quinta-feira, 30 de junho de 2011

PANDEMOS

A vida política está intensa. Descobriu-se finalmente a causa de todas as nossas desgraças: a Grécia. Os outrora ferozes críticos de tudo o que mexia nas esferas governamentais são agora recipientes mansos de um discurso untuoso e redondo, de louvor aos poderes do momento. Cérebros abarrotados de números segregam um discurso de desgraça, como simples máquinas de calcular, que friamente somassem dificuldades a dificuldades. Solidários com tal drama, os que dele melhor se aproveitam jantam comovidamente no Tavares, aplaudindo a coragem dos que ousam tornar os pobres mais esquálidos, em nome de uma incansável cruzada contra essa dragão devastador, o Estado.


Como já haviam esgotado os decibéis do seu descontentamento, os terríveis continuam tão terríveis como antes, repetindo-se sem descanso até à exaustão. Mesmo sem serem verdadeiramente deixados em paz, os mais recentes vencidos procuram sem êxito tirar um modesto cochilo, ainda que breve. Entretanto, interagem entre si através de uma dose forte de previsibilidades programáticas e uma subtil esgrima, entre os que se entregam à esperança num novo ciclo e os que confiam na força das ideias.


As solenidades que têm envolvido os novos ministros, temperadas pelo colorido dos secretários de estado, misturam-se nos ecrãs mais mediáticos com os preparativos do casamento do Príncipe de Mónaco. Cheguei a pensar que a loura explosiva que vai reinar no rochedo fora arregimentada para uma secretaria de estado. Mas estava enganado. Ela tentou fugir, mas não foi disso.Vai realmente ser princesa.

Para compreender melhor tudo isso, mantendo alguma boa disposição, recorro a um grande poeta já deasaparecido. Olho assim para um outro lado, procurando perceber como a realidade se escapa, por vezes, através das palavras, sem que estas percam a sua pureza mais íntima. E assim pedi a Jorge de Sena para me deixar transcrever um dos seus “Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena”, precisamente o primeiro, “Pandemos”:












PANDEMOS


Dentífona apriuna a veste iguana
de que se escalca auroma e tentavela.
Como superta e buritânea amela
se palquitonará transcêndia inana!

Que vúlcios defuratos, que inumana
sussúrica donstália penicela,
às trícotas relesta demiquela,
fissivirão boíneos, ó primana!

Dentívolos palpículos, baissai!
lingâmicos dolins, refucarai!
Por manivornas contumai a veste!

E, quando prolifarem as sangrárias,
lambidonai tutílicos anárias,
tão placitantos como o pedipeste.


[Jorge de Sena]

quarta-feira, 29 de junho de 2011

ARQUEOLOGIA DAS ELEIÇÕES PRIMÁRIAS - V

Este é o quinto e último documento político da série que aqui foi publicada, a propósito das eleições primárias para escolha dos candidatos do PS aos diversos tipos de eleições. É constituído por dois extractos da Moção Política de Orientação Nacional, MUDAR PARA MUDAR, que foi apresentada, em 2009, ao XVI CONGRESSO DO PARTIDO SOCIALISTA. Participei na elaboração dessa moção (que deu origem à corrente de opinião interna do PS, Esquerda Socialista) e a partir dela fui eleito para a Comissão Nacional e para a Comissão Política do PS. Já não participei na elaboração da moção que a ES apresentou ao Congresso Nacional do PS, não a tendo apoiado nem ao respectivo candidato. Por razões que foram divulgadas neste blog, em Abril passado desligaram-se dela todos os membros dessa corrente inscritos na Federação de Coimbra do PS. Nesta matéria, a moção apresentada este ano pela ES identifica-se no essencial com a anterior.




Aliás, tendo esta corrente de opinião declarado publicamente o seu apoio a António José Seguro, ou este candidato, ao contrário do que até agora aconteceu, torna explícito o seu apoio às eleições primárias, ou, tendo em conta o apoio que Assis expressamente lhes deu, a Esquerda Socialista ficará numa situação politicamente muito embaraçosa. De facto, pelo menos até Abril passado, a defesa das eleições primárias era a sua posição mais emblemática, tendo até lançado um abaixo assinado, visível na sua página, a favor delas. Como explicar pois que apoie agora o candidato que não as defende contra um outro candidato que já deu centralidade às primárias na identificação da sua candidatura? Mas passemos ao texto:

1. Reforçar o PS para prosseguir as reformas
(… … … …)
Com o esvaziamento da vida partidária, a confusão entre PS e Governo, a perda – ou mudança? – das referências ideológicas e sociais, e a inexistência de espaços de debate interno, o PS enfrenta um risco real de fraccionamento e, consequentemente, de afastamento prolongado do poder.
Para travar este deslizar para o vazio, há que transfor­mar o Partido Socialista num espaço aberto, numa escola de democracia, de igualdade de acesso e oportunidades, um espaço de reflexão, de militância cívica e social.
Os militantes não são meras peças para aplaudir e ajudar a ganhar eleições. Têm de ser actores fundamen­tais da génese e do devir partidário. E, tema prioritário, o PS não são só os militantes. São, também, os apoiantes e os eleitores cuja intervenção tem de ser integrada na vida partidária activa (concretizando, assim, as disposições esta­tutárias). É necessário e urgente aprofundar a democracia interna do PS, abrir o partido à sociedade e modernizar as suas estruturas, práticas e imagem, adoptando, entre outras, as seguintes medidas:

Eleições Primárias para a designação dos candida­tos do Partido aos actos eleitorais, sendo o seu uni­verso eleitoral constituído por militantes, apoiantes e eleitores declarados, previamente recenseados;
Instituição de regras e meios de transparência nas eleições internas, que assegurem condições de de­mocraticidade efectivas, com igualdade para todos os candidatos e pesadas sanções disciplinares para as irregularidades processuais, as pressões e expedien­tes ilegítimos;
Obrigatoriedade da declaração de interesses dos dirigentes partidários (idêntica à que é exigida aos titulares de órgãos de soberania e altos cargos polí­ticos) com registo à guarda e controlo da Comissão Nacional de Jurisdição;
Recurso intensivo às novas tecnologias , para afir­mação activa do PS no ciberespaço e na blogosfe­ra, propiciando a comunicação entre militantes e apoiantes através da disponibilização de contactos de email;
Criação de Espaços PS , de elevada qualidade es­tética, funcional e tecnológica, agrupando secções de residência nas grandes cidades, propiciadores do convívio e debate criativos e do relacionamento po­lítico entre militantes, apoiantes, eleitores e actores da sociedade civil.
O Partido Socialista tem de sintonizar-se com os temas e causas do nosso tempo e do futuro, antecipando-os na visão, no debate e na acção, colocando as grandes questões civilizacionais nos sistemas de poder e da decisão política.
(… … … …)
2. Eleições primárias, mobilização cívica e participação política

A designação dos candidatos a eleições para os cargos públicos é, muitas vezes, feita em circuito fechado, dentro de círculos restritos, sem a participação dos militan­tes e dos cidadãos. Esta é uma das princi­pais causas da descredibilização da política e dos políti­cos, do afastamento dos cidadãos e do enfraquecimento das candidaturas.
É comum, em diversos países, o recurso a eleições primárias para escolha dos candidatos às disputas eleito­rais. As eleições primárias servem para refundar a ligação dos partidos aos militantes e aos cidadãos.
As eleições primárias propiciam:
O debate de ideias e propostas de suporte às can­didaturas;
A escolha dos mais qualificados para o desempe­nho das funções políticas;
A participação e mobilização de militantes e sim­patizantes para as missões fundamentais da vida pública e partidária;
A melhoria da imagem junto da população pelo acréscimo do sentido de responsabilidade associa­do a esta prática.
Nas circunstâncias concretas da nossa sociedade, a escolha dos candidatos através de eleições primárias será uma inovação fundamental para o reforço da influ­ência do nosso partido e de confiança dos Portugueses no sistema político, um poderoso instrumento de liga­ção do PS à sociedade e aos seus eleitores naturais.
Assim, propomos ao Congresso que aprofunde este tema, tendo em vista o seguinte:
Instituição do sistema de eleições primárias para a escolha dos candidatos do PS às eleições Autár­quicas, Regionais, Legislativas, Europeias e Pre­sidenciais;
Participação nas primárias dos militantes e simpati­zantes abrangidos pelas estruturas correspondentes aos respectivos universos eleitorais;
Realização de um recenseamento prévio de sim­patizantes para o estabelecimento rigoroso dos colégios eleitorais;
Candidaturas que possam ser apresentadas: – Nos termos estatutários actuais; – Por subscritores que constem do colégio eleitoral respectivo, representando, pelo menos, 15% desse universo, dos quais 10% deverão ser militantes.

terça-feira, 28 de junho de 2011

ARQUEOLOGIA DAS ELEIÇÕES PRIMÁRIAS - IV

O Documento nº 4 desta série de textos destinados a darem corpo a uma arqueologia das eleições primárias, como método de escolha dos candidatos do PS aos diversos tipos de eleições, data de Abril de 2006, sendo um extracto da Moção de Orientação Política, apresentada ao Congresso da Federação de Coimbra do PS por Luís Marinho, como identidade da sua candidatura [«Um PS amigo, credível, decisivo e ganhador»].

