terça-feira, 31 de janeiro de 2012

FANTASMA DE CÃO TALVEZ ASSOMBRE A JUSTIÇA

Algo de estranho se passa no ministério da justiça. A ministra parece caminhar sobre brasas. Como se um fantasma a assombrasse constantemente, empurrando-a irresistivelmente para a acrimónia, para a precipitação e para o dislate.

Ora, a fazer fé num murmúrio que atravessa os discretos corredores do ministério, altas horas são ouvidos distintamente latidos zangados de um cão indeterminado. Mas ninguém vê o cão. Daí que se tenha alvitrado a hipótese de um fantasma. O fantasma de um cão que, em vidas passadas, mordeu a mão do dono, continuando agora furiosamente à procura dele, com a ilusão de que ainda está vivo, com a obsessão de lhe continuar a morder, a morder mais, uma e outra vez.

Com a reserva de estar pouco estudada a história dos cães fantasmas, talvez faça sentido imputar-se a esse espírito insalubre de um cão que mordeu no dono, de um cão que mordeu a mão que lhe deu de comer, a irrequieta deriva da ministra, quase sempre zangada , sempre pretendendo-se feroz .

Se assim é devem ser tomadas medidas urgentes. Não podemos consentir que uma ministra , mesmo de um governo como este, sofra as agruras da convivência involuntária com um fantasma que assim a atormenta e empurra para o dislate com uma frequência fora do normal.

É urgente um exorcismo veterinário!!

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O CHARME DISCRETO DOS CROCODILOS

Fui surpreendido, nos últimos dias, por uma desusada afluência nos écrans televisivos de um diversificado leque de crocodilos. Todos choravam: uns quase convulsivamente, outros como se transportassem a discreta dor de viúvas saudosas. É certo que, a fazer fé na aparência que os embrulhava superficialmente, poder-se-ia até confundi-los com gente.

Mas sabendo-se quem eram, tendo-os ouvido, uma e outra vez, louvar, de olhos em alvo, o tipo de sociedade em que vivemos, as lágrimas que tão compulsivamente soltavam só podiam ser de crocodilo. Ora quem chora lágrimas de crocodilo, o que se pode dizer que seja. Um rouxinol ? Um tigre da Sibéria ? Um pacato cidadão ? Uma cobra de água? Não, certamente que não. Só pode ser um crocodilo.

Mas o que afligia os nossos sensíveis répteis ? Muito justamente, comovia-os a solidão e o descaso que assinalou a morte de um, dois, vários idosos, neste janeiro frio e pesado, fustigado pelos ventos insalubres de uma alegada tróica. As suas lágrimas vinham juntas com uma salada de bombeiros, de juntas de freguesia, de misericórdias e de vizinhos, convocando a todos para uma nova piedade, que poupasse à nossa sociedade este efeito colateral, que a tróica se esqueceu de discutir, que não está inscrito na dívida soberana e que não tira o sono à simpática dupla merklo-sarkosiana.

Pouco antes, lágrimas irmãs, talvez ligeiramente mais contidas, haviam chorado o esmorecer demográfico de Portugal, onde as crianças parecem recusar-se a nascer, onde os que podiam ser pais, aflitos pelo não-futuro com que os ameaçam, recusam ser causa de sofrimento para crianças futuras. Comovidos, os crocodilos falam neste caso em circunspectas políticas, desenrolando penosamente rosários de lugares-comuns, cuja lógica é, afinal, a recomendação de que é urgente fazer baixar a febre, mas está fora de questão curar a doença.

De facto, é de algo semelhante a uma doença, aquilo de que estamos a falar. O capitalismo, possuído pela fatalidade neoliberal, é cada vez mais uma doença para um número crescente de cidadãos, que pagam com os seus dramas vivenciais, com a sua infelicidade, os rios de leite e de mel que desaguam com abundância nas flácidas barrigas de um pequeno número de felizardos.

Não cabe na vasta sabedoria dos croquetes economicistas, alguns dos quais fabricados nas melhores universidades, que executam os mais sofisticados cálculos em equações de excelência, para sublinharem a fatalidade da desgraça dos povos e da ventura dos privilegiados, dar uma resposta para a sombra que se adensa sobre os mais velhos e que desencoraja os nascimentos. Por eles, chegaremos um dia ao colossal êxito de uma sociedade suficientemente rigorosa e disciplinada para que ninguém se atreva a nascer e ninguém tenha o desplante de viver .

É certo que qualquer capitalista, com o discernimento de uma criança de cinco anos, sabe que sem pessoas não há capitalismo; ou que, se houvesse um radioso futuro em que qualquer coisa como máquinas mandasse verdadeiramente, elas não teriam certamente um resíduo de generosidade que deixasse escapar com vida os resíduos humanos que embaciassem esse alegado paraíso. Mas, se é pensável, mesmo que absurdo, que essas endinheiradas criaturas possam sonhar com essa desumanidade, todos nós, todos os povos, toda a vasta legião de pessoas que pagam penosamente o preço da subsistência de um sistema retrógrado, imoral e destruidor, têm que acordar para o essencial: ou começamos a breve prazo a percorrer o difícil trajecto de saída deste tipo de sociedade, rumo a um pós-capitalismo humanizante, com justiça e liberdade; ou somos devorados por ele.

