sexta-feira, 29 de abril de 2011

HOMENAGEM CONTRA O RACISMO



Fotografia

- começam as aulas em Litle Rock, (USA), 1957


A menina negra entra na História em silêncio, desarmada.
Na sua cabeça erguida, cabem os escravos negros da América,
Mas também os índios massacrados nas imensas planícies
E os brancos pobres, através de cujos corpos subiram os poderosos.

O seu vestido é quase branco, como a paz que caminha no seu rosto,
Foi tecido pelas lágrimas amargas dos explorados.
E avança desarmada por entre os rostos frios do racismo,
Sem heroísmo mas sem medo, sem ódio mas sem perdão.

A menina negra vai apenas aprender, apenas aprender.
Vai dentro de uma imensa curiosidade com um caderno branco,
Onde irá escrever palavras novas, palavras de aprender.

A menina negra fita docemente o futuro em que confia.
Mas não sabe que meio século depois um outro negro
Seria posto no lugar de Lincoln, sem drama e com glória.

Na cólera dos brancos, friamente, há um ódio de cinza que apodrece,
Um hálito sombrio, crispado, triste, tecendo a sua própria escuridão.

A menina negra entrou em nossa casa, sentou-se à nossa mesa,
E num sorriso apenas garantiu que a vida é estar de pé.


[ Rui Namorado]

quinta-feira, 28 de abril de 2011

DERIVA LIGEIRA A PROPÓSITO DA IGUALDADE e um despropositado requerimento



Eles sabem que nós sabemos que eles sabem que as tretas de alguns notáveis filósofos mansos sobre a igualdade não passam, salvo o devido respeito, de rodriguinhos mentais destinados a embrulhar as vítimas das desigualdades num mar de confusões, que as impeça de ver de que lado está e como funciona a injustiça que as vitimiza.

Posso admirar a inteligência, a subtileza intelectual, a precisão discursiva, a agilidade vocabular de quem se ocupa denodadamente a fazer-nos esquecer que continua a funcionar em pleno a fábrica de desigualdade que é o capitalismo ( Os capitalistas ainda se zangam comigo. Como posso estar sempre a falar de uma coisa que não existe ?). Para isso, eles guiam-nos generosamente através de um labirinto de conceitos e de palavras que escorrem pela realidade como geleia . Escondendo-a, para a deixarem intacta. Ou quase intacta. Ou muito mais intacta do que ficaria se nos falassem, mesmo sem subtileza, das causas das coisas.

Por isso, prefiro a palavra simples da revolução francesa: igualdade. Sem enfeites, sem retoques, sem embustes, sem talvez, sem mas todavia. A palavra nascida nas ruas de sofrimento dos explorados, a palavra regressada em todas as revoluções, a palavra perdida na garganta dos pobres.

É nessa medida que venho respeitosamente requerer a todos os imensos vultos de todas esquerdas, mesmo das que se mostram por vezes excessivamente doces, mesmo das que se mostram por vezes excessivamente loucas; dirigindo-me também a todos os partidos que se consideram de esquerda, sejam eles imoderadamente moderados ou alucinadamente extremistas, para que nunca mais recorram a essa prisão subtil da igualdade, a essa sua esterilização arguta, a essa melíflua negação da luta pela igualdade, que é o sarcófago ideológico habitualmente designado por : " igualdade de oportunidades".

quarta-feira, 27 de abril de 2011

REGRESSO DO TIGRE DE PAPEL ?




Na retórica propapagandística do maoismo chinês dos bons velhos tempos, o imperialismo norte-americano era um tigre de papel. As vicissitudes das últimas décadas desmentiram que nessa época fosse real a fragilidade desse tigre. Duvido mesmo que o actual estado-maior comunista do neo-capitalismo chinês apadrinhe ainda uma tão tonitroante depreciação pública dos USA. Mas talvez, na actualidade algumas das tradicioniais ambições imperiais dos USA estejam lentamente a transformar-se em verdadeiros tigres de papel.



Especialmente sugestivo, a esse propósito, é um texto difundido, recentemente (23 de Abril de 2011), pela revista brasileira CartaCapital. O texto intitula-se, "Oriente Médio: retrato do Império em apuros", sendo seu autor Immanuel Wallerstein, destacado sociólogo norte-americano de reputação mundial, que, aliás, há muito colabora com o CES da Universidade de Coimbra, tendo estado em Portugal, por mais do que uma vez, a participar em iniciativas deste Centro. Aliás, é Doutor honoris causa pela Universidadede Coimbra, através da sua Faculdade de Economia. Eis o texto :



"Nos últimos cinquenta anos, a política dos Estados Unidos no Oriente Médio tem sido construída em torno de relações muito próximas com três países: Israel, Arábia Saudita e Paquistão.



Em 2011, porém, Washington está em desacordo com os três, e de maneira fundamental. Também é público a divergência com Reino Unido, França, Alemanha, Rússia, China e Brasil sobre as políticas na região. Parece que quase ninguém concorda com os Estados Unidos ou segue sua liderança. Pode-se ouvir a frustração agonizante do presidente, do Departamento de Estado, do Pentágono e da CIA – todos veem a situação saindo do seu controle.



O motivo de os Estados Unidos terem criado uma aliança tão forte com Israel é ponto para muito debate. Mas é claro que, por muitos anos, o relacionamento tem ficado cada vez mais sólido, e segue cada vez mais os termos de Israel. O país tem contado com apoio financeiro e militar dos EUA, e a certeza do veto infalível no Conselho de Segurança da ONU.O que ocorreu agora é que tanto as políticas israelenses quanto suas bases de apoio nos EUA têm se movido rapidamente para a direita. Israel aferra-se a duas coisas: o adiamento eterno de negociações sérias com a Palestina e a esperança de que alguém irá bombardear o Irã. Obama tem se movido em direção contrária, ao menos tanto quanto a política interna dos Estados Unidos lhe permite. As tensões são fortes e o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu está rezando – se é que ele reza – para uma vitória dos republicanos na eleição presidencial em 2012.



O desfecho da crise pode, porém, vir antes, quando a Assembleia Geral da ONU votar para reconhecer a Palestina como um Estado-membro. Os Estados Unidos irão se encontrar na posição perdedora de lutar contra isso.A Arábia Saudita manteve um relacionamento confortável com Washington desde que o presidente Franklin Roosevelt encontrou-se com o rei Abdul Aziz em 1943. Juntos, tinham a capacidade de controlar a política de petróleo em todo o mundo. Colaboraram em assuntos militares e os Estados Unidos contaram com a ajuda do aliado próximo para apoiar outros regimes árabes em cheque. Porém, hoje o regime saudita sente-se muito ameaçado pela segunda revolta árabe.



Também ficou totalmente desconcertado com a decisão dos Estados Unidos de reconhecer o destronamento de Mubarak pelo seu exército; e pela crítica de Washington à intervenção saudita no Bahrain, por mais que a crítica tenha sido leve. As prioridades dos dois países são bastante diferentes agora.



Durante a Guerra Fria, quando os Estados Unidos consideravam a Índia próxima demais da União Soviética, o Paquistão obtinha total apoio norte-americano (e da China), qualquer que fosse o seu regime. Os dois países trabalharam conjuntamente para auxiliar os mujahedins no Afeganistão e forçaram a retirada das tropas soviéticas. Eles provavelmente trabalharam juntos para conter o crescimento da al Qaeda.



Duas coisas mudaram. No período pós-Guerra Fria, os Estados Unidos desenvolveram relações mais próximas com a Índia, para a frustração do Paquistão. E o Paquistão e os Estados Unidos encontram-se em extremo desacordo sobre como lidar com a força crescente da al Qaeda e do Talibã no Paquistão e Afeganistão.Um dos principais objetivos da política externa dos EUA, desde o colapso da União Soviética, te sido evitar que os países da Europa Ocidental desenvolvam políticas autônomas.



Mas hoje, os três países principais – Reino Unido, França e Alemanha – estão fazendo isso. Nem a linha dura de George W. Bush, nem a diplomacia suave de Barack Obama parecem ter retardado isso. O fato de a França e o Reino Unido pedirem que os Estados Unidos assumam uma liderança mais ativa na luta contra Kadafi, enquanto Alemanha diz praticamente o oposto é menos importante que os três expressarem essas opiniões muito alto e fortemente.



Rússia, China e Brasil estão usando suas cartas cuidadosamente no que diz respeito às relações com Washington. Os três se opõem às posições dos EUA em quase tudo atualmente. Eles podem não ir até o fim (deixando de usar o veto no Conselho de Segurança) porque os Estados Unidos ainda têm garras que podem usar. Mas eles certamente não estão cooperando. O fiasco da recente viagem de Obama ao Brasil, onde ele pensou que conseguiria obter uma nova abordagem da presidente Dilma Rousseff – mas não conseguiu – mostra quão pouca influência os Estados Unidos têm no presente.