Chamo a vossa atenção para o carácter premonitório deste documento. Se ele tivesse originado novas práticas, não teriam ocorrido alguns acontecimentos desagradáveis que depois de 2006 vieram perturbar a nossa Federação.

... ... ... ...

2. Três pontos de partida
Cientes de que vamos iniciar um longo processo de renovação, que necessariamente se terá que desdobrar em múltiplos aspectos, destacaremos três áreas que devem merecer uma atenção imediata.

2.1. Escolha por um colégio eleitoral alargado de todos os candidatos do PS nos diversos tipos de eleições.
Quem tiver observado os sinais que emergem em diversos países de vários continentes, poderá ver que há uma tendência crescente para não entregar exclusivamente à soberania dos aparelhos partidários a escolha dos candidatos dos partidos às eleições a que concorrem. Quem relembrar com atenção o que tem acontecido, no quadro do nosso partido nas eleições mais recentes, poderá verificar que há uma incomodidade crescente, por parte dos militantes e dos simpatizantes, perante o poder irrestrito de escolha dos candidatos, atribuído a alguns órgãos do partido, quando não, a algumas figuras que se arrogam esse direito. Essa incomodidade acaba por minar a legitimidade substancial das escolhas, o que já produziu resultados desastrosos, muito particularmente, nas últimas eleições autárquicas no nosso distrito. Onde, uma interpretação autocrática da avocação retirou às concelhias do partido as suas competências mais elementares.
Por tudo isso, mais cedo ou mais tarde, virão a ser instituídas novas formas de escolha no PS, senão mesmo eleições primárias generalizadas . Se for cedo, seremos pioneiros tranquilos num caminho que poderemos preparar com prudência, se for tarde, acossados por mais algum fracasso dramático ou empurrados por uma lei geral impulsionada por outros, teremos que fazer à pressa o mesmo caminho, sabe-se lá com que custos.
Por isso, defendemos que os candidatos do PS às eleições autárquicas, regionais e legislativas, devem ser escolhidos por um colégio eleitoral amplo que abranja todos os militantes e todos os simpatizantes, compreendidos nas estruturas que correspondam aos universos eleitorais que em cada um desses casos, estiverem em causa. Quanto às europeias e presidenciais deverão os congressos nacionais pôr na sua agenda modelos de escolha que ultrapassem as dificuldades que conhecemos, com alguma dor com o modelo actual.
Aceite este princípio defendemos que devem ser cuidadosamente elaboradas as regras práticas para a sua concretização, sob a égide de uma completa transparência democrática e de uma inequívoca igualdade de tratamento de todos os candidatos, com salvaguarda de um protagonismo adequado e isento dos órgãos do partido.
Quando formos escolhidos para liderar a Federação, promoveremos todas as diligências necessárias à instituição deste sistema nas escolhas dos candidatos do PS que emanem de estruturas abrangidas pela Federação. Procuraremos ainda contribuir para que o PS no seu todo enverede pelo mesmo caminho.

2.2. Legalidade, limpidez e equidade nas eleições para os órgãos internos.
O PS não pode ser o garante da democracia na sociedade portuguesa, orgulhando-se de assumir por completo o significado mais fundo do 25 de Abril, ao mesmo tempo que transige com a fraude e desigualdade nas eleições disputadas no seu interior. Reconhece-se o esforço que a Direcção Nacional vem fazendo para superar praticas inaceitáveis Mas há ainda um longo caminho a percorrer na reforma de vícios que mancham a democraticidade interna e a convivência.
Deste modo, é indispensável que se interrompa a deriva antidemocrática que tem inquinado com preocupante frequência algumas disputas internas ocorridas nesta federação, embora seja desejável que as regras que preconizamos se apliquem em todo o partido.
Assim, a título de exemplo, no quadro da criação de regras que garantam a plena igualdade de oportunidades a todos os candidatos, defendemos: que todas as sessões de esclarecimento, integradas nas campanhas eleitorais internas, tenham obrigatoriamente a presença de todos os candidatos ou de representantes seus; que todos os envios postais dirigidos aos militantes no âmbito das campanhas internas sejam da responsabilidade directa do partido, não sendo admitidos quaisquer outros e sendo garantido tratamento igual a todos os candidatos.
Não pode continuar a depender da fortuna do candidato, ou da sua arte de angariar fundos, a possibilidade de ser candidato dentro do PS, ou de fazer uma campanha em condições iguais às de outros concorrentes.
Por outro lado, é indispensável que os estatutos do Partido sejam revistos, de modo a tornarem expresso que a prática de fraudes eleitorais nas eleições internas do partido, implica necessariamente a mais grave sanção. É preciso finalmente dar autoridade às instâncias jurisdicionais do partido, entregando-lhes na prática, o contrôle da legalidade estatutária, não fazendo delas, como hoje, meros órgãos de recurso. A não ser assim, em breve a legalidade estatutária, cairá nas mãos dos tribunais comuns, o que sempre afecta a imagem e credibilidade do partido.

3. Transparência nas relações com o poder económico dos diversos tipos de dirigentes do PS
A Constituição da República Portuguesa consagra como um dos seus princípios estruturantes a independência do poder político em face do poder económico. Esse princípio não pode deter-se à porta do PS. Nos últimos anos têm-se sucedido notícias, indícios e factos que lançam dúvidas quanto à plena conformidade do comportamento de alguns responsáveis do PS com esse princípio.
Por isso nos parece indispensável que, pelo menos aos dirigentes nacionais do PS, bem como aos dirigentes distritais - Presidentes das Federações e das Comissões Políticas Concelhias, seja exigida uma declaração de interesses semelhante à que é exigida aos titulares de cargos políticos, que deveria ser depositada à guarda da Comissão de Jurisdição Nacional, podendo ser consultada por qualquer militante.
De facto, não é salutar permitir que cresça a suspeição de que por detrás de muitas discordâncias e concordâncias, intrapartidárias e interpartidárias, em vez de estar a salutar força das ideias paira a obscura sombra dos negócios.
No mesmo sentido e por tudo isso, procuraremos contribuir para que o partido à escala nacional aprove regras de comportamento dos seus dirigentes que impeçam que alguns dos mais destacados estejam ao serviço de grandes grupos económicos ou sejam protagonistas mais ou menos relevantes de grandes negócios, relativamente aos quais exista alguma interferência do Estado. Devem ter que optar: enquanto forem dirigentes do PS, não podem ser protagonistas de relevo em qualquer grande grupo económico, nem em qualquer grande negócio condicionável pela interferência dos poderes públicos. Este deverá ser o princípio, pressupondo os detalhes uma análise minuciosa que permita uma solução justa e equilibrada.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

ARQUEOLOGIA DAS ELEIÇÕES PRIMÁRIAS - III

Hoje, vou transcrever um pequeno extracto da moção de orientação política, datada de Agosto de 2004, apresentada ao XIV Congresso Nacional do PS, por 158 militantes, "Uma Esquerda com Raízes e com Futuro". Foi seu primeiro subscritor Porfírio Silva [Sintra], não tendo apoiado, ao que julgo, nenhum dos três candidatos a Secretário-Geral. Nesta inicicativa, não tive qualquer participação e, a fazer fé na não coincidência entre os seus subscritores e os fundadores do clube político "Margem Esquerda ", trata-se de um processo distinto daquele que espelhei nos dois textos anteriores. Por isso mesmo, contribui para tornar ainda mais evidente que há muito, em círculos de militantes entre si distintos, que a problemática das eleições primárias, para escolha dos candidatos do PS, vem amadurecendo dentro do partido. Eis pois o extracto da referida moção na parte em que incide sobre o tema em causa:


... ... ... ... ...
1.3. Uma vida partidária diferente
É necessário que o Partido Socialista aprofunde a democratização do seu funcionamento, abrindo-se à sociedade e modernizando as suas estruturas, práticas e imagem.
O PS tem de ser um partido de projecto, de alternativa, de combate e de camaradagem. Um espaço aberto, escola de democracia, um lugar de igualdade de acesso e de oportunidades, um espaço de reflexão e debate, de militância cívica e social. E, claro, uma alternativa de governo.
Para isso, é fundamental que o PS concretize o processo de renovação prometido no último Congresso Nacional, fazendo-o acompanhar por medidas de modernização interna, quer ao nível dos métodos quer ao nível das estruturas. A renovação tem de traduzir-se em medidas concretas e efectivas. Para tal, o PS tem de ter a coragem de adoptar a “mãe” de todas as reformas no seu modelo organizativo: as eleições primárias, para a designação dos candidatos do PS aos diferentes níveis de poder – autarquias, parlamentos nacional e europeu e regiões autónomas. As eleições primárias constituem uma inovação fundamental para o reforço da influência do nosso partido e para a confiança dos portugueses no sistema político, um instrumento de ligação do PS à sociedade civil, designadamente ao seu próprio eleitorado. Nesse sentido, para além do seu ficheiro de militantes, o PS deve constituir um ficheiro de simpatizantes e eleitores do partido que expressamente declarem a sua identificação com o Partido Socialista, e se manifestem interessados em participar em eleições para a escolha dos candidatos do PS aos diferentes órgãos de poder, alargando, assim, o universo de participação.