Todos compreendemos que numa sociedade cooperativa e solidária, em que se estimule o protagonismo livre de todos e se assegure a justiça, será muito menos frequente que haja pessoas idosas condenadas ao isolamento, à solidão e à miséria; tal como será mais improvável que os que poderiam vir a ser pais não queiram gerar novas vidas, por julgarem que elas estão, muito provavelmente, condenadas a ser de sofrimento.

Todos temos que compreender que consentir-se na subsistência de uma máquina de produzir injustiça, miséria e infelicidade, ao mesmo tempo que se fazem campanhas de solidariedade para se minorarem os resultados da manutenção dessa máquina, é uma generosidade desesperada, quando não é uma hipocrisia cínica. Tratemos pois das actuais sequelas do funcionamento dessa máquina com empenho e fraternidade, mas acabemos com a máquina.

Não nos conformemos, não aceitemos que se apresentem perante nós, com a pele viscosa dos crocodilos, chorando as suas lágrimas com a duplicidade de quem se recusa a salvar as vítimas, mas tem manha suficiente para chorar por elas.

domingo, 29 de janeiro de 2012

EUTANÁSIA ECONÓMICA

Se os cultivadores da continuidade do sistema capitalista apenas parecem saber incentivar o pessimismo dos povos, convidando-os ao sofrimento, para poderem acariciar o capital e os seus detentores enquanto tais, numa ternura que a prática tem mostrado ser inútil, dê-se a palavra a quem não se conforma que a sobrevivência da humanidade seja sacrificada no altar da conservação dos privilégios de que o capitalismo precisa.
Seja pois dada a palavra a Robert Kurz, ensaísta alemão
nascido em 1943, que participou em 1986 na criação da revista Krisis e do correspondente grupo, do qual se separou em 2004, envolvendo-se na criação de um novo grupo, em torno de uma nova revista: EXIT! (Crítica e Crise da Sociedade da Mercadoria). Escreve com regularidade em jornais e revistas da Alemanha, Áustria, Suíça e Brasil.

O texto abaixo transcrito foi-me enviado, em boa hora, pelo Luís Namorado, meu irmão, podendo ser encontrado em
http://obeco.planetaclix.pt/rkurz399.htm .

Eis o texto:


Robert Kurz

EUTANÁSIA ECONÓMICA

Na ideologia da economia política, o dinheiro é uma ferramenta sofisticada para fornecer da melhor maneira bens materiais e serviços sociais à sociedade; precisamente por isso, ele seria irrelevante no verdadeiro sentido económico, não passando de um "véu" sobre a produção e a distribuição reais. Marx, no entanto, mostrou que o dinheiro, como autovalorização do capital, é um fim em si mesmo fetichista, que submeteu a si a satisfação das necessidades concretas. Os bens reais apenas são produzidos se servirem para esse fim em si da multiplicação do dinheiro; caso contrário a sua produção é parada, embora seja tecnicamente possível e constitua mesmo uma necessidade vital. Isto é particularmente evidente em áreas como as pensões e os cuidados de saúde, que em si não são suportes da valorização do capital, mas têm de ser financiadas com os salários e os lucros. No plano puramente factual estão disponíveis recursos suficientes para fornecer à população alimentos e cuidados médicos, mesmo que seja cada vez maior a proporção de não activos profissionalmente. Mas, sob os ditames do fetiche dinheiro, esta possibilidade objectiva torna-se "infinanciável".

Sistemas de pensões e seguros de saúde estão indirectamente subordinados aos ditames da valorização abstracta. Sob condições de financiamento difíceis eles são "economificados". Isso significa que eles mesmos devem agir de acordo com critérios económicos, a fim de poderem participar nos fluxos financeiros. Até o diagnóstico médico se torna uma mercadoria, que está sob pressão da concorrência. O objectivo não é a saúde e o bem-estar das pessoas, mas o doping para a "produtividade", por um lado, e a gestão das doenças, por outro. A pessoa ideal para as instituições vigentes seria um lutador olímpico no local de trabalho (para aumentar o produto nacional), que simultaneamente pudesse ser definido como doente crónico (para encher os cofres do sistema de saúde) e que batesse voluntariamente a bota ao entrar na idade da reforma (a fim de não ser um fardo para o capitalismo).

