sábado, 30 de dezembro de 2017

A JUSTIÇA RESPIRA MAL




A JUSTIÇA RESPIRA MAL

Vários comportamentos, mediaticamente destacados, das principais instâncias do poder judicial português têm tido ecos superficiais contraditórios e têm suscitado impressões distintas na sociedade portuguesa. Uns entusiasmam-se, outros indignam-se. Cada vez mais encolhem os ombros, com desilusão ou simples indiferença. Os entusiastas, os indignados e os indiferentes arrumam-se desigualmente ao sabor do que em cada caso está directamente em causa.

Mas, de acordo com os estudos opinião publicados, em geral, o prestígio dos juízes e dos magistrados do ministério público tem descido até aos últimos lugares na hierarquia da consideração, que por eles têm os portugueses. Os tribunais, corporizados essencialmente pelos juízes, são um órgão de soberania. Todos os outros órgãos de soberania radicam a sua legitimidade no facto de serem escolhidos directa ou indirectamente pelo voto popular. O Presidente da República e os deputados à Assembleia da República são eleitos directamente; o Governo depende principalmente da vontade e decisão dos deputados. Os juízes, embora exerçam os seus poderes “em nome do povo”, nos termos da Constituição, não são eleitos por ninguém.

Os magistrados do ministério público dispõem de uma autonomia que os não exclui da tutela genérica do Governo, regulada pela lei nos termos da Constituição.

Uns e outros, corporativamente, têm pugnado por uma autonomia ainda maior, neste último caso, e por uma independência ainda mais radical, no caso dos juízes. Não só em Portugal, mas também em Portugal, sob a capa de uma luta contra a corrupção (plenamente justificada em si própria) têm vindo a deslizar crescentemente para uma intromissão ilegítima nas esferas de competência política do poder executivo e até, mais raramente, do poder legislativo.

No entanto, se no caso português a opinião pública, exprimindo em larga medida a vontade popular, aprecia, como é público, tão negativamente os juízes, como podem continuar eles a ser dispensados, incondicionalmente, de se submeterem a um crivo eletivo directo ou indirecto, que certifique que o povo, em nome de quem decidem, os mandata realmente para julgarem? E, se o mesmo desprestígio atinge os magistrados do ministério público, o que está na ordem do dia é a necessidade dos poderes democráticos, que resultam do nosso voto, tomarem medidas urgentes para uma reabilitação profunda da qualidade da sua actuação, que lhes permita recuperar o prestígio perdido.

Todos sabemos (e quem tenha frequentado uma Faculdade de Direito, como é o meu caso, sabe-o sem margem para dúvidas, por experiência) que como estudantes  os então futuros juízes e magistrados não eram, por natureza, mais honestos, mais inteligentes, mais sabedores, mais equilibrados, mais trabalhadores do que  os outros. E não há Faculdade de Direito que, em si, seja capaz de ungir de uma espécie de santidade democrática todos os que por lá passarem. Por isso, não há nenhuma justificação objetiva para que seja quem for possa ser encarregado de uma função tão relevante como a judicial, sem ser submetido, como os titulares de outros poderes públicos o são, a um controle democrático claro e efetivo.

Tem vido a manifestar-se, com crescente frequência, uma enérgica vociferação, talvez nalguns casos sem má fé, contra os partidos políticos, contra aquilo a que chamam classe política (pondo com essa noção, num mesmo saco, lobos e cordeiros, raposas e galinhas, como se os cordeiros pudessem comer os lobos e as galinhas, as raposas). Os furiosos acendem-se , em regra, por causa de  atos ou omissões cometidos por um ou por outro partido em concreto, por uma ou por outra pessoa em concreto, mas a partir de uma primeira justa indignação quanto a cada caso generalizam, abrangendo tudo. E ao abranger-se gente séria na vociferação, está afinal a praticar-se uma injustiça e a estão a branquear-se os verdadeiros prevaricadores.

Embora não seja essa a única causa desta atmosfera insalubre que se respira em Portugal, para se poder melhorá-la não se pode ignorar a crise vivida pelas magistraturas judiciais, bem ilustrada, aliás, pela dramática quebra de prestígio público que enfrentam.

E como é óbvio, em virtude da situação a que se chegou, pelo menos num primeiro tempo, não é lógico que esteja em causa o aumento de autonomias ou de independências, mas sim uma intensificação equilibrada do controle democrático e das garantias de compatibilidade funcional e política dessas entidades judiciais com as escolhas democraticamente feitas pelos portugueses.


Mas se a estratégia for a de fingir que se muda muito à superfície para se garantir que em profundidade tudo fica na mesma, apenas estaremos a estugar o passo rumo ao abismo. E o abismo é, neste caso, uma maior degradação das magistraturas judiciais, rumo a uma séria perda de qualidade da democracia em Portugal.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

O PERIGO DO LACRAU


Muitos dirigentes e quadros dos partidos de esquerda estão habituados a sofrer, a travarem um combate desigual com as direitas. De quando em quando vêm à superfície e respiram, tomando nas  mãos algumas alavancas de poder, com as quais a custo manobram em território inimigo. Abrem algumas clareiras de esperança, revertem alguns estragos mais gritantes, travam os ímpetos predatórios dos poderes de facto.