Finalmente, a política interna mudou. A política externa bipartidária caiu na memória histórica. Agora, quando os Estados Unidos entram em guerra, como na Líbia, a opinião pública mostra apenas cerca de 50% de apoio. E políticos dos dois partidos atacam Obama – ou por ser muito belicoso, ou por ser muito pacifista. Estão todos esperando para lançar-se sobre ele, diante de qualquer insucesso grave. O resultado disso pode ser forçá-lo a intensificar o envolvimento dos EUA em todos os lugares e, desse modo, agravar a reação negativa de todos os aliados.



Madeleine Albright chamou os Estados Unidos de “nação indispensável”. O país ainda é o gigante na cena mundial. Mas é um gigante desajeitado, incerto sobre onde e como quer chegar. A medida do declínio dos Estados Unidos é o grau em que os aliados próximos de antes estão prontos para defender seus desejos e manifestar isso publicamente. A medida do declínio dos Estados Unidos é a incapacidade do país em declarar publicamente o que está fazendo, ou a insistência em dizer que tudo está realmente sob controle. Os Estados Unidos efetivamente tiveram que desembolsar uma quantia muito grande de dinheiro para liberar da prisão um simples agente da CIA no Paquistão.A consequência disso tudo? Muito mais anarquia no mundo. Quem vai lucrar com isso tudo? No momento, é uma questão que está em aberto.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

25 DE ABRIL - a invenção da liberdade



Estão cansados os sonhos neste Abril

e os cravos da aventura estão fechados

em arcas de silêncio, números, treva




As ruas não se acendem de manhã

para que passe o lume dos desejos

nos lábios sem temor da liberdade




As pétalas de luz do que sentimos

repousam constrangidas e discretas

no duvidoso leito dos segredos




Arautos de outros mundos desmedidos

cansados do cansaço e da tristeza

convoquemos Abril abertamente




Nós queremos ser a vela desse vento

um mês dos anos todos reunidos

um gesto de inventar a liberdade


domingo, 24 de abril de 2011

O POETA E O SÁBIO ou a tragédia da modernidade




O grande poeta espanhol António Machado escreveu um dia:



Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,

se hace camino al andar.

Al andar se hace camino,

y al volver la vista atrás

se ve la senda que nunca

se ha de volver a pisar.

Caminante, no hay camino,

sino estelas en la mar.


E, no entanto, o velho sábio chinês do nosso pensamento, olhando além do horizonte imenso da Ásia , talvez um dia tenha perguntado:
Se não souberes para onde vais, como poderás escolher o teu caminho?

Entre o poeta e o sábio, sentimos a tragédia da modernidade. Se caminhamos levados pela vertigem dos nossos próprios passos, pelo impulso da nossa própria esperança, corremos o risco de nos extraviarmos no limbo das ilusões. Se passamos tempo demais à procura do caminho justo, podemos nem chegar a caminhar.


Talvez, por isso, António Machado acercou-se de mim com um sorriso triste, tirou o chapéu num gesto contido e disse-me:
No meu peito há um navio que inventou o próprio mar.

Em resposta, o velho sábio chinês do nosso pensamento, olhou com serenidade através da planície e perguntou-me:
Se te perderes na dispersão dos horizontes, quem te encontrará?


Talvez, sem nós o sabermos, por completo, entre o generoso coração das tempestades e a fria paciência das caravanas, as nossas mãos tremam de hesitação.

sábado, 23 de abril de 2011

NOVIDADE - a chegada do capitalismo mafioso.



1.Assisti hoje a um programa telivisivo oriundo dos USA, onde se mostrava detalhadamente, com testemunhos directos de intervenientes e de vítimas, como foram executados milhares de despejos de compradores de casas insolventes, com base em fasificações de assinaturas de que beneficiaram diversos bancos, dos quais pelo menos um grande banco europeu. É uma gigantesca fraude que acentua muito as tintas mais negras das vigarices que despoletaram esta crise.


2. A imprensa grega noticiou a abertura de uma investigação para apurar o mistério de um banco internacional que desencadeou manobras especulativas assentes num futuro resgate da dívida grega. Não é pois um falhanço grego que está no horizonte como provável, mas um miserável assalto aos gregos perpretado pelos criminosos de colarinho branco, que parecem ter ao seu serviço as instituições financeiras internacionais que, em vez de desempenharem um papel regulador, parecem limitar-se a incentivar as trasnferências de dinheiro do bolso de cidadãos honestos para os cofres de banqueiros corruptos.


3. É a passagem para uma nova fase do capitalismo que os manuais universitários ainda não incluem:a passagem do capitalismo financeiro para o capitalismo mafioso. Por isso, mais apropriado do que mascarar de missões técnicas os garrotes tecnocráticos que assombram os Estados escolhidos como vítimas, seria mandar as polícias para as instituições que alimentam a crise.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

MANIFESTO DOS 74

Com a devida vénia, permito-me transcrever do blog "Entre as Brumas da Memória", o texto que abaixo podem ler, cujos subscritores nasceram depois do 25 de Abril de 1974. Não reproduzo os títulos que constam do blog por não ter a certeza se fazem parte do texto original.

Podendo não me rever em todas as formulações adoptadas, identifico-me no essencial com o sentido do texto, especialmente na recusa nítida do tipo de sociedade actual. Talvez não partilhe a escolha do caminho para sair dela por que muitos ou alguns dos seus subscritores optaram, mas partilho por completo a recusa do capitalismo como fim da história que está implícita neste Manifesto.


O facto de algumas dezenas de jovens nascidos depois de Abril se congregarem da maneira que o fizeram, reflectindo já uma biografia cívica, cultural e profissional consistente, é, em si mesmo, um fruto de Abril. Saibam as esquerdas institucionais valorizar esta energia como irrecusável interlocutora e talvez muitas coisas venham a ser menos difíceis.


A última frase tem uma forte energia prospectiva : " Se nos roubarem Abril dar-vos-emos Maio!". Mas quem vos poderá roubar Abril ? O que será decisivo quanto a isso: a deriva ou tergiversação de agentes políticos individualmente considerados, ou a inércia inevitável do capitalismo, enquanto subsistir ? A quem tencionam dar Maio ? O Maio sonhado será revivalista ou novo ? Onde funcionará o tempo novo ? Apenas em Portugal ? Se não tiverem todas as respostas, não serão os únicos . Quem as tem ? Mas não há pergunta que possa ser esquecida .


Por mim, permito-me, no entanto, olhar para o futuro de uma maneira levemente distinta: Se não chegarmos a Maio num tempo histórico que possamos ter como horizonte, a subsistência de Abril será cada vez mais difícil. Maio não é por isso uma eventualidade, mas uma necessidade absoluta. Sem ele, Abril pode não ser mais do que um sonho, mais ou menos forte, mais ou menos prolongado. Mas o facto de ser imprescindível não torna mais fácil escolher os caminhos que permitam que se chegue até ele , nem torna fácil percorrê-los.


Seja como for, é muito mais ineressante e estimulante discutir Maios, do que discutir culpas por sombrios Novembros.



Eis, finalmente, o texto do manifesto e a lista dos subscritores:



"Somos cidadãos e cidadãs nascidos depois do 25 de Abril de 1974. Crescemos com a consciência de que as conquistas democráticas e os mais básicos direitos de cidadania são filhos directos desse momento histórico. Soubemos resistir ao derrotismo cínico, mesmo quando os factos pareciam querer lutar contra nós: quando o então primeiro-ministro Cavaco Silva recusava uma pensão ao capitão de Abril, Salgueiro Maia, e a concedia a torturadores da PIDE/DGS; quando um governo decidia comemorar Abril como uma «evolução», colocando o «R» no caixote de lixo da História; quando víamos figuras políticas e militares tomar a revolução do 25 de Abril como um património seu. Soubemos permanecer alinhados com a sabedoria da esperança, porque sem ela a democracia não tem alma nem futuro.
O momento crítico que o país atravessa tem vindo a ser aproveitado para promover uma erosão preocupante da herança material e simbólica construída em torno do 25 de Abril. Não o afirmamos por saudosismo bacoco ou por populismo de circunstância. Se não é de agora o ataque a algumas conquistas que fizeram de nós um país mais justo, mais livre e menos desigual, a ofensiva que se prepara – com a cobertura do Fundo Monetário Internacional e a acção diligente do «grande centro» ideológico – pode significar um retrocesso sério, inédito e porventura irreversível. Entendemos, por isso, que é altura de erguermos a nossa voz. Amanhã pode ser tarde.
O primeiro eixo dessa ofensiva ocorre no campo do trabalho. A regressão dos direitos laborais tem caminhado a par com uma crescente precarização que invade todos os planos da vida: o emprego e o rendimento são incertos, tal como incerto se torna o local onde se reside, a possibilidade de constituir família, o futuro profissional. Como o sabem todos aqueles e aquelas que experienciam esta situação, a precariedade não rima com liberdade. Esta só existe se estiverem garantidas perspectivas mínimas de segurança laboral, um rendimento adequado, habitação condigna e a possibilidade de se acederem a dispositivos culturais e educativos. O desemprego, os falsos recibos verdes, o uso continuado e abusivo de contratos a prazo e as empresas de trabalho temporário são hoje as faces deste tempo em que o trabalho sem direitos se tornou a norma. Recentes declarações de agentes políticos e económicos já mostraram que a redução dos direitos e a retracção salarial é a rota pretendida. Em sentido inverso, estamos dispostos a lutar por um novo pacto social que trave este regresso a vínculos laborais típicos do século XIX.
O segundo eixo dessa ofensiva centra-se no enfraquecimento e desmantelamento do Estado social. A saúde e a educação são as duas grandes fatias do bolo público que o apetite privado busca capturar. Infelizmente, algum caminho já foi trilhado, ainda que na penumbra. Sabemos que não há igualdade de oportunidades sem uma rede pública estruturada e acessível de saúde e educação. Estamos convencidos de que não há democracia sem igualdade de oportunidades. Preocupa-nos, por isso, o desinvestimento no SNS, a inexistência de uma rede de creches acessível, os problemas que enfrenta a escola pública e as desistências de frequência do ensino superior por motivos económicos. Num país com fortes bolsas de pobreza e com endémicas desigualdades, corroer direitos sociais constitucionalmente consagrados é perverter a nossa coluna vertebral democrática, e o caldo perfeito para o populismo xenófobo. Com isso, não podemos pactuar. No nosso ponto de vista, esta é a linha de fronteira que separa uma sociedade preocupada com o equilíbrio e a justiça e uma sociedade baseada numa diferença substantiva entre as elites e a restante população.
Por fim, o terceiro e mais inquietante eixo desta ofensiva anti-Abril assenta na imposição de uma ideia de inevitabilidade que transforma a política mais numa ratificação de escolhas já feitas do que numa disputa real em torno de projectos diferenciados. Este discurso ganhou terreno nos últimos tempos, acentuou-se bastante nas últimas semanas e tenderá a piorar com a transformação do país num protectorado do FMI. Um novo vocabulário instala-se, transformando em «credores» aqueles que lucram com a dívida, em «resgate financeiro» a imposição ainda mais acentuada de políticas de austeridade e em «consenso alargado» a vontade de ditar a priori as soluções governativas. Esta maquilhagem da língua ocupa de tal forma o terreno mediático que a própria capacidade de pensar e enunciar alternativas se encontra ofuscada. Por isso dizemos: queremos contribuir para melhorar o país, mas recusamos ser parte de uma engrenagem de destruição de direitos e de erosão da esperança. Se nos roubarem Abril, dar-vos-emos Maio!"


***
Alexandre de Sousa Carvalho – Relações Internacionais, investigador; Alexandre Isaac – antropólogo, dirigente associativo; Alfredo Campos – sociólogo, bolseiro de investigação; Ana Fernandes Ngom – animadora sociocultural; André Avelãs – artista; André Rosado Janeco – bolseiro de doutoramento; António Cambreiro – estudante; Artur Moniz Carreiro – desempregado; Bruno Cabral – realizador; Bruno Rocha – administrativo; Bruno Sena Martins – antropólogo; Carla Silva – médica, sindicalista; Catarina F. Rocha – estudante; Catarina Fernandes – animadora sociocultural, estagiária; Catarina Guerreiro – estudante; Catarina Lobo – estudante; Celina da Piedade – música; Chullage - sociólogo, músico; Cláudia Diogo – livreira; Cláudia Fernandes – desempregada; Cristina Andrade – psicóloga; Daniel Sousa – guitarrista, professor; Duarte Nuno - analista de sistemas; Ester Cortegano – tradutora; Fernando Ramalho – músico; Francisca Bagulho – produtora cultural; Francisco Costa – linguista; Gui Castro Felga – arquitecta; Helena Romão – música, musicóloga; Joana Albuquerque – estudante; Joana Ferreira – lojista; João Labrincha – Relações Internacionais, desempregado; Joana Manuel – actriz; João Pacheco – jornalista; João Ricardo Vasconcelos – politólogo, gestor de projectos; João Rodrigues – economista; José Luís Peixoto – escritor; José Neves – historiador, professor universitário; José Reis Santos – historiador; Lídia Fernandes – desempregada; Lúcia Marques – curadora, crítica de arte; Luís Bernardo – estudante de doutoramento; Maria Veloso – técnica administrativa; Mariana Avelãs – tradutora; Mariana Canotilho – assistente universitária; Mariana Vieira – estudante de doutoramento; Marta Lança – jornalista, editora; Marta Rebelo – jurista, assistente universitária; Miguel Cardina – historiador; Miguel Simplício David – engenheiro civil; Nuno Duarte (Jel) – artista; Nuno Leal – estudante; Nuno Teles – economista; Paula Carvalho – aprendiz de costureira; Paula Gil – Relações Internacionais, estagiária; Pedro Miguel Santos – jornalista; Ricardo Araújo Pereira – humorista; Ricardo Lopes Lindim Ramos – engenheiro civil; Ricardo Noronha – historiador; Ricardo Sequeiros Coelho – bolseiro de investigação; Rita Correia – artesã; Rita Silva – animadora; Salomé Coelho – investigadora em Estudos Feministas, dirigente associativa; Sara Figueiredo Costa – jornalista; Sara Vidal – música; Sérgio Castro – engenheiro informático; Sérgio Pereira – militar; Tiago Augusto Baptista – médico, sindicalista; Tiago Brandão Rodrigues – bioquímico; Tiago Gillot – engenheiro agrónomo, encarregado de armazém; Tiago Ivo Cruz – programador cultural; Tiago Mota Saraiva – arquitecto; Tiago Ribeiro – sociólogo; Úrsula Martins – estudante

terça-feira, 19 de abril de 2011

EMPREGO E COESÃO SOCIAL




Foi recentemente divulgado na comunicação social um Manifesto Político, de que fui um dos subscritores, intitulado "Convergência nacional em torno do emprego e da coesão social" [http://www.peticaopublica.com/?pi=P2011N9023]. Eis o texto, seguido dos nomes dos subscritores então divulgados:



" Num momento dramático como o que vivemos, a sociedade portuguesa precisa de debate e de convergências democráticas. Precisa também de reconhecer que a crise do liberalismo económico, de que a acção dos programas patrocinados pelo FMI tem sido uma expressão, obriga a reavaliar opiniões e prioridades e a construir soluções novas, assentes em ideias e escolhas claras e num programa explícito, sabendo que na democracia nunca há a inevitabilidade de uma escolha única, porque a democracia procura as melhores soluções da forma mais exigente.


É indiscutível que o estado das finanças públicas, que é em grande medida o resultado da profunda crise económica, exige um conhecimento e avaliação exigentes de todos os compromissos públicos. E que se torna urgente identificar a despesa pública desnecessária, supérflua e geradora de injustiças sociais, distinguindo-a da que é indispensável, colmata problemas sociais graves e qualifica o país.É também útil que se reconheça a importância do trabalho, dos salários e dos apoios sociais na sociedade portuguesa, se admita a presença de carências profundas, sob a forma de pobreza e de desigualdades crescentes, e se considere que os progressos alcançados na nossa sociedade são o resultado da presença de mecanismos de negociação colectiva e de solidariedade cujo desmantelamento pode significar uma regressão socioeconómica que debilitará o país por muito tempo.


Qualquer solução para os nossos problemas tem de partir de uma constatação realista: até agora as intervenções externas foram a expressão de uma União Europeia incapaz de perceber que a alternativa à solidariedade, traduzida em cooperação económica e integração sem condicionalidade recessiva, é o enfraquecimento das periferias sob pressão da especulação e de cúmplices agências de notação. A zona euro paga o preço de não ter mecanismos decentes para travar a especulação em torno da dívida soberana e para promover políticas de investimento produtivo que permitam superar a crise. As periferias pagam o preço da sua desunião política, única forma de colocar o centro europeu, principal responsável por este arranjo, perante as suas responsabilidades.


No momento em que se vão iniciar negociações entre o Governo e a troika FMI-BCE-CE, sabe-se que a austeridade provoca recessão económica e gera fracturas profundas, de que o desemprego elevado é a melhor expressão. As experiências grega e irlandesa exigem uma revisão das condições associadas aos mecanismos de financiamento em vigor. De facto, devido à austeridade intensa dos últimos dois anos, a economia irlandesa contraiu-se mais de 11% e a recessão grega atingiu 6,5% só entre o último trimestre de 2009 e o último de 2010. O desemprego ultrapassa já os 13% nestes dois países. A este ritmo, e apesar dos cortes orçamentais intensos, nenhum deles conseguirá reduzir a sua dívida. Isso só acontecerá com crescimento económico e com uma noção clara de que não é nos salários e no trabalho, mas antes na escassa inovação e na fraqueza organizacional de grande parte das empresas portuguesas, que residem os problemas de competitividade. Portugal não pode ser um laboratório para repetir as mesmas experiências fracassadas, e corremos o risco de uma recessão ainda mais prolongada, se tomarmos em consideração as previsões do próprio FMI.