As eleições primárias permitem:


§ a escolha dos mais qualificados para o desempenho das funções políticas;
§ o debate de ideias e propostas de suporte às candidaturas;
§ a participação e mobilização de militantes e simpatizantes para as missões fundamentais da vida pública e partidária.


OUTRAS PROPOSTAS

- estabelecimento de uma quota de renovação, em cada congresso, ao nível dos órgãos nacionais do partido;

- limitação das inerências, não ultrapassando um quinto dos eleitos;

- evitar a governamentalização do partido quando este estiver no exercício do poder, separando bem as funções partidárias das funções do Estado e colocando no Secretariado Nacional e nos pelouros sectoriais ou temáticos responsáveis políticos que não sejam membros do governo;

- valorizar as correntes de opinião internas e os clubes de reflexão e debate; redefinir o papel, competências e âmbito das Federações (caminhar para federações, ou uniões de federações, de âmbito regional, em paralelo com o processo de regionalização do país);

- extinguir o Gabinete de Estudos – que funciona como mera extensão do aparelho – substituindo-o por uma estrutura de Estratégia;

- criar “Espaços PS”, de elevada qualidade estética e funcional com recurso às novas tecnologias e agrupando secções de residência, nas grandes cidades.

sábado, 25 de junho de 2011

ESCOLHI A FORÇA DAS IDEIAS

1. Neste processo de escolha do próximo Secretário-Geral do PS, apoio Francisco de Assis. Esta opção não resulta de uma decisão súbita. Implicou alguma ponderação e alguma reflexão. Uma das causas dessa minha primeira hesitação está no facto de, no meu espírito, a imagem que tinha de qualquer dos candidatos ser uma imagem positiva. É, aliás, por isso que tenho a convicção de que, seja quem for o vencedor, não teremos pela frente uma liderança desastrosa. E isso é uma circunstância feliz que não devemos menosprezar. Por isso, aquilo que vou escrever a seguir não deve ser divorciado do que acabo de dizer. Qualquer comentário crítico não deve ser tomado como menosprezo ou agressão, mas apenas como o exercício de uma crítica, nesta circunstância, indipensável.



2. O acerto da minha escolha tem vindo a ser confirmado pelo próprio evoluir da campanha. As razões estruturais da minha opção têm vindo a acentuar-se. António José Seguro move-se no tabuleiro clássico da política, um espaço unidimensional onde a linearidade é a regra. Francisco de Assis não menospreza o terreno clássico, mas valoriza a complexidade do real. Valorização que implica uma pluridimensionalidade que obriga a ter simultaneamente em conta vários planos da realidade socio-política. Pluridimensionalidade necessária para se poder compreender a causalidade múltipla, através da qual interagem entre si os vários planos da vida social.



Ora, os vários problemas que afligem hoje Portugal, a Europa e o mundo são complexos, e a sua natureza está permanentemente a ser ocultada por um simplismo redutor que pretende esconder essa sua verdadeira natureza, para tornar assim mais difícil a sua resolução; já que torna assim mais fácil a conservação da sociedade injusta em que vivemos. Paralelamente, os problemas que o PS enfrenta enquanto partido também são complexos, não só porque espelham a nossa sociedade, mas também por força de questões radicadas no PS em si próprio.



E é mais provável que quem pensa a realidade como conjunto complexo e pluridimensional tenha êxito nas iniciativas que lidere, do que quem olha para a política nos termos clássicos, como se ela fosse um tabuleiro único , no âmbito do qual tudo se joga. De facto, os primeiros agem sobre a realidade, os segundos sobre uma simplificação redutora da realidade que verdadeiramente não existe.



3. Os programas dos candidatos merecem ser discutidos, mas não consubstanciam por si sós o sentido de cada uma das candidaturas. Não o vou fazer agora, dado que não os li ainda com a atenção suficiente, para os poder comparar criticamente. Ambos traduzem certamente um esforço para chegarem a um alto patamar de qualidade, procurando aliciar os potenciais votantes, surpreendendo-os sem os chocar, dizendo-lhes tanto quanto possível o que eles querem ouvir, sem que deixem de ser estimulados por uma ou outra proposta potencialmente emblemática.



Mas, por vezes, o sentido mais fundo de uma proposta política revela-se com muito mais clareza através de uma leitura sintomática de pormenores aparentemente irrelevantes do que navegando-se apenas na superfície dos discursos. Seguro, por exemplo, fala-nos de um novo ciclo. Mas o que é um novo ciclo ? Um bordão jornalístico para abrir telejornais? Um carimbo simples mediaticamente eficaz na sugestão de que algo de radicalmente diferente aí vem?



Seja como for, não deixa de ser um conceito neutro, a sugestão de uma novidade difusa de contornos fluidos. E, principalmente, é um conceito que está a ser usado para designar a conjuntura saída das eleições em que o PS perdeu. Assim, pode perguntar-se : a sugestão de um novo ciclo para o PS assume-se como algo integrado no novo ciclo político geral, ou pretende-se como algo de absolutamente distinto apenas inserido na vida do partido? Ou será que, subrepticiamente, se pretende assim sugerir uma demarcação completa quanto ao que foi o PS até agora, dando a entender que se assume uma ruptura total com o período anterior, quanto ao qual se deixa pairar a ideia de que a responsabilidade por tudo o que possa ter havido nele de negativo foi de outros.



Não acredito que esta última hipótese seja a verdadeira. De facto, sei bem quantos e quem foram os que no último Congresso, de um ou de outro modo, se demarcaram expressamente da liderança então plebiscitada, ou não apoiando nenhum candidato, como foi o meu caso expressamente afirmado no Congresso, ou apoiando um dos candidatos vencidos. Ora, o certo é que nesse pequeno grupo, lealmente crítico, não estava nem Seguro, nem a esmagadora maioria dos seus apoiantes mais mediáticos ou mais conhecidos. E assim não faria sentido que tantos e tão responsáveis dirigentes socialistas tivessem aderido a uma tal maneira de encarar a ideia de um novo ciclo. Maneira essa que seria afinal uma severa e profunda autocrítica relativamente ao que pensavam há poucos meses atrás.



Em contrapartida, Assis valoriza a força das ideias, transmitindo à sua candidatura essa tonalidade aberta e qualificante de confiar nas ideias como princípio activo da transformação do PS e da sua qualificação, para vir de novo a desempenhar um papel de liderança institucional no nosso país. É uma mensagem, em si própria, incompatível com qualquer encasulamento do partido. Mas é também uma garantia estrutural contra qualquer privilégio das ideias de alguns socialistas que fossem tidas como as únicas aceitáveis, em detrimento de todas as outras que houvesse a tentação de considerar inaceitáveis. A força das ideias só pode ser a garantia de um debate livre, aberto e sistemático. Pensar o passado sem anátemas e pensar o futuro sem receios.



Aliás, aparentemente, há já uma virtuosa sinergia entre as moções das duas candidaturas, uma vez que, decerto tocada pela "força das ideias" da outra moção, a moção que aspira a ser um "novo ciclo" incorpora, como um dos seus objectivos mais mediáticos, a criação de um laboratório de ideias.



4. Também me parece muito relevante que Francisco de Assis tenha resolvido lançar na campanha o tema das eleições primárias, como método para serem escolhidos os candidatos do PS, a todas as eleições institucionalmente relevantes para o Estado democrático. Na verdade, chega assim à ribalta, julgo eu que irreversivelmente, uma questão que há anos vinha amadurecendo, lenta e discretamente, dentro do partido. Desde que em 2002 essa proposta foi pela primeira vez veiculada, explicita e claramente, dentro do PS, que em vários outros países foram adoptados caminhos desse tipo. Hoje, é óbvio que não estamos perante um fenómeno exclusivamente norte-americano, sendo assinalável a diversidade de modelos já experimentada.



Deve, no entanto, sublinhar-se que, para além do imperativo de se alargar a muitos outros campos a renovação do PS, é imprescindível fazer acompanhar a instituição das primárias de dois outros tipos de medidas. Em primeiro lugar, reformar profundamente o modo como decorrem os actos eleitorais dentro do PS, melhorando-se drasticamente a sua democraticidade e a sua transparência. Em segundo lugar, tomar medidas efectivas de prevenção contra qualquer risco de, em qualquer nível da hierarquia partidária, poder ser objectivamente possível qualquer promiscuidade entre a política e os negócios. Na verdade, sem uma radical mudança nestes dois planos, seria uma aventura enveredar pela via das primárias, que se podiam transformar numa verdadeira armadilha. Mas, pergunto eu: Há alguma razão para se ser complacente com quaisquer fraudes dentro das eleições internas no PS ? Há alguma razão para que não se combata sem tergiversações qualquer promiscuidade entre política e negócios dentro do PS ?



É pois bem claro que a questão das primárias não é um artefacto circunstancial para dar cor ao debate. É um ponto crucial da renovação do PS e um factor de enorme importância para o reforço da sua credibilidade. Não estamos assim perante uma razão menor para que se apoie Assis, estando eu até convencido que se Seguro não acabar por concordar sem tergiversações com a necessidade de se enveredar por esse caminho, poderá perder apoios que até agora têm sido atribuídos.