Mas parecem atingidos , em muitos casos, por uma estranha maldição. Parecem possuídos por uma incontida pulsão suicida, como se o êxito, mesmo precário e relativo, os afligisse. Como se a sua vocação irreprimível fosse a de estarem com os de baixo, lutando contra os que estão em cima, como se não lhes importasse verdadeiramente trazer os de baixo para cima, até deixar de se poder falar em baixo e em cima, quando se fala de sociedade.

Como o lacrau que a meio do rio fere de morte o sapo que o transporta e ao ser inquirido sobre o absurdo de, ao matar o sapo a meio do rio, ir morrer com ele, responde: “É da minha própria natureza! Não consigo evitá-lo.”

As esquerdas em Portugal entenderam-se, transformaram, através de uma solução atípica e engenhosa, o impossível  no desejado. Uma solução que resistiu à hostilidade furiosa da direita doméstica e ao cerco frio das direitas europeias, institucionalmente senhoras da União Europeia. A solução sobreviveu a dificuldades, acidentes, cercos e incidentes. Os poderes de facto hostilizam-na sistematicamente, sem piedade. Tem resistido. Pode tornar-se um precedente. Não se vislumbram vias alternativas capazes de suscitar esperança. Para as direitas portuguesas isto é desesperante.

As  diferenças entre as esquerdas,  fisiologicamente expressas no espaço mediático, foram-se tornando naturais. Mas, no seio dessa heterogeneidade natural, despontam de quando em quando alguns surtos de crispação insalubres que comportam riscos desnecessários que não devem ser negligenciados.

Foi o caso de uma alta dirigente do BE que tingiu uma crítica normal ao PS de um tom de censura ética, claramente inábil, tosco e ofensivo. O PS enquanto tal não reagiu, mas houve pelo menos um dos seus expoentes mediáticos que dramatizou o incidente e não deixaram de ser ouvidos alguns outros ecos oriundos do PS . 

A relevância política objetiva  do assunto é nula. A tonalidade ética da crítica é tonta e desnecessária. A intensidade de algumas reações é excessiva e  despropositada. Como incidente é menor, como indício é preocupante.


Esperemos pois que as lideranças das nossas esquerdas não se cansem de não estar em puro sofrimento defensivo. É que  não pode esquecer-se que o  povo de esquerda não tem nenhum apego a que voltem a apertar-lhe o garrote que lhe corta a respiração.  As lideranças das nossas esquerdas não podem  transformar-se no "lacrau" que afunda a solução alcançada, alegando que isso lhes está na  própria natureza.

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Um teólogo da libertação fala sobre o Brasil.




Um teólogo da libertação fala sobre o Brasil.

O teólogo brasileiro Leonardo Boff,  um dos mais destacados protagonistas da teologia da libertação, publicou no passado dia 26 de Novembro no Jornal do Brasil um texto sobre a actualidade política brasileira, intitulado “É importante derrotar as elites do atraso”.
Para escaparmos ao unilateralismo favorável ao poder político atual que , em regra,engessa a comunicação social portuguesa nada melhor do ler atentamente o referido texto que a seguir transcrevo:

 “Por mais críticas que se faça e se tenha que fazer ao PT, com ele ocorreu algo inédito na história política do país. Alguém do andar de baixo conseguiu furar a blindagem que as classes do poder, da comunicação e do dinheiro, por séculos, montaram, para minimizar ao máximo políticas públicas em benefício de milhões de empobrecidos. O mote era: políticas ricas para os ricos e políticas pobres para os pobres. Assim estes não se rebelariam.
A verdade é que as elites endinheiradas nunca aceitaram um operário, eleito por voto popular, a chegar ao poder central. É fato que elas também se beneficiaram, pois a natureza de sua acumulação, uma das mais altas do mundo, sequer foi tocada.
Mas permanecia aquele espinho dolorido: ter que aceitar que o lugar supostamente deles, fosse ocupado por alguém vindo de fora, sobrevivente da grande tributação, imposta aos pobres, negros, indígenas, operários durante todo o tempo da existência do Brasil. O nome de seu horror é Luiz Inácio Lula da Silva.
Agora esta elite despertou. Deu-se conta de que estas políticas de inclusão social poderiam se consolidar e modificar a lógica de sua abusiva acumulação.
Como é conhecido pelos historiadores que leram e leem a nossa história a partir das vítimas, como é o caso do mulato Capistrano de Abreu, do acadêmico José Honório Rodrigues e do sociólogo Jessé Souza entre outros, diferente da história oficial, sempre escrita pela mão branca, todas as vezes que as classes subalternas ergueram a cabeça, buscando melhorar a vida, esta cabeça foi logo golpeada e os pobres reconduzidos à margem, de onde nunca deveriam ter saído.
A violência nas várias fases de nossa história foi sempre dura, com prisões, exílios, fuzilamentos e enforcamentos ao revoltosos e particularmente com referência aos  pobres e negros, estes últimos centenas deles assassinados ainda neste ano.  
A política de conciliação das classes opulentas, à revelia dos reclamos populares, sempre detiveram o poder e os meios de controle e repressão. E o usaram vastamente.
Não é diferente no atual golpe jurídico-parlamentar de 2016 que injustamente apeou do poder a Presidenta Dilma Rousseff.
O golpe não precisou mais de cassetetes e de tanques. Bastou aliciar as elites endinheiradas, as 270 mil pessoas (menos de 1% da população) que controlam mais da metade do fluxo financeiro do país, associadas aos meios massivos de comunicação, claramente golpistas e anti-populares, para assaltar o poder de Estado e a partir daí fazer as reformas que os beneficiam absurdamente.
O Brasil ocupa uma posição importante no cenário geopolítico mundial. É a sétima economia do mundo, controla o Atlântico Sul e está voltada para a Africa. Esta área, na estratégia do Pentágono que cuida, ao sul, pela segurança do Império norte-americano, estava a descoberto. Havia aí um país, chamado Brasil, chave para a economia futura, baseada na ecologia, que tentava conduzir um projeto de nação autônomo e soberano, mas aberto à nova fase planetária da humanidade. Precisava ser controlado.
A Quarta Frota que fora suspensa em 1950 voltou a partir dos anos 90 a ser ativada com todo um arsenal bélico, capaz de destruir qualquer país oponente. Ela vigia especialmente a zona do pré-sal, onde se encontram as jazidas de petróleo e de gás, as mais promissoras do planeta.
Consoante à própria estratégia do Pentágono, bem estudada pelo recém falecido Moniz Bandeira e denunciada nos EUA por Noam Chomsky, era decisivo desestabilizar os governos progressistas latino-americanos, desfigurar suas lideranças, desmoralizar a política como o mundo do sujo e do corrupto e forçar a diminuição do Estado em favor da expansão do mercado, o verdadeiro condutor, creem eles, dos destinos do país. Pertence a esta estratégia difundir o ódio ao pobre, ao negro e aos opositores deste projeto entreguista.
Pois este é o projeto atual das elites do atraso (no dizer de Jessé Souza). Não pensam num projeto de nação, preferem uma incorporação, mesmo subalterna, ao projeto imperial. Aceitam, sem maiores reticências, a sua recolonização para serem meros exportadores de commodities para os países centrais.
Argumentam: para que termos uma indústria própria e um caminho próprio para o desenvolvimento, se tudo já está construído e montado pelas forças que dominam o mundo?
O capital não tem pátria, apenas interesses no Brasil e em qualquer parte do mundo. Estas elites do atraso colocam-se decididamente do lado do Império e de seus interesses globais.
Atrás do vergonhoso desmonte dos avanços sociais com o propósito de transferir a riqueza da nação e dos pobres para os já super-ricos, estão estas vorazes elites do atraso. Estão reconduzindo o Brasil às condições do século XIX até com trabalho semelhante ao escravo.
Bem intuía, pesaroso, Celso Furtado no entardecer de sua vida, que as forças contrárias à construção do Brasil como nação forte, vigorosa e ecumênica, poderiam triunfar e destarte interromper o nosso processo de refundação do Brasil. Basta ler seus dois livros:  Brasil: a construção interrompida (1993) e o outro O longo amanhecer (1999).
Nas próximas eleições devemos derrotar democraticamente estas elites do atraso, porque querem implacavelmente acabar de desmontar o Brasil social, pois não mostram nenhum interesse pelo país e pelo povo, apenas como oportunidade de negócios.
Se por nosso infelicidade, triunfarem, poderão levar consigo outros países latino-americanos para o mesmo caminho fatal. Teríamos sociedades altamente controladas, ricas por um lado e paupérrimas por outro, tremendo com medo da violência que fatalmente surgiria como está efetivamente surgindo com a polícia militar fazendo a obra repressiva dos militares no tempo da ditadura civil-militar de 1964.
Então, seríamos ainda positivamente cordiais?”



quinta-feira, 23 de novembro de 2017

25 de Novembro de 1967 - homenagem e memória



Há dez anos, pouco tempo depois de ter  iniciado este blog, no dia 25 de Novembro de 2007, escrevi aqui o seguinte texto:

 "Hoje, passados 40 anos, transcrevo três pequenos poemas que escrevi, em homenagem a quem morreu nas cheias de 1967, ocorridas na região de Lisboa. Foram incluídos, mais tarde, em 1970, no meu livro “Maio Ausente”, editado no Cancioneiro Vértice."

Hoje, quando passaram mais dez anos, volto a transcrever os mesmo poemas, ou talvez um poema desenvolvido em três breves momentos. O salazarismo constrangido escondeu a desgraça. O povo em carne viva foi solidário. Caminhou-se muito, mas não o suficiente. Meio século depois, faz ainda sentido reiterar a homenagem consubstanciada no poema que então escrevi.



25 de Novembro de 1967
            (Aos que sofreram as inundações de Lisboa)

Há essa noite
rudemente escrita
no experimentado espanto
da cidade

algas lentas de medo
à flor da água
longo soluço
duma morte larga

Lisboa
sua excessiva dimensão
de mágoa

*

Tragédia persistente
escolheu atores
mais que experimentados

coisa por eles  mal possuída
única lautamente repartida
já estava sua morte anunciada
Não são heróis
os mortos perfilados
na memória tão forte dessa noite

há muito estava a morte na cidade
nas baixas casas tristes da cidade
na carne podre deste tempo nosso

                                      *   
Homens de igual morte prometida
é escasso bem o pranto da cidade
é preciso  romper o nevoeiro
escolher a morte   mais que ser escolhido


                                      Rui Namorado

                            ( publicado no livro “Maio Ausente”, em 1970,                                                                                                                                  no Cancioneiro Vértice- Coimbra)


sábado, 18 de novembro de 2017

CONGRESSO NACIONAL DA ECONOMIA SOCIAL



[O texto que a seguir transcrevo reproduz uma conferência que proferi na Sessão Final do Congresso Nacional da Economia Social que decorreu em Lisboa, no passado dia 14 de novembro.]