Por tudo isto, considera-se necessário um apelo a um compromisso sob a forma de um programa de salvaguarda da coesão social em Portugal, de manutenção e reforço das capacidades produtivas do país para gerar emprego, com atenção às pessoas, evitando sacrifícios desnecessários. Os pontos essenciais de tal compromisso são os seguintes:


1. Garantir que em todas as decisões económicas e financeiras se coloca o objectivo de promoção exigente do crescimento e do emprego, reconhecendo que a sociedade portuguesa não comporta níveis de desemprego que outras sociedades registam, dada a fragilidade da estrutura de rendimentos e a insuficiência dos mecanismos de protecção social. A presença, já sugerida, da OIT nas negociações entre o Governo e a troika FMI-BCE-CE seria um sinal construtivo muito importante, colocando a questão do trabalho digno.
2. Desencadear um escrutínio rigoroso da despesa pública, auditando a dívida do país, sobretudo a externa, identificando com rigor as necessidades reais e os desperdícios da administração pública e salientando a necessidade de concentrar os recursos na esfera essencial das políticas públicas que combatem a exclusão social e a desigualdade, qualificam as pessoas e promovem a actividade produtiva, a competitividade e o crescimento da economia.
3. Afirmar que a educação, a saúde e a segurança social, bem como outros bens públicos essenciais como os correios, não podem ser objecto de privatização, fazendo da lógica lucrativa um mecanismo de regulação nestes domínios, visto que tal solução seria cara e insustentável financeiramente, levaria à exclusão de muitos e generalizaria injustiças sociais e regionais.
4. Recusar qualquer diminuição do papel do Estado no sector financeiro, sublinhando que a Caixa Geral de Depósitos deve permanecer integralmente pública e com uma missão renovada e que a regulação do sector terá mesmo de ser reforçada para evitar novos abusos.
Os signatários entendem que um compromisso deste tipo viabiliza as acções necessárias ao momento presente, capacita a sociedade para enfrentar positivamente as dificuldades e tem como objectivo tornar claro que, em circunstâncias graves, há direitos associados à dignidade do trabalho, ao respeito pelas pessoas e à garantia da coesão social que não podem ser postos em causa, sob pena de fragilizar gravemente o país e de eliminar qualquer capacidade própria de superar a situação dramática em que nos encontramos"
[16 de Abril de 2011].


Albano da Silva Pereira, Fotógrafo, Director do Centro de Artes Visuais de Coimbra; Alexandre Alves Costa, Arquitecto; Anália Torres, Socióloga, Professora do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa; António Arnaut, Advogado; António Chora, Coordenador da Comissão de Trabalhadores da Autoeuropa; António Manuel Hespanha, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa; António Pinho Vargas, Compositor; António Romão, Economista, Professor do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa; Augusto M. Seabra, Crítico de cinema, literatura e música; Boaventura de Sousa Santos, Sociólogo, Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; Carlos Fortuna, Sociólogo, Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; Cristina Andrade, Activista do FERVE – Fartos/as d’Estes Recibos Verdes; Daniel Oliveira, Jornalista; Eduardo Paz Ferreira, Advogado, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Elísio Estanque, Sociólogo, Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; Eugénio Fonseca, Presidente da Caritas Portuguesa; Fernanda Rollo, Historiadora, Professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; Fernando Catroga, Historiador, Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra; Fernando Roque de Oliveira, Economista, Presidente do Observatório sobre a Produção, o Comércio e a Proliferação de Armas Ligeiras; Helena Roseta, Arquitecta; Isabel Allegro, Professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; João Abel Freitas, Economista; João Cravinho, Militante socialista; João Ferrão, Geógrafo, Investigador do Instituto de Ciência Sociais da Universidade de Lisboa; João Ferreira de Almeida, Sociólogo, Professor do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa; João Ferreira do Amaral, Economista, Professor do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa; João Proença, Sindicalista; João de Deus, Sindicalista; João Rodrigues, Economista, Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; Jorge Vala, Psicólogo Social, Investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa; José de Faria Costa, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; José Luís Pio Abreu, Médico Psiquiatra; José Maria Brandão de Brito, Economista, Professor do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa; José Maria Castro Caldas, Economista, Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; José Reis, Economista, Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; Luís Moita, Professor da Universidade Autónoma de Lisboa; Manuel Alegre, Escritor, militante socialista; Manuel Carlos Silva, Sociólogo, Professor da Universidade do Minho; Manuel Carvalho da Silva, Sindicalista; Manuela Silva, Economista, Professora do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa; Manuel Brandão Alves, Economista, Professor do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa; Maria Eduarda Gonçalves, Jurista, Professora do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa; Mário Murteira, Economista, Professor do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa; Mário Ruivo, Biólogo, Oceanógrafo; Miguel Henriques, Músico; Octávio Teixeira, Economista; Paula Gil, Activista da Geração à Rasca; Paulo Areosa Feio, Geógrafo, IGOT – Universidade de Lisboa; Pedro Hespanha, Sociólogo, Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; Ricardo Paes Mamede, Economista, Professor do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa; Rui Namorado, Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra; Rui Tavares, Historiador e Eurodeputado; Sandra Monteiro, Directora do Le Monde diplomatique – edição portuguesa; Sandro Mendonça, Economista, Professor do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa; Sérgio Azevedo, Compositor; Tiago Gillot, Activista dos Precários Inflexíveis; Vasco Lourenço, Associação 25 de Abril.

domingo, 17 de abril de 2011

17 DE ABRIL DE 1969


O tempo vai tingindo com os tons sépia da saudade a memória daquele dia. Alguém foi mandatado para se levantar e levantou-se. Com ele se levantaram nos meses seguintes milhares de estudantes de Coimbra, fiéis a si próprios e às coisas limpas da vida.

Pedindo-se pouco, queria-se tudo. Mas a generosidade juvenil desses milhares, que arriscaram tanto, não estava fechada nas legítimas ambições de cada um. Queria-se tudo para o povo português, que apenas se olhava como um irmão de outros povos.

A palavra dos estudantes que o Presidente da Associação Académica de Coimbra pediu que fosse ouvida naquele dia era principalmente a voz da nossa liberdade recusada, indisponível para mais silêncio. A Universidade Nova que tão claramente foi exigida naqueles meses não era um Olimpo onde quiséssemos ser tratados como deuses. Era um sinal desejado de um país novo, realmente livre e justo.

A implacável censura do fascismo salazarista escondeu e distorceu repetidamente o que se estava a passar então em Coimbra. Num tempo sem a tecnologia de comunicação hoje existente, apenas os irredutíveis canais da comunicação pessoal directa ficavam ao nosso alcance. Mesmo assim os portugueses foram sabendo o que se passava em Coimbra; a Europa e o mundo também, conquanto mais difusamente.

Nos meses de combate desigual com o aparelho de Estado fascista não faltou a solidariedade de muitos portugueses, entre os quais a de alguns inesquecíveis Professores da nossa Universidade. A Academia de Coimbra foi durante alguns meses o lugar simbólico da resistência e através dela a Universidade de Coimbra eximiu-se à sombra comprometedora de uma excessiva cumplicidade e de uma conotação expressa com o regime salazarista.

Em cada momento de luta os que então estiveram presentes nunca esqueceram que em anos anteriores, em épocas anteriores, outras gerações se haviam erguido como eles num mesmo ímpeto de liberdade e de justiça. Foi também a essa tradição de luta que souberam ser fiéis.

Pela força das coisas, a luta não pareceu vitoriosa. No imediato o governo continuou. Mas não foi esmagada, já que para normalizar a vida universitária o governo foi forçado a extinguir todos os processos disciplinares, administrativos e criminais contra estudantes; a reabrir a AAC com realização de eleições; a nomear um Reitor que tivesse a confiança dos estudantes; a substituir o Ministro da Educação por um outro ostensivamente menos autoritário. Hoje, pode ver-se com clareza que em 1969 em Coimbra foi dado um decisivo empurrão para o fim do fascismo que viria a ocorrer cinco anos depois, também em Abril.

O tempo desliza implacável sobre as memórias, mas não apaga a ideia cada vez mais viva de que, sendo embora a luta universitária de 1969 uma enorme honra no passado de todos os que nela participaram e uma honra irremovível da Academia de Coimbra, está fundamentalmente inscrita no futuro. Compreendermos isto, cada vez melhor, é a homenagem que lhe devemos.

sábado, 16 de abril de 2011

O ESTRANHO CASO DO CANDIDATO NOBRE

O estranho caso do candidato Nobre não é tão estranho como isso. Ele é afinal a ilustração do velho ditado popular de que mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo.


Quem se limite a colher as aparências, verá na entrada de Fernando Nobre numa lista do PSD uma traição. E se fizer uma recolha atenta de declarações anteriores do azougado clínico encontrará amplo material para ilustrar a grande distância que existe entre o que repetidamente disse e o que agora fez. Mas quem conseguir desembaraçar-se da cortina de ilusionismo político de que o candidato se envolve, poderá ver com nitidez que tudo o que rodeia este caso é afinal bem mais simples.


