vaga de vitórias eleitorais da esquerda, que talvez tivesse tido aqui o seu início.

É importante ter-se uma informação crível e rigorosa sobre o panorama político europeu, sem menosprezo pelo que se passa no resto do mundo. Uma informação radicada num pensamento crítico que a consiga organizar, afastando-a, tanto quanto possível, da superficialidade e do imediatismo.

Olhemos pois para o conjunto dos resultados eleitorais, considerando os deputados eleitos por cada partido de cada uma das duas coligações .Pelos quadros acima publicados, pode verificar-se que o parlamento da Dinamarca tem 179 deputados, dos quais 4 representam as regiões autónomas (dois as Ilhas Faroe e dois a Gronelândia). Na Dinamarca propriamente dita, os partidos concorreram a estas eleições agrupados em dois blocos políticos: o Bloco Vermelho (esquerda) composto pelo Partido Social-Democrata, pelo Partido Popular Socialista, pela Esquerda Radical e pela Aliança Verde-Vermelha; o Bloco Azul (direita), composto pelo Partido Liberal, pelo Partido Popular Dinamarquês, pela Aliança Liberal e pelo Partido Popular Conservador. O Bloco Vermelho conquistou 89 deputados e o Bloco Azul, 86. Nas duas regiões autónomas, os partidos locais têm lógicas próprias, mas os respectivos quatro mandatos tendem a repartir-se entre os dois lados, em partes iguais.

Helle Thorning-Schmidt, actual líder dos sociais-democratas, o maior partido da coligação vencedora, ainda que não sendo o partido em absoluto mais votado, será a primeira mulher a encabeçar um governo dinamarquês. Mas este triunfo político da componente dinamarquesa do Partido Socialista Europeu deve ser analisado com prudência.

Comece-se por assinalar que um partido, que hegemonizara a política dinamarquesa durante uma boa parte do século XX, esteve dez anos seguidos na oposição. Dez anos, precedidos pela alegada "invenção" da célebre flexisegurança, que, aliás, há alguns anos fez uma aparição efémera na cena política portuguesa. Dez anos, foi o tempo de afastamento do poder que rendeu tão imaginosa receita, apesar do contexto dinamarquês lhe ser particularmente favorável. Imaginosa receita, aliás alardeada com estrondo no Congresso do PS, em Santarém, em 2006, pelo seu próprio promotor, Poul Nyrup Rasmussen, que tem continuado a liderar o Partido Socialista Europeu com o protagonismo e a relevância que se conhecem.

Mas, se nos limitarmos a mencionar a vitória da esquerda nas eleições legislativas dinamarquesas, deixamos na sombra alguns dos seus aspectos que não devem ser esquecidos. Na verdade, enquanto partido isoladamente considerado, os sociais-democratas tiveram o seu pior resultado dos últimos cem anos; os seus deputados são agora menos de metade do que os deputados de toda a coligação de esquerda; em nada beneficiaram com o facto de os socialistas de esquerda terem perdido sete deputados; a direita sofreu um desgaste agravado por ter tido que governar com o apoio de um partido de extrema-direita o Partido Popular Dinamarquês.

Ou seja, mesmo tendo a sua líder como primeira-ministra, o partido dinamarquês da IIª Internacional e do PSE, estagnou, em termos de apoio eleitoral, apesar de dez anos de oposição. Dos resultados das eleições dimanarquesas não pode fazer-se, por isso, uma análise simplesmente beata da vitória obtida, que deixe na sombra todos os seus perturbantes recortes. Perturbantes recortes que parecem não desmentir a ideia de que, também na Dinamarca, os vários membros do PSE necessitam de assumir um novo impulso, de passarem por uma metamorfose refundadora que os coloque à altura do desafio histórico que os interpela.

domingo, 25 de setembro de 2011

HOMENAGEM AO ZÉ NIZA

Homenagem ao Zé Niza


a música desceu a Rua dos Coutinhos
e ali ficou atrapalhada e triste
à espera do Zé Niza

vieram depois palavras
versos perdidos
poemas espantados
uma enorme sombra de saudade

o Zeca , o Adriano, foram vistos
com os braços caídos
não se sabe se por eles próprios
se pela chegada brusca
de um amigo

há um silêncio novo nesta Baco
onde um dia Vinicius navegou
ouvindo-se a guitarra do Niza

os anos sessenta regressaram
ainda em aberto, vagarosos
olhando o nevoeiro
que se agrava, quando
mais um se cansa e vai embora