A Lei de Bases da Economia Social
  ─ garantia no presente e inspiração do futuro
                                                 Rui  Namorado  
1. A Lei de Bases da Economia Social  [LBES] é um elemento importante do processo de instituição em Portugal de um espaço socioeconómico autónomo com características próprias, denominado “economia social”. Para compreendermos este processo e a sua consolidação jurídica, deve ter-se presente o contexto internacional que o tem envolvido, em especial na sua dimensão europeia. Mas aqui no essencial vamos ter em conta o caso português, valorizando e contextualizando adequadamente as suas particularidades.
O mais relevante impulso para o reemergir da economia social no seu perfil atual ocorreu em França no início dos anos 80 do século XX, depois de alguns anos de germinação. Esse processo conquistou um eco significativo na União Europeia, tendo ganho corpo em vários dos seus Estados-membros. À escala mundial, foi adquirindo visibilidade, tendo entrado em diálogo e sinergia com outros processos sociais de natureza semelhante, mesmo que em alguns casos sob uma nomenclatura diferente.
Em Portugal, deu os seus primeiros sinais ainda nos anos 80 do século XX, tendo começado a afirmar-se institucionalmente no decurso dos anos 90, ainda que em termos incipientes, através da “Rede Portuguesa de Formação para o Terceiro Sector”. Já no presente século, em 2008, o Instituto António Sérgio para o Setor Cooperativo [INSCOOP] deixou de ser um instituto público, que apenas se ocupava do sector cooperativo, para se transformar na Cooperativa António Sérgio para a Economia Social [CASES], uma cooperativa de interesse público com incidência em toda a economia social. Em 2011, foi criado como órgão de consulta do Governo, o Conselho Nacional da Economia Social [CNES] e em 2013, foi publicada a LBES.
Estamos perante um processo complexo e multifacetado, profundamente impregnado pelo seu contexto sociopolítico. Por isso, para o podermos compreender plenamente, deve ser tido em conta, em primeiro lugar, o grau de maturidade das várias constelações da economia social e a energia socioeconómica gerada, não só pelas práticas próprias de cada uma delas, mas também pela sua convergência. Em segundo lugar, há também que ter em atenção as alterações introduzidas na Constituição em alguns aspetos diretamente relacionados com a economia social, quer estruturalmente, quer pela inovação dos conteúdos normativos. Em terceiro lugar, deve seguir-se a evolução das políticas públicas com incidência na economia social, em especial das suas projeções jurídicas.
A sinergia entre estes três vetores é o impulso determinante da evolução da economia social, no caso português. A LBES, no essencial, é um dispositivo normativo que materializa, especifica e consolida essa sinergia. Como acontecimento normativo, objetivamente, significou que se gerou na vida das entidades da economia social e nas políticas públicas que lhe dizem respeito, um grau de amadurecimento suficiente para tornar possível e útil este tipo de resposta jurídica.
Como é sabido, as normas jurídicas com incidência direta na economia social, no caso português, distribuem-se estruturalmente por três níveis: o da Constituição, o da LBES e as leis comuns. A LBES é um espaço jurídico de articulação dos outros dois. A regulação jurídica da economia social é uma proteção de importância decisiva, cuja fragilização pode ter resultados devastadores. E ela é uma das mais relevantes manifestações da interação entre o Estado e a economia social, um aspeto importante da desejável imbricação de ambos.
 Esta imbricação pela proximidade que suscita, pela osmose que pode induzir, torna ainda mais importante a salvaguarda da autonomia da economia social relativamente ao Estado, tornando imperativo que ela seja balizada por parâmetros claros. Na verdade, esta imbricação, embora facilite uma interação entre ambos, quer substancial, quer estruturalmente, comporta riscos que devem ser controlados. Para esse controle, pode contribuir muito uma autonomia da economia social desenhada com nitidez e precisão.
Mas é também muito importante que se tenha presente que o alheamento, o não entrelaçamento, a não imbricação, entre a economia social e o Estado, em particular na sua dimensão social, dificultam, entorpecem e constrangem, a evolução duma e doutro. A evolução de ambos será tanto mais célere quanto mais conjugada.
Na verdade, divorciada do Estado a economia social corre o risco de se transformar num espaço cercado e acossado pelos apetites dos mais diversos predadores. Simetricamente, se o Estado renunciar à seiva da economia social, como elemento decisivo do seu enraizamento virtuoso na sociedade, corre o risco de ficar reduzido a uma máquina administrativa ressequida, cada vez mais crispada em face da sociedade e cada vez mais carecida da legitimidade de que necessita para ser democraticamente durável.