De facto, hoje é evidente qual é o lugar ideológico-político do escudeiro do candidato miguelista ao inexistente trono de Portugal. É o que corresponde à sua opção monárquica e ao seu apoio a Durão Barroso e a António Capucho. Os apoios a Mário Soares, ao Bloco de Esquerda e a António Costa não passaram de manobras destinadas a dar uma maior aparência de realidade ao embuste que Fernando Nobre viria a urdir, lançando uma candidatura presidencial que fingiu ser uma componente discreta, moderada e aberta da esquerda, quando afinal era uma auxiliar disfarçada da direita, dirigida, no essencial, a facilitar a vida a Cavaco e a confundir as coisas no seio das esquerdas.


E terá sido o relativo êxito dessa operação de ilusionismo presidencial que terá levado o PSD a tentar explorar o mesmo equívoco. E para dar verosimilhança à ocultação da matriz direitista de Nobre, achou que podia instrumentalizar um alto cargo do Estado democrático para ficcionar a importância de Nobre, ao mesmo tempo que dava a aparência de realidade ao seu alegado supra-partidarismo. Mas como acontece com os ilusionistas que repetem o mesmo truque, as aparência apagaram-se perante a realidade, nesta segunda tentativa, ou nesta tentação de insistir na realidade de uma ficção vinda de trás.


E Nobre foi afinal reduzido à quilo que realmente é : uma personalidade política e ideologicamente de direita que concebeu o embuste de se fazer passar por um candidato presidencial contidamente de esquerda. Embora fosse um verdadeiro seguro político de Cavaco, era sempre apresentado como um dos potenciais causadores de uma ida de Cavaco à segunda volta.


A força das coisas mostra agora que tinham razão todos aqueles que chamaram a atenção para a presença, nas camadas menos aparentes do discurso político de Nobre, de muitas marcas identificadores do conservadorismo ideológico e do reaccionarismo político. De facto, Nobre é um político bem impregnado pelos dogmas e tiques da direita clássica, com uma maquilhagem oportunista de esquerda, propositadamente feita para enganar os eleitores. Por isso, ele não representa nenhuma abertura à esquerda praticada pelo PSD, mas apenas uma tentativa patética de insistir num embuste que deu eleitoralmente algum resultado nas eleições presidenciais.


Tal como aconteceu antes, há quem tente branquear a ostensiva rasteirice desta manobra política que envolve Nobre e Passos Coelho, invocando o currículo humanista do médico sem fronteiras. O mérito e o valor social do seu envolvimento em causas solidárias não está em causa, como o não está o de milhões de pessoas que em todo o mundo se ocupam desse tipo de tarefas. Mas o mundo não está dividido em anjos que seriam esses e demónios que seriam os outros; no mundo, mais prosaicamente, vivem pessoas com virtudes e defeitos, sendo certo que fica longe da excelência ética qualquer tentativa, subtil ou não, para fazer render em termos de prestígio que se usará ( por exemplo, na política ) o trabalho solidário realizado. Ora Nobre só não é um verdadeiro perito nessa utilização, porque vai longe demais na sofreguidão de tornar visível o seu envolvimento em missões solidárias. Não é um hábito decente.


O envolvimento da Presidência da Assembleia da República na tentativa de o PSD prolongar o embuste de Nobre, mostra a completa a ausência de sentido de Estado das personagens que urdiram essa farsa e a fraca qualidade do seu civismo. É aliás irónico e revelador que o seráfico Nobre se tenha envolvido num enredo tão sórdido. A imensa maioria dos políticos inscritos nos partidos, que ele tanto abomina, não teriam estômago para ir tão longe.

terça-feira, 12 de abril de 2011

LISTAS DE DEPUTADOS: uma escolha que é também um sintoma


1. O próximo episódio relevante do processo eleitoral que está a decorrer é a escolha das listas de candidatos a deputados. Nalguns textos, publicados neste blog há uns dias atrás, preconizei um choque de qualidade no conjunto das listas do PS que, por si só, evidenciasse um sobressalto de mudança, rumo a uma revitalização e qualificação da vida política. Seria um sinal objectivamente auspicioso e um sintoma prestigiante de um novo curso na vida do PS.

O Congresso Nacional foi um êxito relativo, como execução apurada de um amplo leque de previsibilidades correntes. Usar até ao máximo a máquina disponível, parece ser a palavra de ordem vigente. Sem tergiversar, sem querer ir mais além , sem sair dos caminhos mais trilhados. Não são bons sinais. Num quadro tão deprimente como aquele que rodeia o país, a impressão de que nos limitamos ao habitual, esquecendo mesmo aquilo que se pode fazer com nítida vantagem e sem custos, é um sintoma negativo e um indício de que estamos dispostos a "quase" tudo para levar por diante o combate às dificuldades. Mas, dentro desse incómodo "quase", agiganta-se com enorme visibilidade a resistência a pôr em causa pequenos poderes, pequenos compadrios, pequenas trocas de favores e pequenas carreiras.

Se forem confirmadas essas nuvens de desânimo, ficará claro que a direcção nacional do PS não irá fazer tudo o que está ao seu alcance para que o PS ganhe as próximas eleições. Esforçar-se-á, certamente, dentro do habitual, mas não irá além dele. Ora, essa fidelidade ao habitual pode parecer um sinal de prudência, mas eu estou convencido que, na dramática volatilidade da conjuntura, pode acabar por ser uma imprudente aventura.

2. Um cenário nacional que não esteja em condições de surpreender positivamente, diminui automaticamente as virtualidades de qualquer excelência que possa existir na lista de um distrito como o de Coimbra. Apesar disso, não me passa pela cabeça defender que, uma vez que no plano global as coisas parecem aprisionadas nas rotinas de sempre, se possa ficar indiferente quanto à identidade dos candidatos do PS em Coimbra, quanto ao perfil e à qualidade dessa lista no seu todo.

Seria também uma ilusão julgar-se que, nesta conjuntura, se pode desconsiderar o imperativo de concorrência com as listas dos outros partidos e com os seus cabeças de lista. Cada partido parte para esta pugna com um bloco de eleitores já adquirido e com um outro mais pequeno de eleitores convencíveis. Provavelmente, no caso do PS, este segundo conjunto será relevante. Captar-lhe o apoio pode fazer a diferença entre um excelente resultado e um desastre. E pode ser o resultado atípico num ou noutro sentido, em face da média nacional, neste distrito que faça com que possamos ganhar ou perder as eleições.

Por isso, não podemos cair na auto-armadilha de desenharmos uma lista a partir de lógicas internas, de rivalidades entre hegemonias intrapartidárias, de prestígios circunscritos à vida do partido, sob pena de chegarmos a um resultado internamente blindado por justificações indiscutíveis, cuja imagem externa é no entanto decepcionante.

Particularmente importante é a escolha do cabeça de lista. Ela vai ser objecto de uma comparação imediata com os outros cabeças de lista. E se o desequilíbrio for grande pode contribuir decisivamente par se perder ou ganhar um deputado. Especialmente relevante é a comparação com as escolhas do PSD e do BE, cujas fronteiras eleitorais com o PS parecem ser, em Coimbra nas actuais circunstâncias, as mais voláteis, conquanto em partes distintas do eleitorado.

Mas não é dispicienda a comparação entre o cabeça de lista que nos couber e os que forem colocados nos distritos a que correspondem as mais importantes Federações do PS. Uma escolha paroquial pode ser desastrosa não só por revelar objectivamente um diminuto potencial de concorrência, mas também por ser um sintoma incontornável de uma descida de Coimbra na escala de importância relativa adoptada pelo PS. Sem contar com o facto de, dado o tipo e a dimensão das clivagens que têm existido na Federação de Coimbra do PS, ser muito importante que o cabeça de lista fosse alguém cujo prestígio nacional e cuja espontânea aceitação dentro do partido conduzissem a uma dinâmica de autêntica unidade que atenuasse ou superasse essas clivagens, pelo menos durante a campanha. Se isso não acontecer, será mau; mas se a escolha não for apenas uma opção fraca, para , mais do que isso, ser em si própria uma acha mais na fogueira das dissidências internas, o caso será ainda mais grave.

E se, a uma escolha menos mobilizadora para o encabeçamento da lista, se seguir uma lista cinzenta, na perspectiva da imagem que publicamente projecte, tudo poderá ficar mais difícil no círculo de Coimbra.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

RECOMENDAÇÃO AO PS

1. Participei no recente XVII Congresso Nacional do PS como delegado por inerência, uma vez que pertenci à Comissão Política Nacional cessante. Consegui falar ainda no sábado a uma hora plenamente aceitável. O objectivo da minha intervenção foi o de apresentar uma recomendação que propunha que o Congresso fizesse aos novos órgãos nacionais.

Numa brevíssima introdução, referi que não fui apoiante de qualquer dos candidatosnem subscritor de qualquer das moções de orientação política geral. Mas estava solidário com a escolha expressiva dos militantes do PS, pelo que estava disponível para contribuir para que José Sócrates fosse o próximo Primeiro-Ministro de Portugal. Sublinhei então que a urgência do curto prazo se impunha por si própria, mas que a actual conjuntura tinha uma particularidade de relevo:o longo prazo entrelaçou-se no presente partilhando a urgência com ele.