é mais funda em Coimbra
esta saudade que desce no Mondego
repetida

não dizemos adeus não dispersamos
exilados no tempo não esquecemos

a nossa memória é o futuro





[ Rui Namorado]

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

UM SILÊNCIO SEPULCRAL

Os eleitores gregos deram ao PASOK o encargo de tirar a Grécia do buraco onde a tinha deixado cair a direita. O buraco era afinal um abismo. A lógica dominante no actual sistema económico acicatou as matilhas especulativas, transformando a vida política grega numa agonia. O governo socialista faz o que pode, dentro das condições draconianas que lhe impõem e sob o receituário económico, desorientado e insalubre, que o obrigam a cumprir. Outros têm sido atraídos para a mesma voragem, entre os quais nós, os portugueses. Os poderes de facto e a direita europeia parecem mais animados por uma inexplicável sanha vingadora do que por uma solidariedade inteligente. Os povos agitam-se , resmungam, protestam. Cresce a incerteza quanto ao futuro.



Entretanto, perante o assédio violento aos socialistas gregos, condenados a pagar uma factura alheia, um silêncio sepulcral tolhe o PSE ( Partido Socialista Europeu), uma reacção mole e desgarrada é o nível de solidariedade máximo onde parecem poder chegar os partidos europeus que integram o PSE. E isto significa que se o povo grego parece estar a ser condenado a um pesadelo económico-social que pode contagiar toda a Europa, o PSE, e com ele os socialistas europeus, parece estar a mergulhar lentamente num abismo político.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

MENSAGEIROS DA NOITE

Dia após dia, com a voz cheia dos grandes momentos, uns sujeitos de fato, em regra cinzento, se possível escuro, sábios, muitíssimo sábios, ajoujados de números e de maus presságios, transpirando uma ciência económica muito particular por todos seus os preciosos poros, ocupam os ecrãs televisivos.

Dizem ao pobre: a tua pobreza é ainda pequena.
Dizem ao esfomeado: a tua fome é ainda passível de progressão.
Dizem ao desempregado: auferiste do privilégio do trabalho tempo demais, já não há postos de trabalho para toda a vida, não podes ter o luxo de um subsídio de desemprego.

Dizem ao doente: a saúde é um luxo que não podemos pagar-te. Estás doente? Cabe-te pagar a cura.
Dizem ao jovem que iria aprender: a educação é um privilégio, porque é demasiado cara para ser um direito.
Dizem ao que transporta o peso de muitos anos: a protecção pública na reforma e na velhice é um fardo para o país. Porque te obstinas em viver? Que egoísmo é o teu que te faz querer continuar vivo; e até teres a desmedida ambição de envelhecer com alguma dignidade, com alguma felicidade?
Dizem ao trabalhador: que sofreguidão é a tua que te faz pretender receber um salário digno pelo trabalho que prestas?

Pobres, esfomeados, desempregados, doentes, jovens, velhos e trabalhadores, são aos olhos dos sábios os grandes esbanjadores deste país. Por isso, continuam com paciência a exigir-lhes que travem a sua voracidade consumista, o seu hedonismo desbragado, a enorme luxúria dos seus ócios. Nem sempre são escutados com a atenção merecida. Mas não desfalecem. A toda essa tropa, tão alegadamente despesista, vão lembrando o dever irrecusável de apertarem o cinto, de apertarem o cinto, um furo, dois furos, todos os furos do mundo.

Distribuídos os conselhos, os sábios vão renovando diagnósticos e fornecendo terapêuticas, sempre seguidas à letra, por eles próprios enquanto agentes de um poder de Estado que representam e apoiam. Mas, respeitada a terapêutica o doente vai piorando. Por isso me assalta uma perturbante dúvida : Se são eles os paladinos do caminho errado porque cai sobre nós o peso do castigo ? Castigam o povo por seguir os seus conselhos ?

É paradoxal, mas os sábios continuam a não hesitar. Metodicamente, insistem em terapêuticas que agravam a doença. Chamam a isso austeridade e castigam-nos pelos seus erros.