2. Desde a sua primeira versão de 1976 que a Constituição da República Portuguesa trata autonomamente incluindo-as num único setor entidades que mais tardes viriam a ser englobadas pela noção de economia social. Essa autonomia estrutura-se com base na propriedade dos meios de produção que é o critério de diferenciação dos setores. O setor em causa afirmou-se assim com autonomia em face quer do setor público quer do setor privado, tendo abrangido de início apenas as cooperativas e sendo por isso designado como setor cooperativo.
Com a revisão constitucional de 1989, passou a ser denominado setor cooperativo e social, uma vez que lhe foram acrescentadas duas novas componentes, antes integradas no setor público não estatal, a componente comunitária e a autogestionária. Na revisão constitucional de 1997, sem ter sido alterada a sua designação, o setor cooperativo e social passou a incluir um novo subsetor, o solidário. Assim, o setor cooperativo e social é atualmente composto por duas vertentes, uma cooperativa e outra social, sendo esta última complexa, uma vez que abrange os subsetores comunitário, autogestionário e solidário.
Os contornos da economia social foram-se estabilizando no plano teórico e doutrinal, por força da dinâmica congregadora dos vários tipos de entidades da economia social, tendo essa sedimentação concetual tido como pano de fundo relevante a própria CRP. Foi assim natural que, dentro desses contornos, coubesse todo o setor cooperativo e social. Em contrapartida, a parte da economia social não abrangida pelo setor cooperativo e social é relativamente residual. Por isso, se pode dizer que a economia social tem um lugar próprio na Constituição. Um lugar que pode ser formalmente apenas implícito, mas que nem por isso deixa de ser substancialmente bem real.

3. Deve ter-se em atenção que a noção de economia social, como expressão da sua reemergência nas décadas finais do século XX, não foi predominantemente o resultado de uma construção teórica e doutrinária, oriunda de um conjunto de ideias fundadoras ou de uma visão do mundo preexistente. Pelo contrário, ela radicou-se essencialmente na conjugação de diversos tipos de entidades dirigida à exploração prática das suas sinergias.
É certo que a vida dessas entidades foi incorporando com densidade crescente uma reflexão teórica e doutrinal que a repercutia e reforçava, mas esteve sempre no cerne do processo de afirmação e amadurecimento da economia social. Foi, aliás, a consagração no plano político do valor das práticas sociais dessas entidades e da sua conjugação que foi suscitando sucessivas respostas jurídicas e políticas.
 Por isso, a economia social não é nem uma fortaleza conceitual a que a realidade social se tenha que submeter, nem um recipiente neutro e inerte, onde se podem colocar sem critério quaisquer entidades económico-sociais. É um conjunto de entidades socioeconómicas que ao viverem afinaram a compreensão das razões que as levaram a juntar-se num espaço sociopolítico comum. E, ao afinarem essa compreensão, aperfeiçoam o conhecimento das características que partilham e dão força a uma identidade própria. E é a imagem de conjunto que essas entidades projetam que delimita o espaço da economia social. O Estado pode e deve garantir que esse espaço se mantenha fiel a si próprio, pode mesmo encorajar a sua expansão quando ela se paute inequivocamente pela sua lógica. Não pode constrangê-lo ou alterá-lo ao sabor de razões que lhe sejam exteriores.
A economia social não pode ser, por isso, encarada como uma espécie de território autónomo que apenas se conexionasse com a sociedade no seu todo através de pontes fixas e rígidas. Ela está dentro da sociedade, é um dos processos sociais parcelares geradores do processo social global.

4. É a própria natureza da economia social que induz um modo de inserção na sociedade que implica intensa interação com o Estado. E esta interação é decisiva na dinâmica dessa inserção; e, quanto mais o for, maior será o potencial reformista da economia social, mais forte será a sua energia transformadora. Mas esta interação entre a economia social e o Estado, a cujo potencial de transformação qualitativa da sociedade damos relevo, não se oferece aos seus protagonistas com uma objetividade unívoca que imponha a sua partilha por todos, não é encarada da mesma maneira por todos. Pelo contrário, é necessariamente condicionada pelas várias ideologias e visões do mundo, o que a torna suscetível de múltiplas leituras e de ser integrada em diversas narrativas.
Em regra, todas essas leituras giram em torno de duas grandes linhas de força, convivendo com naturalidade entre si, completando-se numa emulação interativa, que as leva a não se repelirem uma à outra, nem a mutuamente se diluírem.
Para uma dessas linhas de força, a economia social é uma dinâmica socio-organizativa que funciona nas sociedades atuais, principalmente, como um dispositivo compensatório dirigido a minorar os sofrimentos das pessoas e a atenuar os efeitos de outras externalidades negativas, geradas pelo sistema vigente, o capitalismo. Visa um equilíbrio tão humanizante quanto possível das sociedades atuais, mas não põe em causa a sua natureza, aceitando implicitamente contribuir indiretamente para sua perenidade ou sendo-lhe indiferente que isso aconteça. Preocupa-se em atenuar os malefícios da sociedade tal como ela existe, mas não inscreve a sua transformação qualitativa entre as suas preocupações.
Para a outra grande linha de força, a economia social, além desse mesmo tipo de resposta  no imediato a problemas concretos, incorpora uma ambição transformadora da sociedade que aponta para um pós-capitalismo. Embora ciente da sua subalternidade num contexto capitalista, resiste-lhe impregnando-se de uma vontade de mudança qualitativa do tipo de sociedade em que vivemos. Ciente de que as sociedades, como contextos de vida, só sobrevivem historicamente na medida em que passarem pelas metamorfoses de que necessitam para evoluírem qualitativamente, a economia social assume-se como parte de uma metamorfose que nos permita um futuro consentâneo com os seus valores.
Estes dois grandes tipos de perspetivas impregnam, com intensidades diversas e instáveis, a vida das várias constelações constitutivas da grande galáxia da economia social. Afirmam-se dentro das organizações, umas vezes em complementaridade, outras vezes em concorrência. A primeira tem a vantagem de, ao privilegiar resultados de curto prazo, induzir maior proximidade, tendendo a tornar mais percetível o seu valor social. A segunda tem a vantagem de abranger todo o espaço ocupado pela primeira, acrescentando-lhe ainda uma explícita projeção qualitativa no futuro.
Mas agir no âmbito da economia social em consonância com qualquer dessas duas grandes linhas de orientação, por si só, não traz qualquer perturbação à ação dos protagonistas que sigam a outra. Quanto maior for a energia da alternatividade sistémica, maior tenderá a ser a pujança dos efeitos das ações de proximidade; quanto maior for esta pujança, mais robusto tenderá a ser o potencial de alternatividade. Por isso, os protagonistas que se revejam em qualquer das narrativas podem cooperar utilmente entre si, sem equívocos nem reservas mentais.
As narrativas correspondentes às duas grandes linhas de orientação quanto á economia social que acima referimos, são multifacetadas e complexas, estando ainda em larga medida em construção. Se quisermos encontrar-lhes consonâncias predominantes, poderemos dizer que a primeira se harmoniza melhor com a doutrina social cristã e a segunda se pode incorporar melhor na doutrina socialista encarada globalmente. Nesta medida, a economia social pode vir também a ser um espaço fecundo de cooperação, emulação e diálogo, entre os protagonistas dessas duas posições ideológicas e doutrinárias.