2. E é aqui que se radica a lógica da minha Recomendação, que li de seguida:

"Proponho que este Congresso vote a seguinte recomendação dirigida ao Secretário-geral e aos órgãos nacionais nele eleitos:


A importância do PS, como vector essencial da democracia e da construção de uma sociedade justa, é crescente. Embora petrificada em estruturas geradoras de insuportáveis desigualdades, a sociedade tem evoluído vertiginosamente em termos tecnológicos. Mas a identidade histórica do PS implica a ideia de que o capitalismo não é o fim da história. Por isso, não podemos fugir a um imperativo de transformação social, radicada numa democracia exigente, num reformismo autêntico e nos valores do socialismo. É a própria vertigem das mudanças superficiais que torna urgentes as mudanças mais fundas.


E para estar à altura desses desafios o PS tem que ser capaz de provocar a sua própria metamorfose. Uma metamorfose que não o afaste da sua identidade histórica, nem dos seus valores, nem da sua base social e eleitoral, mas que lhe permita interferir em todos os planos do combate político e ser digno de um horizonte socialista.


Para isso, recomenda-se a abertura de um processo de profunda renovação estrutural do Partido Socialista, que culmine num Congresso a ocorrer dentro um ano.


Aí se tomarão todas as medidas necessárias à transformação do PS numa organização que acrescente, àquilo que é hoje, uma nova capacidade para interferir directa e sistematicamente nos movimentos sociais, bem como em todas as instâncias da sociedade que sejam socialmente úteis e prossigam directamente o interesse geral. Sem prejuízo da plena liberdade de decisão das instâncias partidárias que protagonizem esse processo, sugere-se desde já , a título de exemplos, a criação das condições necessárias para que:

1º as escolhas dos candidatos do PS às diversas eleições sejam feitas através de eleições primárias;


2º as regras seguidas nas eleições internas impliquem uma completa equidade no tratamento de todas as candidaturas;


3º sejam encontrados os mecanismos necessários para se tornar estruturalmente impossível a imputação ao PS de qualquer suspeita de promiscuidade entre a política e os negócios;


4º seja criada uma rede nacional de apoio aos movimentos sociais e às organizações sociais e solidárias que, pelo menos, envolva todos os socialistas que participam nessas entidades.


3. Confesso que nem sei se essa recomendação foi votada, embora tenha deixado na mesa do Congresso o respectivo texto. Se foi, não me apercebi disso, nem tive qualquer notícia de que tal tivesse acontecido. E, pelo menos de acordo com as aparências, o Congresso e a direcção do partido ficaram profundamente indiferentes ao conteúdo da Recomendação.


Talvez isso não tenha importância nenhuma, numa altura em que grandes episódios "guerreiros" se aproximam. Como poderiam dizer os mais sensíveis à sabedoria popular: em tempo de guerra não se limpam armas. O problema está no facto de a luta política, do ponto de vista da esquerda democrática, ter vindo a revelar-se cada vez mais exigente. Uma exigência que se repercute naturalmente na necessidade de os partidos políticos que a constituem se dotarem de novos mecanismos de funcionamento interno, de novas estruturas e de novas atitudes, adequadas a uma nova maneira de se enraizarem socialmente, de se intrometerem no tecido social.


O PS parece já ter entrado na voragem das próximas eleições, sem valorizar o facto de se estar mais perto da verdade dizendo-se que elas vão ser uma partida de xadrez complexa e exigente, do que afirmando-se que vão ser semelhantes a uma daquelas antigas rixa de feira em que choviam pauladas. O PS parece pois estar a ser imprudente , ao atravessar um verdadeiro campo minado com a displicência altaneira de quem se limite a fruir o verde fresco dos campos.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

SONDAGENS COMPARADAS

Um olhar rápido para este conjunto de sondagens permite reter algumas constantes. O PSD é sempre o partido mais votado, mas dificilmente chegará sózinho à maioria absoluta. Em compensação, os dois partidos de direita só têm menos votos do que os três partidos de esquerda numa das quatro sondagens.


Mas haver dúvidas quanto a uma possível maioria de direita deve ser para esta uma verdadeira assombração. As oposições de esquerda, poelo seu lado, somadas oscilam entre os 14 e os 16 % de intenções de voto; o PS entre os 30 e os 33%, variando a sua desvantagem relativamente ao PSD entre os 6 e os 9,4%.


A volatilidade da conjuntura económica, o acumular de tensões sociais e o relativo dramatismo da situação política, podem aumentar a margem de incerteza quanto aos resultados eleitorais. Por isso, se o PS for capaz de fugir às rotinas dos interesses instalados e não se deixar encerrar em lógicas acanhadas, estimulando as energias que tem deixado adormecer dentro de si, talvez consiga virar a mesa e reverter o jogo. Se, pelo contrário, viver o período pré-eleitoral como simples acumulação de previsibilidades, arrisca-se a ver cumpridas estas sondagens no dia das eleições.

O SABOR DA INCERTEZA


Um olhar desapaixonado mas atento sobre os resultados das sondagens, saídas durante o último mês, quanto aos possíveis resultados das próximas eleições legislativas em Portugal, mostra um cenário incerto. No quadro dessa incerteza, a hipótese mais provável parece ser a de uma vitória da direita coligada, sem maioria absoluta do PSD. Mas o facto de essa vitória não ser certa é um garrote em volta do sonho sôfrego da direita de ir rapidamente ao pote. É uma aflição que a não deixará em paz até ao dia das eleições.


As oposições de esquerda estão de algum modo reféns do seu próprio êxito relativo de terem atingido um patamar estável de intenções de voto em torno dos 15%. O modo como têm feito oposição torna quase impossível conceberem sequer uma aliança, seja de que tipo for, com o PS. Mas a distância que as separa dos 45% que lhes dariam uma maioria para governar, torna caricato que se posicionem como se esse objectivo fosse possível. Resta-lhes o disco cansado de um discurso de protesto, realmente alheado da disputa institucional, vagamente perfumado por um milenarismo difuso, cada vez mais exausto pelo peso crescente da sua própria inverosimelhança. Milenarismo irremediavelmente marcado por uma indisfarçável ausência de caminhos que dele algum dia nos pudessem aproximar.


Por isso, as oposições de esquerda sofrem, dia após dia, o assédio sufocante de um dilema incontornável: ou radicalizam o seu discurso anti-PS, na senda que têm vindo a percorrer, e correm o risco de desempenharem objectivamente o papel de guarda-avançada da direita, podendo vir a sofrer duramente no futuro um castigo político pelo seu próprio êxito; ou arrepiam caminho, dando vida a uma auto-crítica viva do modo como têm feito oposição, e arriscam-se a que o seu eleitorado reconheça o bem fundado dessa auto-crítica e tire daí desde já consequências eleitorais, para elas, gravosas. Talvez tentem ficar a meio do caminho, mas , como sabemos, nunca é seguro ficar sentado entre duas cadeiras.


O "iceberg" que podemos usar como metáfora para descrever o conjunto de todos os poderes que configuram a direita, cuja pequena camada visível são os partidos políticos que a representam institucionalmente, passa por algumas confusões, sofre algumas aflições, atravessa algumas perplexidades. E a maior de todas elas talvez seja o facto de nele perpassar uma persistente dúvida quanto ao acerto, em face dos seus interesses de médio prazo e às suas dificuldades imediatas, dos seus partidos terem provocado agora a actual crise política. Talvez, por isso, em vários tons e de diversas maneiras, desse "iceberg" têm surgido vozes recorrentes que generosamente abrem ao PS as portas do Governo, mesmo que tenha acabado de sofrer uma derrota eleitoral. Tanto largueza de espírito deve fazer sorrir. Mas não deixa de evidenciar objectivamente que na base do "iceberg"se confia pouco ou nada na competência do pessoal de turno que ocupa a cabeça dos partidos da direita, cuja volatilidade, inconstância e inconsistência, certamente assusta.


Não é um pecado do PS que no "iceberg" da direita os poderes de facto o achem confiável, como corresponsável na gestão dos negócios correntes, se por isso não tiver que pagar o preço incomportável da perda de apoio da sua base social e eleitoral. Mas se o PS não tem que arcar com o peso simbólico de qualquer pecado, deve ficar mais atento do que desvanecido. E o ponto de partida dessa indispensável atenção é ter como assente de que, se é importante para a economia portuguesa a sobrevivência saudável dos bancos, não o é menos para a democracia portuguesa a sobrevivência saudável do PS. E não é exigível ao PS pôr em risco a sua própria vida, para salvar dos resultados das suas próprias lógicas, e da alguns vigaristas de estimação, os abastados figurantes do capital financeiro, bem como os seus bancos e o seu poder.


A ironia do destino ou a volatilidade da conjuntura fazem com que o PS seja simultaneamente o alvo predilecto de todos os ataques e o suporte mais crível do que possa restar de esperança, não só em todos os que o apoiam, mas também em muitos dos que o atacam. Talvez por que, no fundo, os portugueses sabem que a dramatização política brusca das dificuldades que atravessamos se deve muitíssimo mais às oposições do que ao PS e ao Governo.