5. Uma breve observação final que transcende as duas candidaturas. Daquilo que até agora me foi dado observar no decurso da campanha, para além do habitual jogo de nomes que apoiam A e B, tenho visto emergir, entre muitos militantes de base que apoiam uma e outra candidatura, um espírito crítico, quanto ao modo como tem funcionado o partido nalguns aspectos, bem como uma vontade firme de mudança que são um bom sinal quanto ao futuro do PS.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

ARQUEOLOGIA DAS ELEIÇÕES PRIMÁRIAS-II

O tema das eleições primárias tem continuado vivo na campanha interna para a escolha da nova liderança do PS. Continuando a série ontem iniciada, vou hoje dar conta de um segundo documento, o texto que foi enviado pelo Clube Político Margem Esquerda, em Agosto de 2004, aos três candidatos à liderança do PS [João Soares, José Sócrates e Manuel Alegre]. Vou publicá-lo na íntegra, pois ele ilustra bem a medida em que a realização de eleições primárias, para escolher os candidatos do PS nas diversas eleições, não é separável de outras medidas necessárias a uma melhoria do seu funcionamento. O texto assumia-se como um "Desafio aos candidatos à liderança do Partido Socialista" e pretendia lutar "Por um PS com credibilidade democrática", para o que achava central "garantir a autonomia, melhorar a democracia". Eis o documento, que na prática foi ignorado pelas três candidaturas, com grave prejuízo para o PS e para a democracia em Portugal:

1. Vivemos dentro do PS um tempo de natural afirmação das nossas diferenças. E sendo a nossa heterogeneidade uma das raízes da nossa influência política e social, é importante reflecti-la com autenticidade e lealdade. Nunca esqueçamos que seria muito difícil o PS alcançar 44% do eleitorado, se não abrangesse todas as sensibilidades que o integram.
Também por isso, não podemos deixar reduzir o debate actual a um concurso entre fidelidades sem substância, que necessariamente se tornarão tanto mais estéreis e agressivas entre si, quanto menos se afirmarem pelo conteúdo das posições que as justificam.
Mas essa natural diferenciação, naturalmente indispensável, não exclui a possibilidade de, justamente agora, se encontrarem convergências, livremente assumidas por todos os candidatos à liderança, que podem contribuir para verdadeiramente cimentar uma unidade futura que os confrontos actuais não devem comprometer.
A própria marcha do tempo impõe a organizações como o PS um processo de transformação permanente. Mas, para além disso, na sua vida subsistem problemas que exigem soluções urgentes. Soluções indispensáveis para aquisição de uma nova capacidade de resposta aos problemas do mundo em que vivemos.
Por isso, o plenário nacional da “Margem Esquerda – clube de reflexão política”, constituído por militantes do PS, resolveu apresentar aos candidatos à liderança do nosso Partido uma proposta de convergência em torno da necessidade de enfrentar três grandes problemas de funcionamento do PS que têm de ser resolvidos, sob pena de corroerem gravemente a eficácia e a própria identidade do Partido.
São propostas que qualquer candidato pode aceitar, com naturalidade, sem qualquer entorse da coerência do que propõe ao Partido, porque não reflectem a pertença a esta ou àquela sensibilidade interna. De facto, elas apontam para comportamentos e escolhas que têm a ver com a simples decência nas atitudes e com a transparência e equidade nos processos, sendo património ético, cívico e político de todos os democratas. Não podem, portanto, deixar de ser partilhadas por todos os militantes socialistas.


2.1. O primeiro problema que queremos enfrentar é o da necessidade de reforçar as garantias da independência política do PS, em face do poder económico.
Esta necessidade não precisa de ser justificada doutrinariamente dentro de um partido como o nosso, mas vale a pena salientar que a própria Constituição da República Portuguesa valoriza como um dos seus princípios centrais a “subordinação do poder económico ao poder político”. Deste modo, por maioria de razão, estará longe da matriz democrática da nossa República, a subordinação do poder político ao poder económico. Esta subordinação é, aliás, combatida pela lei, no que respeita aos órgãos do Estado.
Tudo isto torna claro que também qualquer partido político e, para o que agora interessa, muito particularmente o PS, deve tomar as medidas necessárias à diminuição do risco de poder, em qualquer circunstância, ficar subordinado ao poder económico, ou ver o seu poder de decisão limitado, em qualquer das suas instâncias, por interferências consentidas desse poder.
Neste sentido, propomos que o PS institua, no plano interno, um sistema de incompatibilidades entre o desempenho dos principais cargos políticos dirigentes do partido de natureza executiva (secretário-geral, presidentes das federações, presidentes das concelhias, bem como secretariados nacionais e distritais) e a titularidade ou o exercício de poderes de direcção em empresas privadas, cujo objecto ou dimensão possam pôr objectivamente em risco a independência do PS, em face do poder económico. Esse sistema deverá ser justo e equilibrado, podendo inspirar-se no sistema de incompatibilidades em vigor para os órgãos mais relevantes do Estado.
Por outro lado, propomos que se institua um sistema de registo de interesses, semelhante ao que se aplica aos titulares de certos órgãos políticos, para quem exerça cargos dirigentes dentro do PS.
O PS pode encarregar a Comissão Nacional de Jurisdição de superintender a este sistema de controle, cabendo-lhe determinar em concreto quem é abrangido pelas novas regras. Parece, aliás, natural que estejam abrangidos os órgãos executivos de âmbito nacional e distrital, bem como os presidentes das comissões políticas concelhias.
Como um aspecto estruturante da sua posição, o PS deve ter como base a consagração interna das incompatibilidades com que concorda, no que diz respeito aos órgãos do Estado, a não ser que se justifique outra solução, em virtude das diferenças entre o plano estadual e o plano partidário.
Vamos entrar num período de luta contra um governo que parece estar prisioneiro de diversos grupos de interesse privados. Combatê-lo é uma urgência democrática. Ter credibilidade nesse combate é uma das condições da sua eficácia. E essa credibilidade depende bem menos das palavras ditas pelos responsáveis do PS do que da diferença que ele revele através do seu comportamento, da evidência da sua determinação na luta contra a corrupção, contra a captura de bens públicos por interesses privados.
Por isso, esta proposta é indispensável para a melhoria da qualidade da vida interna do PS, mas será também decisiva para a sua credibilidade como oposição à subalternidade perante o poder económico do actual governo da direita.

2.2.
O segundo problema a resolver é o da crescente degradação da qualidade democrática dos processos eleitorais internos do PS.
O risco político de deixar apodrecer a situação é enorme. É urgente uma profunda transformação das práticas e dos comportamentos que envolvem esses processos.
De facto, não podemos ser menos exigentes quanto à qualidade da democracia dentro do PS, do que aquilo que somos quanto à qualidade da democracia em Portugal. Não podemos ser menos vigilantes, perante os riscos inerentes ao financiamento das campanhas internas no Partido por fontes desconhecidas, do que aquilo que somos perante os riscos para a democracia portuguesa de um financiamento oculto das campanhas eleitorais e dos partidos.
Se formos apenas íntegros, quando nos projectamos para fora, mas aceitarmos ser complacentes, quando olhamos para dentro de nós, a nossa credibilidade ética ficará dramaticamente diminuída.
Deste modo, propomos que se institua um novo tipo de regulação das eleições internas do PS que garanta efectivamente a igualdade entre todas as candidaturas e que dê uma autêntica centralidade aos militantes, à vontade esclarecida e livre de cada militante.
Sem prejuízo da importância de tudo o que contribua para dar corpo a esses dois objectivos, há dois aspectos que nos parecem ser decisivos. Em primeiro lugar, todas as campanhas para eleições internas devem ser financiadas pelo Partido, não sendo permitido a qualquer candidato recorrer a outros financiamentos. Em segundo lugar, todas as sessões de esclarecimento ou realizações para que sejam convocados os militantes, relacionadas com qualquer eleição interna, serão sempre organizadas pelo partido com a presença de todos os candidatos ou de representantes seus, salvo se qualquer deles não quiser ou não puder estar presente, por facto próprio.
As campanhas internas passarão assim a ser realizadas, com rigorosa e imperativa isenção pelas estruturas formais do partido, com o natural apoio de todos os candidatos.
Só deste modo, se evitará a perigosa tendência para ser cada vez mais difícil que, quem não for rico ou não conseguir fundos de origens quase sempre não reveladas, possa concorrer, sem uma enorme desvantagem, a qualquer eleição interna de âmbito nacional ou distrital, ou mesmo a qualquer das grandes comissões concelhias. Só deste modo se evitará que as escolhas de cada militante sejam ilegitimamente condicionadas por uma teia asfixiante de pressões directas e de informações dirigidas sem contraditório, que ferem gravemente a qualidade da nossa democracia interna. Só deste modo restabeleceremos uma verdadeira harmonia com os nossos valores e com os nossos princípios, com a ética política que tanto prezamos. Só assim ficaremos longe de qualquer risco de desrespeito pela lei dos partidos, bem como do atropelo a uma bem entendida legitimidade estatutária.
Quando se torna central, perante o risco de deriva populista deste governo, o imperativo de combater o populismo, não podemos esquecer que ele é também, na sua lógica mais funda, uma transigência perante os entorses à democracia, uma certa sobranceria em face da ética democrática.
Ora, todos sabemos que o populismo resiste bem à crítica superficial, à simples agressividade verbal, mas é frágil perante o exemplo de comportamentos alternativos, perante o confronto com posições racionais, consistentes e firmes. Por isso, é natural que não sejamos verdadeiramente eficazes contra o populismo se a nossa luta se reduzir a palavras. Temos de lhe opor comportamentos diferentes, tornando ostensiva a diferença entre o nosso comportamento e o deles.
Ora, aperfeiçoar profundamente a vivência democrática dentro do PS, valendo pelos seus próprios frutos, é também um importante factor de credibilização das nossas posições críticas, perante a deriva populista.
Por isso, esta proposta é indispensável para melhorar a qualidade da vida democrática dentro do PS e pode ser decisiva para a sua credibilidade como oposição à deriva populista protagonizada pelo actual governo.