5. Só tendo em conta todo este contexto se pode compreender o alcance da LBES. Uma lei que é um espaço jurídico que exprime e consagra a convergência de vários processos sociais correspondentes a outros tantos tipos de organizações, significando o reconhecimento e encorajamento jurídico-político dessa convergência. Um reconhecimento inscrito harmonicamente no projeto de sociedade plasmado na nossa Constituição, que é também um sinal de amadurecimento e um elemento propulsor de um processo social em expansão.
A LBES não é, por isso, um simples artefacto jurídico, encerrado em si próprio, que possa ser manipulado impunemente, ao sabor das circunstâncias ou das conveniências de terceiros, por um qualquer impulso tecnocrático-jurídico. De facto, se for resolvido alterá-la, de modo nenhum se podem ignorar nem os processos sociais que a geraram, nem a sua ancoragem constitucional, nem os efeitos que projeta nos espaços jurídicos comuns que abrange.
Mas esta complexidade, sempre a ter em conta, não pode confundir-se com uma cristalização jurídica que iniba a mudança. É certo que à LBES deve ser reconhecido um precioso papel como garante da autenticidade, da integridade da economia social, bem como da sua não discriminação negativa e da sua não banalização. Essas virtudes têm que ser mantidas e até apuradas, devendo quaisquer modificações configurar uma mudança socialmente enraizada e juridicamente rigorosa.
Neste contexto, talvez seja tempo de se ponderar a possibilidade de promover uma alteração bem calibrada da LBES. Uma alteração naturalmente fiel ao essencial da sua lógica e da sua estrutura normativa, que responda por completo aos novos desafios que se lhe coloquem, que corrija as eventuais falhas ou incompletudes da lei atual e que procure manter a consensualidade que a tem envolvido.