Assim, seja qual for o resultado das eleições legislativas, o PS estará no centro da política portuguesa nos próximos anos, com um papel directo na qualidade da democracia portuguesa e com uma influência decisiva no modo como irá decorrer a evolução económico-social. Por isso, mais uma vez insisto em que a necessidade natural de desempenhar bem as tarefas imediatas não pode servir de justificação para que se não iniciem já as movimentações estratégicas e de longo prazo, de que o PS precisa para reunir as condições necessárias ao cumprimento da sua função histórica , para poder estar à altura da sua vocação futurante, para se poder inscrever no futuro como recurso ao dispor de todo o nosso povo.


É como se o PS tivesse que caminhar para dentro do seu próprio coração, para dentro das suas emoções mais espontâneas, aproximando-se mais do essencial da sua identidade histórica, credibilizando-se como horizonte e comprometendo-se como proponente de caminhos, sem com isso se desresponsablizar da procura de soluções conjunturais e imediatas.



Tudo isto é talvez pouco, é talvez vago, é talvez inconsistente, mas desertar por completo do terreno destas preocupações é seguramente amarrar o PS á volatilidade imprevisível do dia a dia, deixá-lo inerte nos braços de um destino que incorpora inevitavelmente um risco de catástrofes.

terça-feira, 5 de abril de 2011

MATAI-VOS UNS AOS OUTROS !

Um sol indeciso deixa lentamente a tarde, à hora a que os roedores de desgraças preparam os telejornais.

Em Coimbra, o Mondego finge deslizar. Abril não teve ainda a sua palavra. Uma nebulosa confusa de sonhos e receios prepara as eleições. As listas vão ganhado corpo numa artitmética sem alma, como se cada um de nós da sua lista esperasse apenas o sabor amargo da desilusão.

No PS, quando tudo parecia navegar na prudência das águas mansas, um nariz de borrasca surgiu no horizonte. A nuvem parece estar ainda longe, mas aproxima-se. Os talvez deputados , as talvez deputadas, erguem-se solenes numa esgrima de coros de tragédias gregas. O povo socialista estremece. Longe, no Olimpo crispado da capital do império, os deuses franzem gravemente o sobrolho.

O sol esvaiu-se mansamente no horizonte, num amarelo melancólico de fim de tarde. Na esplanada de todos os cansaços, folheei lentamente alguns recanto da memória, lembrando-me irresistivelmente de Jorge Reis, em Paris, olhando-nos distante, e logo de seguida do seu lendário romance: "Matai-vos uns aos outros !". Amen.

LABIRINTO ?

As oposições de esquerda têm-se revelado incapazes de construir um discurso crítico contra o Governo e o PS insusceptível de ser apropriável pela oposição de direita. O que significa que têm sido incapazes de bombardear as posições do PS sem se bombardearam também, de algum modo, a si próprios.


Talvez cientes disso, parecem ter querido fazer um movimento estratégico que, de algum modo, os libertasse dessa prisão simbólica. O PCP, embora persista no esotérico caminho de apenas se aliar a si próprio na CDU, percebeu que devia dar ao menos uma ilusão de movimento, conversando circunspectamente com o BE. O BE por seu lado viu aí uma janela de oportunidade para se mostrar aberto e dialogante, olhando gulosamente para os eleitores de esquerda que o PS possa afugentar.


A ficção de que ambos buscam, por si sós, gerar uma alternativa política construída contra o PS adicionado à direita é-o tanto mais, quanto seria realmente caricata se fosse levada à letra. Mas o PS fará mal se olhar com displicência essa aliança. De facto, talvez o seu objectivo real seja muito menos ambicioso do que aquilo que quer parecer. Mas é aí que reside a sua perigosidade para o PS. De facto, o seu objectivo pode ser o de criar um bloco eleitoral que fique acima dos 15%, o que, se conjugado com um hipotético mau resultado do PS, podia mudar qualitativamente a nossa paisagem eleitoral, em prejuízo deste. E essa mudança, ou o risco dessa mudança, torna muito mais penalizadora para o PS qualquer complacência sua, em face de qualquer hipótese de se abrir a qualquer tipo de aliança com a direita.


Também por este lado, o PS está confrontado com um período pós-eleitoral extremamente complexo, quer ganhe, quer perca as eleições. E assim assume uma evidência crescente o carácter aventureiro de qualquer orientação política geral simultaneamente simplista e fechada na conjuntura. O reexame critico do modo como se relaciona com a sociedade, da sua organização interna, da sua estratégia e da sua aptidão futurante torna-se um imperativo dia a dia mais forte. Também para o PS, o aparente pragmatismo das urgências imediatistas tende a converter-se no mais nefelibata dos aventureirismos.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

O IMPORTANTE É A ROSA : um choque de qualidade.

Recentemente, num breve comentário feito num dos blogs de referência que temos à disposição, "A Nossa Candeia" da Ana Paula Fitas, usei a expressão "choque de qualidade", referindo-me àquilo que eu achava ser necessário submeter as listas de candidatos do PS às próximas eleições. Algumas das reacções suscitadas pelo texto, que a esse propósito aqui escrevi ontem, e algumas notícias vindas a público, ontem e hoje, levam-me a fazer agora um breve acrescento ao que ontem escrevi.

Na verdade, dada a impossibilidade objectiva de se realizarem agora eleições primárias para a escolha dos candidatos do PS, há que, pelo menos, exprimir, através da sua imagem global, uma metamorfose, no modo como eles têm sido escolhidos até agora. Metamorfose que, pela força das coisas, não sendo viável quanto aos métodos seguidos e quanto às instâncias que fazem as escolhas, se pode afirmar nos critérios de escolha. Ou seja, fazer-se uma escolha que designe os melhores, no sentido que indiquei no meu texto de ontem; uma escolha que garanta um grupo parlamentar competente, em todas as áreas polticamente importantes; um elenco de escolhidos que torne objectivamente evidente uma determinação inequívoca de separar o mundo da política do mundo dos negócios, dando assim vida a uma ética republicana, cuja simples proclamação será estéril.

Não achando inútil insistir nesta posição, não creio muito que ela seja adoptada. É certo que poucos ou nenhuns responsáveis se lhe oporão expressamente, talvez confiando na inércia das coisas para lhe barrar o caminho. E mesmo tendo havido quem exprimisse concordância com o que sugiro, a maioria vai certamente conformar-se com as rotinas.


Fazem mal. Um choque de qualidade, no conjunto das listas, é um dos poucos recursos ao alcance do PS , com potenciais efeitos positivos imediatos. Um choque que poderia contribuir para um acréscimo de prestígio muito significativo.


De facto, se o partido se conformar mansamente com a via sacra das rotinas instituídas, numa melancólica repetição de si própio, pode satisfazer expectativas e evitar dramas excessivos no processo de escolha, pode até permitir a execução de um catálogo de discursos previsíveis, que gritem unidade e vontade de vencer. Pode fazê-lo; mas será então uma simples girândola de previsibilidades, rodando sobre si próprias. Com que resultados ? Ao certo, não podemos saber. Mas já sabemos agora que, se for isso que acontecer, não terá sido feito tudo o que está ao nosso alcance, para que esses resultados sejam os melhores possíveis.


Anunciam-se já vários nomes no carnaval das hipóteses. Uns têm o peso fatal do "dejá-vu", outros não podem deixar de causar arrepios, mas alguns certamente seriam escolhidos, se fossem usados os critérios que sugeri. Dirão: podes então ficar parcialmente satisfeito. Engano, respondo eu.


Um conjunto nacional de listas de uma alta qualidade ostensiva só teria a ganhar com a inclusão de alguns dos nomes já alvitrados. Mas os mesmo nomes, num panorama nacional decepcionante, perderão uma grande parte da sua força, da sua energia política e do seu potencial irradiador de prestígio. Os mesmo nomes que podiam ser preciosos auxiliares na criação de uma imagem global de alta qualidade, podem não ser mais do que chamas mortiças, se fizerem parte de um panorama nacional previsível e medíocre.


É, na verdade, indispensável um choque de qualidade nas listas de candidatos do PS às próximas eleições legislativas. Um choque que pode contribuir para que se abram de novo para o PS as portas do futuro; mas cujo esquecimento pode, pelo contrário, ser a nuvem de desânimo que faltava, para abrir caminho à desesperança.


E, afinal, talvez seja pouco o que falta para se conseguir esse choque. Eventualmente, que cada potencial candidato se lembre e se convença de que não é a sua carreira o que é importante, que não são os seus legítimos sonhos pessoais que são importantes; e que todos os dirigentes compreendam que eles não são tudo no partido, que a perpetuação do seu poder não é tudo. Enfim, talvez baste que todos sintam com autenticidade que, como alguém disse um dia longe de Portugal, mas perto dos corações socialistas: o importante é a rosa !

domingo, 3 de abril de 2011

O PS E AS LISTAS DE CANDIDATOS


1. No PS, está prestes a iniciar-se a etapa mais formal da escolha das listas de candidatos a deputados. Esta é uma das escolhas mais estruturantes da imagem do partido para os anos seguintes, quer venha a ser governo, quer venha a estar na oposição. Mas, nas actuais circunstâncias, essa importância é ainda maior. Muito maior do que aquilo que costuma ser.