2.3.
O terceiro problema que enfrentamos é o do reduzido papel dos militantes na escolha dos candidatos do PS às eleições autárquicas, regionais, legislativas e europeias.
Para todos aqueles para quem a vontade dos militantes deve ser a mola real das decisões importantes do PS, este é um problema que, verdadeiramente, só se resolve com eleições primárias.
Note-se que eleições primárias há muito que são realizadas noutros países, noutras circunstâncias. Um dia chegarão a Portugal. Seria um grave revés simbólico para o PS, se outros partidos nos precedessem nesse caminho. Mas será verdadeiramente dramático que esse caminho nos venha a ser imposto por uma futura lei que consagre essas regras para todos os Partidos.
Para isso, propomos aos candidatos à liderança do PS que assumam mais esta prioridade, comprometendo-se a colaborar num processo que leve, dentro de um prazo razoável, a uma implantação do princípio das eleições primárias dentro do PS e à sua regulamentação.
De imediato, o essencial é a aceitação do princípio e a sua delimitação genérica. Depois, tratar-se-á de o regulamentar, com realismo e prudência, podendo ser instituídas diferentes formas de o concretizar, consoante os diversos tipos de eleições e as várias circunstâncias. Nomeadamente, poderá ser ponderado o início da sua vigência e poderá combinar-se a efectivação do princípio com a manutenção das prerrogativas actualmente outorgadas ao Secretário-Geral nesta matéria.
É claro, que é possível que, em certos casos, a realização de primárias seja uma regra apenas supletiva, sem deixar de ser obrigatória noutros casos. Por outro lado, como é bom de ver, todos os órgãos que actualmente têm competências nesta matéria continuarão a ter um papel importante no decorrer dos processos de escolha dos candidatos. O que é essencial é que com honestidade se dê aos militantes um verdadeiro poder de escolha, sem prejuízo de ser legítimo e necessário que se regule, com justiça e boa fé, o acesso à qualidade de candidato a candidato, para não se tornar inviável na prática o próprio processo de escolha.
Aproveitar a energia política de todos os militantes do PS é condição necessária para podermos protagonizar um combate político eficaz contra o governo da direita. Ora, o melhor estímulo para a participação dos militantes é dar-lhes verdadeiro poder de decisão nas escolhas importantes, valorizando as suas opiniões e não apenas ao seu trabalho. As primárias não são, evidentemente, a garantia infalível da mobilização dos militantes, mas a manutenção do sistema actual é, seguramente, um factor relevante do seu alheamento.
Por isso, esta proposta é indispensável para tornar mais efectivo o papel dos militantes nas decisões essenciais do PS e pode ser um sério contributo para um reforço da energia política do conjunto do partido.


3. Não bastam declarações de intenção, no sentido de uma profunda renovação do PS. É urgente que se tomem medidas concretas que verdadeiramente a iniciem.
É dentro deste espírito, que apresentámos aos candidatos à liderança do PS as propostas que acabamos de fazer.
Se, como pensamos ser possível, houver consenso entre todos os candidatos, sugerimos que submetam à aprovação do Congresso uma recomendação conjunta, com o sentido genérico proposto neste documento, comprometendo-se o candidato que vencer a constituir um grupo de trabalho sob a sua orientação directa, para depois poder propor à Comissão Nacional do PS, no prazo máximo de seis meses, a regulamentação das linhas gerais da proposta aqui apresentada.
No mesmo sentido, sugerimos que os candidatos diligenciem, junto da COC, para que o próximo Congresso conceda poderes estatutários extraordinários à Comissão Nacional, para serem integrados nos Estatutos os aspectos da proposta realizada pelo referido grupo de trabalho que o devam ser.



4. Sabemos que, pela sua própria natureza, o que propomos neste documento não pode reger o actual processo eleitoral interno, mas o seu espírito, se merecer o acordo genérico dos candidatos, pode desde já ser assumido por todas as candidaturas, bem como servir à COC como referência por todos aceite.

Pela “Margem Esquerda – clube de reflexão e debate”

quinta-feira, 23 de junho de 2011

ARQUEOLOGIA DAS ELEIÇÕES PRIMÀRIAS - I

Está a ocupar um lugar de relevo no debate inserido no processo da eleição do Secretário-Geral do PS, a questão das eleições primárias como método de escolha dos candidatos do PS nas diversos processos eleitorais que estruturam institucionalmente a nossa democracia. Esse relevo deveu-se principalemnte ao destaque que Francisco de Assis deu a esse tema na sua campanha.

O problema têm uma inequívoca importância própria, mas não pode ser separado da necessidade de o PS viver uma metamorfose profunda, em muitos outros aspectos. Isso não impede que ele possa ser objecto de uma reflexão autónoma, mas nunca se deve esquecer que ele está muito ligado a outros aspectos da vida do partido.


Várias foram as vozes que se levantaram dentro do PS a esse respeito, ao longo dos anos. Por mim, participei em algumas das iniciativas pioneiras, envolvendo a questão das primárias. Iniciativas essas que em conjunto com outras ajudaram a chegarmos ao ponto onde estamos. Por isso vou, a partir de hoje, transcrever extractos ou divulgar textos, em cujo processo de elaboração participei, os quais fazem referência às eleições primárias. Como verão eles envolvem outros temas conexos, o que ilustra o que acima afirmei quanto à ligação desta questão a outras.


Este primeiro Documento, data de Abril de 2002. É um extracto do Manifesto Político que tornou pública a existência do Clube Político Margem Esquerda. Esse Manifesto foi subscrito por 130 militantes do PS, tendo sido o culminar de um processo que demorou vários meses. O Secretário-Geral do PS era então Ferro Rodrigues a quem comunicámos pessoalmente a criação do clube, havendo razões para pensar que a nossa iniciativa contribuiu para a consagração nos Estatutos do PS da possibilidade de existirem clubes de política no interior do partido. Bom, mas vamos ao que mais interessa, eis o documento:


" 5. Renovar profundamente o Partido Socialista


5.1. A geografia eleitoral portuguesa faz com que nada se possa esperar da esquerda, no plano institucional, sem o envolvimento directo e liderante do PS. Isso e a nossa qualidade de militantes deste partido tornam incontornável a necessidade de se reflectir sobre o seu presente, para podermos valorizar o seu futuro.
É hoje quase um lugar comum, dentro do PS, dizer-se que, com ressalva da sua comprovada eficácia como máquina eleitoral, funciona mal. Bastaria isto para que fosse necessária a sua regeneração.
No entanto, atravessamos um tempo em que a própria transformação da sociedade lança novos desafios aos partidos políticos. E, como se tal não bastasse, não é possível esquecer que, ao contrário do que ocorre com os partidos de direita, na esquerda são os partidos os espaços políticos decisivos. Decisivos, não só como instrumentos de disputa e exercício do poder político, mas também como instâncias do combate ideológico.


5.2. Em termos genéricos, podemos dizer que o PS necessita de reestruturar completamente os seus órgãos nacionais, redimensionando-os de modo a que possam exercer de facto as competências que lhes são atribuídas, redistribuindo essas competências e responsabilizando cada um deles pela execução das linhas de orientação traçadas em cada Congresso.


5.3. Por outro lado, o PS precisa de criar uma rede nacional de secções de acção sectorial, pelo menos num conjunto de áreas-chave, de modo a que elas possam exprimir com representatividade posições reflectidas em cada uma dessas áreas temáticas. E assim podem funcionar como focos de propositura e crítica, sem deixarem de poder ser veículos especializados de transmissão aos militantes de informações e explicações da direcção do partido.


5.4. Mas tudo isto pode ser inútil, se não houver também uma mudança radical na filosofia com que se distribuem responsabilidades e se escolhem dirigentes dentro do PS.
Para cada órgão, em cada conjuntura, têm de ser avaliadas as necessidades e os objectivos que estão em causa, devendo as escolhas ser feitas a partir deles, com base, em exclusivo, nas virtualidades demonstradas previamente por cada militante para as atingir. Apenas podem ser tidos em conta a capacidade política, a competência técnica e o nível de eficácia já demonstrado, anteriormente, no desempenho dessas ou de outras funções.


5.5. Não pode, também, deixar de se aperfeiçoar o sistema de designação dos candidatos do PS nos diversos tipos de eleições. Tem que ser sempre efectivo o poder estatutário de escolha dos membros de cada órgão que tenha essa competência. Deve adequar-se sempre o poder das maiorias existentes em cada órgão, à relatividade da sua dimensão. Deve recorrer-se à consulta directa dos militantes das estruturas a que correspondam os candidatos que estiverem em causa, salvo circunstâncias excepcionais devidamente tipificadas.