6. Dentro destes parâmetros gerais, será bom que as possíveis alterações da LBES se venham a pautar por algumas grandes linhas de orientação.
Em primeiro lugar, melhorar o seu potencial de repercussão virtuosa nas leis comuns que regem as entidades que abrange, ao mesmo tempo que deve refletir melhor as dinâmicas endógenas das constelações que congregam essas entidades, potenciando assim a sua irradiação e reforçando as bases da sua autenticidade.
 Em segundo lugar, aperfeiçoar e aprofundar a sua impregnação pela lógica da CRP, no campo que lhe diz respeito.
 Por último, clarificar e completar as regras por que se regem as relações entre a economia social e o Estado, em todos os seus níveis e aspetos.
A título exemplificativo, podem mencionar-se alguns tópicos de uma possível alteração da LBES que respeite os parâmetros indicados. Quanto à noção de economia social deve ser bem explicitado o que já está implícito na lei atual. Ou seja, a integração no elenco de entidades que constam do seu art.º 4 é o critério básico de pertença à economia social, pelo que nenhuma entidade abrangida pelos tipos de organizações mencionados no referido preceito pode ser, sob qualquer pretexto, excluída da economia social. Isso significa que as características que a lei menciona são apenas  uma síntese descritiva do conjunto em causa, tal como ele já existia antes da LBES, devendo refleti-lo com exatidão e rigor.
 Do mesmo modo, os princípios orientadores, que expressamente constam do artº5, são apenas guias para a ação das entidades em causa, para que ela seja no essencial consentânea com respetivo código genético. E apenas poderão ter um potencial excludente da economia social quanto a entidades que, não integrando nenhum dos tipos mencionados no art.º 4, possam ser admitidas na economia social caso por caso, através de uma decisão administrativa, nos termos fixados pela própria LBES.
O perfil identitário da economia social, gerado pela conjugação dos preceitos da LBES que contribuem para o seu desenho, deve assim manter-se no essencial, mas pode ser clarificado. Nomeadamente, justifica-se um reexame do elenco dos tipos de entidades consagrados como pertencendo à economia social, extirpando-lhe eventuais incompletudes e incongruências. É indispensável afinar o mecanismo de abertura casuística e excecional da economia social, por decisão administrativa, a organizações não incluídas nos tipos acabados de mencionar, para o poder pôr em prática. Pode ser aperfeiçoada a formulação dos princípios orientadores consagrados no art.º6, quer à luz do que nos podem ensinar os princípios cooperativos, tendo em conta a sua densidade histórica e doutrinária, bem como a sua universalidade; quer aprofundando o que neles reflita a lógica da nossa Constituição.
Do mesmo modo, os preceitos que se ocupam das relações entre o Estado e as entidades da economia social devem ser simplificados e clarificados, para serem nítidas as suas mensagens normativas, quanto às obrigações que impendem sobre o Estado e para ser plenamente valorizada a autenticidade da economia social como pressuposto irremovível dessas obrigações. Nesse sentido, há que impregná-los ainda mais pelas diretivas constitucionais, há que dar mais consistência ao princípio da cooperação e despir as mensagens normativas de qualquer ambiguidade.
Do mesmo modo, deve aperfeiçoar-se um dos aspetos das relações entre o Estado e a economia social que a LBES destaca, o fomento. Neste campo, é muito importante um esforço acrescido de clarificação e de aperfeiçoamento, bem como a extirpação de quaisquer ambiguidades. Salientemos o essencial.
Desde logo, indicar com precisão os caminhos institucionais que vão ser seguidos na instituição sistemática do fomento em causa, bem como os objetivos substanciais que através deles se procuram.
Depois, instituir com sistematicidade e rigor uma política de remoção dos obstáculos que são levantados à economia social e de proscrição de quaisquer novas agressões, sejam elas grosseiramente evidentes, sejam elas subtilmente dissimuladas. E essa remoção e essa proscrição devem estar bem presentes quer no plano jurídico (em especial na produção legislativa), quer nos atos administrativos, quer nas políticas públicas. Especialmente urgente é, aliás, a remoção de algumas incongruências sistémicas que, para além de discutíveis em si próprias, introduzem no conjunto do universo jurídico da economia social uma enorme vulnerabilidade. Dois exemplos são especialmente graves: os aleijões anticonstitucionais que marcam indelevelmente a mais recente versão do Código Cooperativo, projetando no futuro do setor riscos imprudentemente ignorados; e a invenção arbitrária de uma noção jurídica de empresa social, introduzida no sistema jurídico português, sub-repticiamente e de surpresa, através da regulação jurídica da contratação pública, como se a economia social não existisse.
Em terceiro lugar, dever-se-á dar consistência e sistematicidade ao envolvimento da educação pública no fomento da economia social, nomeadamente, garantindo nas Universidades linhas de investigação e ensino, expressa e realmente, dedicadas à economia social.
Por último, tornar nítida e dar efeitos práticos à ideia de que o fomento da economia social é um dever do Estado que se projeta em todos os seus níveis, quer nacional, quer regionais e locais.

7. A reforma da LBES projeta-se no horizonte mais próximo como coroamento de um longo processo instituinte de que este Congresso é um episódio decisivo. Processo de raízes múltiplas  aberto ao futuro que só será verdadeiramente  fecundo se refletir uma sinergia entre o Estado e a economia social em prol de uma sociedade livre e justa onde se viva melhor. Por isso, não se pode esquecer que a LBES é no presente uma garantia de irreversibilidade no caminho já  percorrido, aberta ao futuro como contexto amigo da renovação. Portanto, tem de se assumir como um episódio decisivo de uma política pública de empoderamento da economia social, encarada como espaço autónomo mas relevante do projeto constitucional. Ou seja, como um impulso jurídico-político dirigido a valorizar um espaço socioeconómico determinante  para o futuro e para a qualidade de vida do nosso povo.

Na verdade, a economia social não é uma ilha fechada sobre si própria. Pelo contrário, é a espinha dorsal de uma sociedade justa e livre, inscrita no futuro como esperança.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Breve juízo sobre um juiz.



Breve juízo sobre um juiz.

Associo-me ao coro de indignação suscitado pelo facto de um juiz de um Tribunal da Relação ter fundamentado uma decisão sua com algumas alarvidades. Alarvidades das quais transparece uma depreciação genérica das mulheres, colocando-as num patamar inferior ao dos homens. Essa depreciação traduziu-se, no essencial, na ideia de que o adultério praticado por homens era um pecadilho que podia merecer um puxão de orelhas, quiçá cordial, mas o adultério praticado por mulheres justificava, inevitavelmente,  uma feroz carga de pancada.

Que uma ética tão tosca seja apanágio de um juiz, é algo que realmente surpreende pela negativa. Mas, em termos sistémicos, preocupa-me ainda mais que um juiz de um Tribunal da Relação tenha cometido a burrice de tornar público, através de uma sentença, um tal dislate. Burrice pura! E, penso eu, que para a qualidade e para a credibilidade de um sistema judicial, um juiz estúpido é ainda mais perigoso do que um juiz eticamente primitivo.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

RAÍZES ?



Há três grandes vetores implícitos das políticas públicas impostas pela União Europeia a Portugal, como pressupostos para a concessão de apoio, que talvez valha a pena recordar na atual conjuntura.