De facto, as dificuldades conjunturais dramáticas que o país atravessa, o modo como foi desencadeada a crise política em que estamos mergulhados e o impressionante bombardeamento mediático a que o PS está sujeito tornaram imprescindível que, entre as armas usadas, ele tenha que recorrer àquelas que valham por si próprias como sinais evidentes de um acréscimo de qualidade. Armas traduzidas em medidas que valham por si próprias, sem necessitarem de qualquer discurso que as destaque, ou explique ou anuncie, não sendo por isso também vulneráveis a qualquer discurso que as ataque ou menorize. Medidas que sejam em si factos consumados, que não possam cair na aleatoriedade das promessas. Medidas de cuja efectivação não se possa objectivamente duvidar , uma vez que já ocorreram. Procurá-las, sistematicamente e com argúcia, devia ser uma tarefa básica de qualquer direcção política com competências estratégicas. Fazendo votos para que isso aconteça, adianto já uma dessas medidas que, na minha opinião, pode ser tomada sem qualquer dificuldade, mas que tem, em si própria, um enorme leque de prováveis efeitos colaterais virtuosos, para além do que directamente dela há-de resultar pela própria natureza das coisas.


2. Refiro-me à elaboração das lista de candidatos a deputados. Infelizmente, o PS deixou-se chegar uma vez mais a uma circunstância em que lhe é objectivamente inviável optar pelo método mais escorreito de escolha dos seus candidatos: as eleições primárias, abertas a simpatizantes e eventualmemte a eleitores declarados do PS. Uma vez que assim é, poderia parecer que estamos condenados a repetir o tipo tradicional de designação. Mas não é assim. Mesmo em pouco tempo, é possível um outro caminho. Um caminho que corresponda ao tipo de medidas qualificantes que atrás referi.


A competência final da escolha dos candidatos seria assumida pela Comissão Política Nacional com base num conjunto de critérios definidos com precisão pela Comissão Nacional. A participação das Comissões Políticas das Federações, numa primeira indicação de nomes, seria assegurada. O Secretário-Geral coordenaria pessoalmente o processo, embora coadjuvado por quem ele entendesse, em estreita cooperação com os Presidentes das Federações.


O processo de escolha obedeceria a três vectores conjugados e irremovíveis.

1º Os candidatos seriam escolhidos por serem os melhores, conjugando-se critérios de prestígio intelectual e cívico, de capacidade política, de competência técnica, de criatividade literária e artística, de prestígio cultural e social, de notoriedade pública.

No limite, seria desejável que cada candidato acrescentasse prestígio à lista, não precisando de pertencer à lista para se prestigiar.


2º Com pleno respeito pelo critério geral de capacidade e de competência acima referido, devia ser assegurado um leque diversificado de competências técnico-políticas que abrangesse toda as áreas político-sociais e culturais de maior relevo, de modo a não deixar nenhuma desguarnecida e a garantir que as mais relevantes estejam realmente bem preenchidas.


3º Expurgar as listas, por completo, de qualquer presença que possa significar complacência quanto a qualquer promiscuidade entre política e negócios.


Todos sabemos bem quais são os pontos nevrálgicos desta problemática, embora também saibamos que há rumores injustificados. No entanto, politicamente, temos que ter em conta que em tempo útil não vai ser possível apurar com rigor se há rumores justificados e rumores injustificados, pelo que se deve seguir uma via preventiva: quem tiver sido envolvido em situações objectivamente duvidosas, mesmo que a respectiva ilegalidade e a censurabilidade ética não estejam adquiridas, nem pessoalmente imputadas, deve ficar fora das listas. Este terreno, onde convivem insalubremente a política e os negócios , é dos mais vulneráveis a qualquer propaganda. Ignorá-lo pode ser suicida.


Se esta via for seguida, as listas do PS terão um outro rosto, em si próprio altamente qualificante para a nossa imagem pública. Ganharemos prestígio e consistência política, mostraremos que queremos evoluir, mas seguindo a nossa própria agenda de mudança e não agendas de mudança vindas de fora de nós, cujo objectivo é o de virmos a ser aquilo que convém a outros. Talvez isto não seja suficiente para ganharmos as eleições, mas também não é certo que não seja isto que precisamente fará com que as ganhemos.


Pode haver entre nós quem se sinta em risco de perder um lugar ou de o não alcançar como esperava, ou quem não queira afrontar como dirigente as rotinas habituais, de modo a promover esta mudança. Mas que ninguém esqueça que as atitudes de desprendimento em face de ambições pessoais assumidas pelos militantes ou as escolhas dos dirigentes que ignorem lógicas de facção ou amiguismos, se forem generalizadas, serão ostensivas. E se forem ostensivas valerão mais, perante o eleitorado, do que todos os discursos habituais de grande empenhamento, de grande desinteresse, de grande solidariedade; os quais, por seu lado, serão igual a zero se estiverem a ser desmentidos na prática pelas sofreguidões tradicionais e pelas complacências de rotina.


Nesta decisiva luta eleitoral que nos espera, tudo o que é costume fazer-se tem que ser bem feito. Mas mesmo que o venha a ser, não será suficiente. São necessárias novidades estratégicas. Aquilo que aqui proponho é uma delas. É possível, tem efeitos positivos em tempo útil e os seus efeitos colaterais esperados são virtuosos. Pelo contrário, deixar que, quanto às listas de candidatos a deputados pelo PS, tudo corra como de costume, pode ser uma indesculpável renúncia de usar um dos poucos trunfos estratégicos que está ao nosso alcance, que só depende de nós e que tem efeitos imediatos.


[Os militantes do PS que concordarem com esta posição podem tornar pública essa concordância em comentários feitos neste blog a esta mesma mensagem, identificando-se e indicando o respectivo nº de militante. Se o número de concordâncias for significativo, enviarei a lista dos concordantes à direcção do PS. ]

sábado, 2 de abril de 2011

O EXPRESSO CONTRA A VERDADE!

A infogravura acima reproduzida foi extraída da página 10 do semanário "Expresso" de hoje. É um exemplo elucidativo do tipo de parcialidade que caracteriza este jornal. Realmente, é uma publicação que segue com subtileza a orientação politico-ideológica do seu "dono ", um dos fundadores do PSD. Mas para não se reduzir a um órgão de propaganda partidária, como tal desqualificado no plano da sua objectividade e da sua imparcialidade, ele é tão objectivo e tão imparcial quanto necessário para manter as aparências, para que a as suas farpas ou as suas distorções orientadas produzam o efeito desejado nos momentos cruciais.


Como referi neste blog, no texto anterior, um dos pontos cruciais do combate pela conquista da opinião pública nesta campanha é a questão da imputação das culpas pela crise política. No âmbito da sondagem, cujos resultados o "Expresso" publica, foi feita a pergunta : "De quem é a culpa pela crise política?". As respostas foram elucidativas: 30,4% acharam que foi do Governo; 29, 3% de toda a oposição; 16% do PSD; 9% do presidente da República; e 14 % não sabem ou não respondem. Ora, estando em causa se a culpa foi do Governo ou da oposição, não tem sentido separar o PSD das oposições no seu todo. Assim, vê-se que 30,4% imputam culpas ao Governo e 45,3 % às oposições. Mas sendo o PR um político apoiado pelos dois partidos da oposição de direita e ostensivamente hostil ao Governo, faz sentido somar a este último número os seus 9% . E assim, teríamos 30,4% achando que a culpa da crise devia ser atribuída ao Governo e 53,3% pensando que as culpas são imputáveis a um ou a vários focos políticos contrários ao Governo.


O título que encabeça a infogravura é pois uma desonesta mistificação, dado que ao contrário do que sugere o título " A culpa é do Governo", apenas menos de 1/3 dos inquiridos pensa assim. Pelo contrário, mais de metade acha que os culpados são outros e mais de 45% acha que a culpa deve ser imputada a partidos da oposição.


A verdade do que foi apurado na sondagem é, de facto, muito inconveniente para o PSD e para a restante oposição, já que apesar de todas as campanhas de intoxicação mediática os portugueses não parecem ter sido convencidos.E se adicionarmos a isso que 52,6% dos inquiridos na mesma sondagem acham que o PEC não devia ter sido chumbado, contra apenas 34,1% que acham que sim, e que 47,8% não concordam com a convocação de eleições antecipadas, contra 45,3% que concordam, percebemos bem a razão da vigarice informativa perpetrada pelo circunspecto semanário.


A maioria dos portugueses parece mais convencida pelas razões do Governo do que pelas razões da santa aliança das oposições e do Presidente da República. E isso não é bom para as aspirações da área política que o Expresso representa, nem agradará com certeza muito ao seu "dono". Mas as coisas são o que são, e não aquilo que o Expresso gostaria que elas fossem, isto é, realmente a maioria dos inquiridos pela sondagem em causa não acha que as culpas da actual crise política devam ser imputadas ao Governo.