5.6. Também parece útil estruturar e articular organicamente com o Partido o protagonismo político dos cidadãos independentes que colaboram com o PS, nas autarquias, na AR, no Governo e nos gabinetes de estudo. Poderia começar–se por recenseá-los, para lhes outorgar alguns direitos de participação na vida do Partido.
Em conjugação com isso, poder-se-ia instituir a qualidade formal de eleitor inscrito, a partir da qual , sem os vincular à disciplina do Partido, se concederia, aos cidadãos que se inscrevessem como eleitores do PS, um conjunto de direitos de participação na vida do partido.
Estes direitos seriam alargados aos cidadãos que colaboram com o PS nos termos atrás definidos. Deste modo, seria mais transparente e mais autêntica, mas também mais visível e menos circunstancial, a abertura do PS aos independentes, que aceitam colaborar com ele, mas não estão dispostos a inscreverem-se como militantes.


5.7. Toda esta mutação, que apenas se esboçou em termos muito genéricos, e que só será fecunda se não for parcelar, deverá ter em conta dois outros vectores.
5.7.1. Primeiro, o PS tem de se assumir como instância de animação e de estímulo à participação cívica dos cidadãos na vida pública, bem como ao seu protagonismo associativo e cooperativo, o que significa uma mudança qualitativa do modo como se relaciona com a sociedade civil. Algo aproximado a uma transformação que acrescente ás suas funções actuais, a que não deve renunciar, as de um verdadeiro movimento social, ou de animador de um leque de movimentos sociais.
5.7.2. Em segundo lugar, o PS tem de aprender a aproveitar em pleno as novas tecnologias da informação, impregnando o seu quotidiano com novas rotinas radicadas na sua utilização sistemática, de modo a que não só potencie a sua eficiência organizativa, mas também para que seja para os seus militantes uma experiência viva de modernidade.


5. 8. Deste modo, o PS precisa de uma renovação que vise o aumento da sua eficácia, dando-lhe maior consonância com as mutações civilizacionais, tornando-o mais visivelmente fiel à sua razão de ser histórica, reforçando o seu papel na qualificação da democracia em Portugal, impregnando melhor o seu quotidiano por uma ambição utópica.
Só assim poderemos solucionar realmente os problemas que hoje se colocam á eficácia do PS como organização, à credibilidade dos seus eleitos como expressões do poder político democrático e à profundidade da sua inserção na sociedade portuguesa.


5.9. O PS é hoje um partido que abrange quase 40% do eleitorado, o que implica necessariamente uma significativa heterogeneidade política. Essa heterogeneidade é, em si mesma, uma enorme vantagem política, uma riqueza que não pode ser desperdiçada.
O pluralismo interno não é, por isso, apenas o corolário de uma atitude democrática que se inscreve no código genético do PS, é uma condição para aproveitar plenamente toda a energia política existente dentro do conjunto dos militantes do partido.
Mas para que o pluralismo espelhe com fidelidade e transparência a diversidade de correntes internas, é indispensável que elas se revelem e estruturem, para que não se caia numa teia de equívocos, em que se disfarça a lógica dos pequenos grupos de pressão, recorrendo a uma imaginária valorização de diversidades que nem foram reveladas, nem clarificadas, nem testadas. Teia de equívocos que apenas tem servido para que um outro camarada seja sucessivamente cooptado para lugares de liderança, com base numa vaga sugestão de que representa uma corrente de opinião interna que nem se assumiu como tal, nem os escolheu. "

domingo, 19 de junho de 2011

PERFILADOS DE MEDO


Os poemas vivos conservam um enorme potencial de interpelação da nossa inteligência, das nossas emoções , da nossa cultura, independentemente dos anos que vão passando por eles. E interpelando-nos, ajudam-nos a compreender onde estamos e quem somos. Aproveitando para homenagear um dos poetas portugueses do século XX, que mais admiro, Alexandre O'Neill(1924-1986) , vou publicar a título de interpelação a todos nós, o seu " Perfilados de Medo".


Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos , do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...

sexta-feira, 17 de junho de 2011

O ESTRANHO CASO DO GOVERNO COXO

A parte mais sólida e promissora do novo Governo é a que não chegou a fazer parte dele. São os ministros ausentes, os esteios de uma nova governação há muito anunciada que afinal não chegou a acontecer, porque os seus prometidos intérpretes se fecharam em copas, na hora do vamos ver.


Depois há o Governo, o poder político propriamente dito, claramente hegemonizado pelo CDS com Paulo Portas à frente e dois ministros políticos de primeira linha, a seu lado. É certo que Passos Coelho ocupa formalmente o cargo de primeiro-ministro, sendo talvez o porta-voz do governo nos tempos mais próximos, mas isso é um detalhe administrativo facilmente neutralizável pela incontornável inércia da política. E não irá ser o possível auxílio de uma advogada irritadiça, ou apoio frouxo de um guerreiro sem chama ou o ombro amigo de um burocrata de carreira, que serão suficientes para o resgatarem da armadilha política em que se meteu.


E esta inusitada procissão de espantos fecha-se com a turma dos independentes. Armados de sólidos instrumentos de corte, eles ameaçam sentar-se num imaginário banquete, onde o povo português será o peru convidado. Uns e outros, num entusiasmo infantil, querem cortar-nos às fatias cientificamente, como resulta da sua sólida formação académica, com toda a naturalidade.


Mas uma coisa parece certa, numa futura história do cinema, o filme deste governo, se não encontrar lugar no capítulo das tragédias, ficará seguramente entre os desenhos animados.

Ministério da Saúde

Um cobrador de impostos à frente do Ministério da Saúde - isto não é uma estratégia, é uma epidemia.

Ministério da Educação



Na paisagem ameaçadora do novo Governo, há uma divisa esotérica que se oferece no Ministério da Educação: " Aos dezoito carbonário, aos cinquenta bombeiro voluntário".

quinta-feira, 16 de junho de 2011

NOVO GOVERNO

Um novo governo ergue-se no horizonte. Os "pecebes" chegam finalmente ao pote. A direita respira fundo. As coisas voltam ao seu lugar. Os escribas, a soldo dos donos da comunicação social, babam-se, numa admiração novinha em folha pelos novos senhores. Os mercados, talvez não domesticados, continuam inexplicavelmente indóceis. Agora, a culpa das desgraças financeiras prometidas, por definição, já não pode ser do governo. Tem que passar a ser da Grécia.


Segundo um boato insalubre, as mais irresistíveis novidades do governo emergente são afinal múmias, oriundas do cavaquismo, que há muito estavam sepultadas em duras odisseias pessoais, rumo a um confortável enriquecimento. Regressam trôpegos e deslumbrados.


O ex-futuro presidente nobre jaz amolgado num canto, como bola de ping-pong estragada, por tanto lhe terem batido com as raquetas do oportunismo e da sofreguidão política. Os poderes de facto preparam-se para o festim das grandes oportunidades. Camões arrepia-se. O espectro que paira em belém, agora com um coelho triunfante nos braços, pergunta ansiosamente aos oráculos o que há-de fazer com ele.


O povo olha desconfiado para o novo carnaval. E eu também.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

PS - RAPSÓDIA ELEITORAL

Compreendo que, estando já a decorrer uma batalha, os soldados, os sargentos, os tenentes, os tementes e mesmo alguns brigadeiros na reserva queiram fazer alguma coisa. Dar um tiro em alguém, cortar uma orelha a algum adversário. Compreendo até que montem no cavalo branco das pequenas ambições e corram à desfilada no campo de batalha, de um lado para o outro. Quando a refrega vai ribombando já, por montes e vales, é difícil aguentar os cavalos.


Já me custa mais perceber qual a razão pela qual alguns impulsivos e desinteressados guerreiros se põem a atirar pedras ao seu próprio candidato. Pedras, às vezes vestidas de palavras planas, mastigadas e previsíveis, mas apesar de tudo pedras, uma vez que podem quebrar a credibilidade do candidato. Pedras do género: "Eu Diocleciano da Purificação, dirigente muito antigo do PS, Presidente da Comissão Concelhia de Pica-Pau de Baixo, apoio o Candidato X que, sendo primo do meu vizinho, é um homem com causas que se pauta por princípios com muito valor e por valores plenos de princípios. Permito-me ainda lembrar que o Candidato Y não ajudou uma velhinha a atravessar a rua o ano passado no Algarve".


Consta que, precisamente por isso, um assessor de imagem aconselhou: " Ó Xis, manda o Purificação purificar-se de moscas aos quadrados. Pede-lhe mas é que apoie o Ypsilon para ver se ganhas uns votos". Mas o Xis não quis fazer uma desfeita dessas ao Presidente e preferiu amarelar apenas um sorriso e deixar andar.


Por isso, o candidato Ypsilon teve que fazer constar nos corredores da comunicação social que nem viu a velhinha, nem foi ao Algarve no ano passado. E o Diocleciano veio insistir publicamente: " É o que vos digo, votem Xis porque é isso que eu digo".