Primeiro ─ valorização da agricultura empresarial e destruição da pequena agricultura camponesa, subsidiando a atividade da primeira e a inatividade da segunda.

Segundo ─ encorajamento da substituição da atividade  dos serviços públicos por encomendas a entidades privadas dessas atividades.

Terceiro ─ privatização de serviços públicos essenciais, como, por exemplo, as telecomunicações.

Aos membros da União Europeia era dada a pequena liberdade de se moverem no quadro destes e de outros dogmas, esforçadamente inventados por legiões de lobistas que em Bruxelas iam convertendo em  pura ciência económica os prosaicos interesses estratégicos dos seus poderosos clientes. 

À Santa Globalização atribuía-se o poder desse milagre. Um milagre que para muito poucos era paraíso imediato para muitíssimos era um milagre sempre adiado que ainda hoje não lhes chegou.

Os três vetores acima mencionados tiveram consequências: colapso da pequena agricultura, despovoamento e desertificação dos campos, degradação da prestação de serviços públicos essenciais, quebra de confiabilidade nas telecomunicações.

Estes problemas não podem ser esquecidos e não pode ser afastada a hipótese de se reverter  esse tipo de medidas ou de se percorrerem caminhos que nos façam sair da insalubridade das suas consequência.

Se vamos procurar as raízes do que facilitou os dramas humanos e sociais vividos recentemente por causa dos incêndios florestais temos que as buscar até ao fundo, não esquecendo  nenhuma .Embora também o devamos fazer, não podemos limitar-nos a valorizar o que é importante, esquecendo os bloqueios essenciais. Bloqueios ou distorções que são principalmente sistémicos e  só em pequena medida funcionais; bloqueios que as alterações climáticas tendem, cada vez mais, a tingirem das cores negras da tragédia.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

O CHARME INDISCRETO



O CHARME  INDISCRETO  

1.Há vozes de direita trauliteiras e há vozes de direita meigas. Há vozes de direita que vociferam sempre e há vozes de direita que são hábeis nas tocaias, só atacando quando acham oportuno. Há vozes de direita que explodem ao vermelho e há vozes de direita que nunca perdem a calma. Há vozes de direita que atacam sempre e há vozes de direita que só atacam quando nos vêem frágeis. Há vozes de direita que atacam todas as esquerdas e há vozes de direita que atacam a parte das esquerdas que em cada momento lhes convém. Há vozes de direita que não disfarçam a sua acrimónia quanto à esquerda e há vozes de direita que batem nas costas das esquerdas com a subtileza de quem procura o lugar onde um dia cravarão o punhal.
Da direita, seja ela trauliteira ou subtil, não se espere lisura e lealdade no combate político. Da direita, seja ela trovejante ou melíflua, não se espere uma distinção entre as esquerdas, quando as puder ferir seriamente. Para todas as direitas, a esquerda enquanto alvo está sempre unida.

2. Disto as esquerdas nunca se devem esquecer. As suas diferenças, se forem autênticas e não destruírem a casa comum, são uma virtude e uma respiração natural. Repito: se tiverem sempre em conta que são um alvo comum para todas as direitas, sejam elas brutais ou melífluas.
E que nenhuma das esquerdas se esqueça que, por mais mansa que pareça, qualquer direita, pela sua própria natureza, sempre que puder cravará a faca nas costas de qualquer das esquerdas.

3.Muitos de nós podem ainda  lembrar-se de como era, quando a direita autoritária ocupava o poder sem freios, quando havia um poder não democrático em Portugal .
E se nem todas as direitas são iguais, todas cabem numa mesma palavra. Todas têm no seu código genético como desígnios, a conservação da desigualdade, a relativização da liberdade, a subalternização de facto das pessoas às coisas, do trabalho ao capital. Todas vivem com base no pressuposto de que as esquerdas são um empecilho ao paraíso dos privilégios. E só não afastam esse empecilho se não puderem.

4.Em prol do mundo que almejam, o combate político das esquerdas deve ser sempre leal e democrático. Mas isso não significa que possa assentar na ilusão de que a direita adopta uma posição simétrica. A direita política é a formalização dos poderes de facto no tipo de sociedade  em que vivemos. Só encara o futuro para o confiscar, de modo a torná-lo um espelho cada vez mais pobre do presente.
Assim, no mundo em que vivemos a esquerda tem sobre a direita uma superioridade trágica, que está longe de ser evidente, mas que se reforça dia a dia. Na verdade, se a direita através do uso das suas vastas alavancas de poder conseguisse destruir as esquerdas no mundo, reduzindo a nada qualquer resistência ao capitalismo neoliberal, pouco tempo teria para celebrar a sua imaginária vitória. Apenas teria passado a certidão de óbito, não à esquerda, mas à própria civilização humana e no limite à existência da própria espécie humana. No mundo de hoje,  o drama é pungente. E se cada país tem uma história própria, ela  no essencial não difere de todas as outras. Pricipalmente, não está imune a todas as outras.

Por isso, devemos ter sempre presente, em analogia com a célebre metáfora  do leve bater de asas de uma borboleta na China que inundaria o mundo de imensas tempestades, que em política por vezes uma pequena pulhice, mesmo envernizada, pode causar grandes tempestades. Tem um risco para o seu subtil autor: qualquer tempestade leva sempre tudo à sua frente. Sem distinções.