Permito-me por isso, humildemente, sugerir a libertação imediata dos apoiantes de Xis e Ypsílon, que estão há três dias fechados em salas, a escrever os programas das respectivas candidaturas. Só eles os vão ler, uma vez que as hostes estão já quase todas alinhadas por razões muito mais ponderosas do que os detalhes programáticos que possam existir num programa. De facto, é voz corrente que o candidato Xis, faz agora seis meses, levantou respeitosamente um dedo crítico numa pequena reunião de bairro, enquanto o candidato Ypsílon se limitou a acenar desaprovadoramente com a cabeça, na mesma reunião.E essa enorme diferença de atitudes faz toda a diferença.


Já no que me diz respeito, na minha qualidade de militante embirrento, prefiro perguntar uma coisa mais simples: "Qual é a posição dos candidatos à liderança do PS quanto a uma proposta de revisão constitucional,vinda da direita, que insista em pontos ( nalguns ou em todos) que foram repudiados pelo PS na legislatura anterior?"

sábado, 11 de junho de 2011

A SOMBRA DO DEZ DE JUNHO - solenidades


O fantasma das dificuldades futuras fez um discurso de todas as sombras no dia da raça, que como um cuco veio pôr o seu ovo desértico no Dia de Portugal e de Camões.

Era um fantasma esquálido, com ideias remotas pintadas de um cinzento arroxeado com tons de desgraça. Era um fantasma amargurado, trepassado por um remorso antigo: o remorso frio dos renegados.

Podia ser o fantasma de um mutante assumido, que pura e simplesmente, tendo sido de esquerda era agora de direita. Mas a sua metamorfose ficou incompleta. Algo a congelou num último momento. Por isso, mesmo quando entra na barra do tejo como um paquete de luxo, guiado pela mão amiga de algum generoso poder, há nele qualquer coisa de triste , qualquer coisa de amargo.

E apesar de ter sido, ano após ano, um precioso tenor dos mais tonitroantes orfeãos da direita, um dos oráculos mais trágicos de todas as desgraças, um anunciador dramático de todas as tempestades, um garrote implacável a constranger sonhos e esperanças, quando alguma pergunta mais directa o interpela de surpresa, o fantasma desperta e reage como um náufrago, à beira do último sobressalto e, numa prece oriunda de todos os desesperos, titubeia lúgubre e cansado: eu sou um homem de esquerda!


Mas não é. Limita-se a carregar um remorso fugidio que, ora parece ser um pedido de desculpas por ter sido de esquerda, ora parece ser uma amargura lenta por ter deixado de o ser. A direita manhosa rodeia-o de vénias reverentes, os patrões mais ladinos dão-lhe corda. E o celebrado fantasma sente crescer irresistivelmente a sua própria sombra, aventurando-se ao conselho supremo, à última instância da crítica: o conselho amigo ao imprudente povo que abre a porta à crítica certeira do grande patriarca.


E foi assim que, afinal, se descobriu um inesperado mistério: havia um quarto elemento da troika que assim deixou automaticamente de o ser. Era ele. por tudo isso, o espectro de belém teve um sopro de contentamento. Acertara.


Foi então que se ouviu, fechando a cerimónia, um inopinado estalar de ossos: três caveiras de luxo sentadas na primeira fila, aplaudiam freneticamente o discurso. As forças mortas da nação louvavam o fantasma. As agências de rating registavam com apreço.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

ATÉ QUE O MURO FENDA!

Quando os filhos das Parcas encharcam de um medo cinzento e abafado os caminhos do futuro, os poetas podem ajudar-nos a varrer com a luz da esperança este tempo de abutres. Convoquemos hoje um grande poeta da língua portuguesa, do século XX, de Coimbra. Deixemos que Carlos de Oliveira nos ofereça o seu "Soneto".

Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.

Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.

Entretanto, deixai que me não cale:
até que o muro fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.

A minha voz de morte é a voz da luta:
se quem confia a própria dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

A LONGA VIAGEM

A Maria Fernanda enviou a alguns amigos um texto de Jorge Semprún, extraído de “A longa viagem”, num gesto de homenagem ao grande escritor espanhol, agora desaparecido. A mim, o texto chegou-me vindo de uma outra sala, aqui de casa. Vou transcrevê-lo, acrescentando-o a um outro que publiquei ontem neste mesmo blog. Jorge Semprún foi enviado como prisioneiro para o campo de concentração nazi de Buchenwald, quando tinha vinte anos. Este texto foi , por isso, escrito pela sua própria vida. Não podia esquecer. Não esqueceu. Também nós, não podemos esquecer; nem deixar que nos confisquem a memória. Eis, finalmente, o excerto referido:

“Um dia, num desses vagões em que havia sobreviventes, quando afastaram o entulho dos cadáveres gelados, muitas vezes colados uns aos outros pelas roupas enregeladas e hirtas, descobriram um grupo de crianças judias. De súbito, no cais da estação, em cima da neve, no meio das árvores cobertas de neve, viu-se um grupo de crianças judias, umas quinze, pouco mais ou menos, olhando à sua roda de olhos esgazeados, olhando para os cadáveres amontoados como troncos de árvores já descascados em pilhas na berma das estradas, aguardando serem transportados para algures, olhando as árvores e a neve em cima das árvores, olhando como as crianças costumam olhar. E os S. S., primeiro, ficaram com ar aparvalhado, como se não soubessem que fazer daquelas crianças de oito a doze anos, pouco mais ou menos, ainda que algumas, graças à sua extrema magreza, à expressão do seu olhar, tivessem aspecto de velhas. Mas os S. S., dir-se-ia, antes de mais nada, que não sabiam que fazer dessas crianças e reuniram-nas a um canto, talvez para terem tempo de pedir instruções, enquanto escoltavam pela grande avenida as poucas dezenas de adultos sobreviventes do comboio. E parte desses sobreviventes ainda tinha tempo de morrer antes de chegar à porta da entrada do campo. Lembro-me que se viam certos desses sobreviventes cair no caminho, como se as suas vidas em vigia no amontoado dos cadáveres gelados dos vagões bruscamente se extinguissem, alguns caíam direitos como árvores fulminadas, a todo o comprimento, sobre a neve suja da avenida e aqui e ali lamacenta, no meio da neve imaculada, sob as grandes faias palpitantes, outros caíam primeiro de joelhos, tentando levantar-se, para se arrastarem ainda alguns metros, ficando por fim estendidos, braços abertos, mãos descarnadas enterradas na neve, numa derradeira tentativa, dir-se-ia, para se arrastarem ainda alguns centímetros para essa porta, lá diante, como se essa porta fosse o final da neve e do Inverno e da morte. Mas, finalmente, no cais, da estação já não havia senão aquelas quinze crianças judias. Os S. S. voltaram então à carga, deviam ter recebido instruções precisas, ou então tinham-lhes dado carta branca, talvez lhes tivessem dado autorização para improvisarem a maneira de chacinar aquelas crianças. Seja como for, voltaram prontos para tudo, com cães, e riam muito, soltavam graçolas que os faziam torcer-se de riso. Formaram arco de círculo e empurraram diante de si, ao longo da grande avenida, as quinze crianças judias. Lembro-me, os garotos olhavam à sua roda, olhavam para os S. S., devem ter pensado, ao princípio, que os escoltavam simplesmente até ao campo, como tinham visto fazer aos adultos, havia pouco. Mas os S. S. soltaram os cães e puseram-se a zurzir as crianças a golpes de matraca, para obrigá-las a correr, para darem início àquela caçada às lebres na grande avenida, aquela caçada por eles inventada ou que lhes tinham ordenado que organizassem, e as crianças judias, zurzidas pelas matracas, atormentadas pelos cães aos pulos em volta delas, mordendo-as nas pernas, sem ladrar nem rosnar, eram cães amestrados, as crianças judias puseram-se a correr pela grande avenida fora, direitas à porta do campo. Talvez nesse momento ainda não tivessem compreendido o que as aguardava, talvez tivessem pensado que se tratava de uma derradeira partida, antes de as deixarem entrar no campo. E as crianças corriam, com os seus barretinhos de grandes palas, enterrados até às orelhas, e as suas perninhas moviam-se atabalhoadamente, ao mesmo tempo lentas e aos sacões, como no cinema quando se projectam velhos filmes mudos, como nos pesadelos em que corremos o mais que é possível sem avançarmos um passo que seja, prestes a ser apanhados pela coisa que nos persegue, acordando cobertos de suores frios; e aquela coisa, aquela matilha de cães e de S. S., a correr atrás das crianças judias, dentro de pouco devoravam as mais débeis, as que ainda não tinham oito anos, talvez, as que não tardaram a não ter sequer força para se mexerem, derrubadas, espezinhadas, zurzidas, caídas no chão, estendidas ao longo da avenida, demarcando com os seus corpitos magros, desmembrados, o rasto daquela caçada às lebres, daquela matilha que lhes ia no encalço. E não tardou que restassem apenas duas, uma grande e uma pequena, perdidos os barretes na fuga desvairada, os olhos a brilharem como centelhas de neve no rosto pardacento. A mais pequena começava a perder terreno, os S. S. gritavam atrás delas, e os cães puseram-se a uivar, o cheiro a sangue transtornava-os. E então a maior retardou o passo para dar a mão à mais pequena, que já principiava a tropeçar, e ainda correram alguns metros, juntas, a mão direita da mais velha na mão esquerda da mais nova, sempre a direito, até ao momento em que os golpes de matraca as abateram, juntas, de cara no chão, as mãos apertadas para sempre. Os S. S. reuniram os cães, que ladravam, e tornaram a subir a grande avenida, disparando à queima-roupa, na cabeça de cada uma das crianças caídas na grande avenida, sob o olhar vazio das águias hitlerianas, uma bala derradeira.”

[A Longa Viagem (ed. Arcádia Lda., s. d.) ]

POR UMA NOVA NARRATIVA EUROPEIA

Transcrevo aqui um pequeno artigo, publicado hoje no jornal diário "As Beiras", editado em Coimbra, intitulado "Por uma nova narrativa europeia". O texto é da minha autoria, tendo-o eu escrito na qualidade de membro da direção da Eurofacts. Ei-lo:


"A Europa já foi o rosto da aventura, uma fronte de curiosidade, rasgando o desconhecido. Sonhou-se centro do mundo e horizonte, para onde haviam de convergir todos os futuros. Isso não impediu que, uma e outra vez, os deuses da guerra a percorressem loucos. Parecem agora ter adormecido, embora aqui e ali, de quando em vez, ameacem despertar, lembrando-nos que existem.
Mas se a olharmos em contraste com os sonhos dos que a têm carregado penosamente nos seus ombros, um século atrás de outro, ficaremos transidos pela ausência dos futuros que os de baixo modelaram com o seu próprio sofrimento, pagando por eles o preço completo das suas vidas. Por isso, para lá das luminosas avenidas das grandes metrópoles, para lá das auto-estradas onde velozmente se caminha para ignotos destinos, para além das catedrais onde se percebem os rostos dos séculos passados, há um murmúrio profundo de incomodidade que algumas multidões têm trazido à superfície em muitas praças europeias. Várias Europas procuram caminhos entre as cidades do velho continente. Nem sempre se vêem umas às outras, nem sempre se conhecem, nem sempre se suportam. Há, em primeiro lugar, a Europa das sinfonias, das subtis cantatas, dos violinos que atravessam os sonhos como pássaros azuis; a Europa das cores, das formas que vão para além da natureza, que são uma nova natureza; a Europa das palavras construtoras de poetas, com mantos de melancolia e assomos de tristeza, com explosões de alegria e sede de futuros; a Europa da curiosidade e do conhecimento; a Europa do pensamento que amanhece através de todas as muralhas. A Europa como alfobre de utopias. Há depois a Europa dos braços cansados, dos íngremes caminhos do esforço e do trabalho, dos dias fechados pelo pão que falta, das alegrias ligeiras e contidas dos que temem pelo que há de mais simples em qualquer futuro. Uma Europa que se mistura com os novos europeus saídos da desgraça, em busca de uma pequena luz de esperança.
Há ainda, como vizinha desta, uma pequena Europa que se tem vindo a prometer nas praças de algumas cidades. Uma Europa jovem a quem confiscaram o futuro e que pode ser um novo sopro de vida nas avenidas velhas das ideias mortas. Algumas outras Europas tacteiam destinos nas palmas misteriosas das sua mãos; dispersas e avulsas; generosas; talvez assustadas.
E há depois a narrativa de ferro da Europa Institucional; uma história de políticos dia a dia mais previsíveis, menos familiarizados com a respiração de novos tempos, mais limitados por rotinas burocráticas; uma história de senhores do dinheiro que se escondem por detrás de alegados automatismos económico-financeiros que circunspectos académicos, falsamente, garantem como espelhos fiéis da ciência. É por isso necessária uma nova narrativa europeia, onde realmente caibam todos os caminhos que os povos e os cidadãos europeus queiram percorrer, onde as várias Europas cresçam com vigor exercendo liberdade. Uma narrativa que seja a voz de uma Europa que olhe de novo para o infinito, com familiaridade e alegria, por ser o corpo final de história vivida de todos os sonhos e de todos os sofrimentos dos povos europeus".

[ Rui Namorado]

MORREU JORGE SEMPRÚN

Um grande escritor espanhol, Jorge Semprún, acaba de morrer em Paris. Um escritor, um militante político determinado, um intelectual brilhante que escreveu alguns livros indispensáveis para se comprenderem alguns dos dramas que afligiram o século XX. Prisioneiro num campo de concentração nazi, alto dirigente do Partido Comunista Espanhol de onde seria expulso nos anos 60, Ministro da Cultura de um governo espanhol liderado por Filipe González, merece bem ser lembrado. Lembrado e homenageado pelas palavras de um outro grande escritor espanhol da actualidade, Juan Goytisolo. Escritor que lhe dedica um pequeno texto evocativo, publicado no "El País" de hoje. O título da evocação é aliás sugestivo: "Un gran intelectual europeo". Sigamos pois o referido texto, transcrito aqui com a devida vénia do conceituado jornal madrileno.


"En mayo de 1962, a mi paso por Madrid, enviado por el semanario France Observateur, para cubrir de forma anónima la oleada de huelgas que sacudía España, a partir del movimiento de protestas de los mineros de Asturias, uno de mis contactos con los organizadores de aquellos, el novelista Armando López Salinas, me llevó a una terraza de la Castellana en la que, como evoqué más tarde, nos esperaba Federico Sánchez, perfectamente adaptado a su papel de burgués desenfadado y ocioso: su increíble aplomo, en unos momentos en que era el hombre más buscado por todas las policías de España, me impresionó en la medida en que se ajustaba cabalmente a su leyenda de invisible y burlón pimpinela escarlata.
Había conocido a Jorge Semprún meses atrás, en las reuniones de Orientación Cultural Marxista, celebradas en el domicilio parisiense del escultor Baltasar Lobo, a las que asistí más de una vez en calidad de "compañero de viaje" del PCE clandestino. Aunque por aquellas fechas nadie me había informado de la verdadera identidad del misterioso Federico Sánchez, no tardé en atar cabos y adivinarla. A diferencia de sus camaradas de militancia, cuya estricta formación política e ideológica les convertía en meros portavoces de la anquilosada doctrina oficial, Semprún, como su colega en la dirección del partido Fernando Claudín, mostraban un gran interés por los temas literarios y artísticos y, cuando a instancias suya pasé a formar parte del comité de redacción de Realidad, la revista cultural del PCE, integrada por ellos, Francesc Vicens, Juan Gómez, Jesús Izcaray, el pintor Pepe Ortega y otros cuyo nombre no recuerdo, nuestras afinidades personales y políticas se afianzaron y convirtieron en una verdadera y durable amistad.
En 1963 Jorge y su esposa Colette, junto al matrimonio Claudín, devinieron comensales asiduos de las cenas organizadas por Monique Lange, Enric Poissoniere. Fue así, como bajo la traza del militante y del Robin Hood urbano, descubrimos que se ocultaba un gran escritor. Monique le convenció para que le pasara el manuscrito de El largo viaje, y su lectura nos impresionó. La experiencia condensada en el libro de su incorporación juvenil a la Resistencia Antinazi, y su detención y siguiente deportación a Buchenwad, es el mejor testimonio de un autor español -aunque escrito en francés- de la barbarie hitleriana, y fue recompensado meses después con el premio Formentor, por su denuncia de aquella y su excepcional calidad literaria.
No voy a referir aún las vicisitudes de su oposición y la de Fernando Claudín a la línea oficial del partido, descritas ya en Autobiografía de Federico Sánchez, (1977). Evocaré tan solo una anécdota reveladora del sectarismo y arbitrariedad de la difunta Unión Soviética, en cuanto que le concierne. Según me contó en 1965, uno de los niños de la guerra, durante mi viaje a la URSS, invitado por la Unión de Escritores, tenía a cargo la preparación de una antología de literatura española, para una editorial soviética, y un cuadro del partido le ordenó que incluyeran en ellas unas páginas del recién editado libro de Jorge. Meses después, el mismo cuadro se presentó en la redacción de la editorial para exigir que la suprimieran, sin dar explicación alguna de tan sorprendente cambio. Aquello me demostró que el mecanismo de demonización del disidente, funcionaba en la URSS de idéntica forma a la de la España de Franco.
La creación literaria de Jorge Semprún, elaborada a partir de su cuádruple experiencia de exiliado republicano español, resistente francés, deportado a los campos nazis y conocedor de los entresijos de un PCE no espurgado todavía de las escorias del estalinismo, se enriqueció posteriormente con novelas de la envergadura de El desvanecimiento y La sengunda muerte de Ramón Mercader, hasta alcanzar con Aquel domingo, esa dimensión histórica, ética y cultural, que la convierte en una obra de referencia en el ámbito de la mejor novela europea. Frente al provincianismo imperante no solo en España sino en otros países del viejo continente -este petit contest del que habla Milan Kundera-, Semprún encarna como pocos una mezcla fecunda de experiencias ajenas a todo credo nacional o ideológico, y que funda en ella su propia ejemplaridad. La reflexión política recogida en la pasada década en El hombre europeo y Pensar Europa, corona su labor de persona y escritor a todas, como pedía Manuel Azaña, testigo sereno de los horrores y grandezas de la época convulsa en la que vivió. ´
Mi estima y amistad por él abarcan un lapso de casi medio siglo. Ninguna fundación estatal, provincial ni autonómica podrá adueñarse del legado de Jorge: lo que pervive en el ánimo del lector, ligero e inasible como el aire o la nube, no se deja atrapar."