Foi a própria ciência médica que estragou os planos deste esplêndido cálculo. Ela foi de facto tão bem sucedida que cada vez mais pessoas estão vivendo muito para além da idade profissionalmente activa. Este é um exemplo particularmente claro de que a concorrência forçou um desenvolvimento das forças produtivas que já não é compatível com a lógica capitalista. A "força muda das circunstâncias" (Marx) provoca assim uma tendência para de algum modo anular as conquistas médicas factuais. A produção da pobreza artificial tem efeito preventivo. Assim, na Alemanha, a esperança de vida dos mais mal pagos baixou de 77,5 para 75,5 anos desde 2001. Quem nem sequer ganha dinheiro suficiente para a subsistência, apesar de trabalhar a tempo inteiro com desempenho esforçado, chega a velho tão exausto que já não consegue explorar as possibilidades da medicina. Mas também a assistência médica em si é cada vez mais reduzida de acordo com a capacidade de pagamento. Como os hospitais gregos estão praticamente falidos, as grandes empresas farmacêuticas suspenderam o fornecimento de medicamentos para o cancro, para a SIDA e para a hepatite; e o abastecimento de insulina também foi interrompido. Este não é um caso especial, mas a imagem do futuro. Pelo menos aos doentes pobres e "supérfluos", não mais utilizáveis do ponto de vista capitalista, será assinalado por todos os peritos o que já o rei Frederico da Prússia berrou aos seus soldados em fuga do campo de batalha: "Cães, vocês querem viver para sempre?"

[Original ÖKONOMISCHE STERBEHILFE in http://www.exit-online.org/. Publicado em Neues Deutschland, 09.01.2012.]

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

EU TIVE UM SONHO !

Este governo, politicamente, é um pigmeu que executa os rituais mais básicos da vulgata neoliberal como quem segue os ditames sagrados de uma religião imaginária. Na Europa, continua a servir as bicas aos patrões, embora seja tratado com a bonomia de quem partilha com eles o garrote que assombra o velho continente: o partido popular europeu.


Mas hoje excedeu-se, anunciando uma provocação grosseira: decidiu acabar com os feriados do 5 de outubro e do 1º de dezembro. Não é tempo de desmascarar em detalhe a ideologia retrógrada que preside a toda a lenga-lenga em torno dos feriados, que no fundo apenas esconde uma aposta cínica na humilhação simbólica dos trabalhadores, dos republicanos e dos portugueses que gostam de não ser espanhóis.


As provocações grosseiras não pedem argumentos que as contrariem. Às provocações grosseiras responde-se sem ambiguidades e com verticalidade. Por isso, o PS tem que dar uma resposta à altura: sem blas-blas, sem hesitações, sem meias palavras. Ao abuso de maioria que a direita está a pôr em prática, só se pode responder na mesma moeda. A sobranceria não pode ser recompensada.


Por isso, se a direita levar até ao fim a provocação ensaiada, ao Partido Socialista só resta um caminho: declarar, desde já, solenemente, que logo que a direita perca a maioria na Assembleia da República, ocorra isso quando ocorrer, o PS proporá a restauração dos feriados do 5 de outubro e do 1º de dezembro.


Ou isso, ou um calvário de tergiversações, no decorrer do qual em cada dia a credibilidade do PS se arrisca a ir esmorecendo, mais e mais, até se reduzir a uma vaga sombra daquilo para que foi criado. Não nos deixaram uma terceira opção.


Talvez por isso, eu tive um sonho: desta vez o PS dá um murro na mesa!

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

HOMENAGEM, SAUDADE E MEMÓRIA













1. Prestemos homenagem aos que partem, com saudade mas sem melancolia. É isso que lhes devemos. Hoje, evoco um amigo, há pouco desaparecido, que não via há quase meio século: o Francisco Delgado.


O Xico Delgado foi expulso da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, na sequência da Crise Académica de 1962. Algumas dezenas de estudantes, entre os quais me incluí, partilharam com ele a honra de terem sido expulsos da Universidade pelo governo fascista, vergonhosamente acolitado para o efeito pelo Senado da Universidade de Coimbra. Mas, além dele, só os membros da Direcção-Geral da AAC foram expulsos de todas as universidades portugueses. Todos os outros foram expulsos apenas da Universidade de Coimbra, pelo que puderam mudar de Universidade no ano seguinte. Um comunicado, saído em maio de 1962 em Coimbra, divulga os nomes dos estudantes expulsos e as penas que lhes foram aplicadas. O seu número 2 diz-lhe respeito : "Acusado de “ser de certo modo, mentor da consciencialização colectiva” (sic): Com dois anos de exclusão de frequência de todas as escolas nacionais: Francisco Delgado (CITAC)". Foi assim empurrado para o exílio. Na Suiça, passou do estudo da Filosofia para o da Psicologia, no âmbito da qual se viria a profissionalizar. Tal como aconteceu com outros exilados, não regressou a Portugal com o 25 de Abril de 1974. Veio cá muitas vezes, mas continuou a viver na Suiça.


2. Em Coimbra, a nossa cumplicidade adensou-se com a participação de ambos na aventura poética dos "Poemas Livres", cujo primeiro número saiu em plena crise de 1962. Nesta colectânea de poesia de resistência, além dele e de mim, participaram também o César Oliveira, o Ferreira Guedes e a Margarida Losa.

Dois meses depois, aos dois primeiros, ao Xico Delgado e a mim, juntaram-se o António Augusto Menano, o Fernando Assis Pacheco, o José Carlos de Vasconcelos, o Manuel Alegre e o Rui Polónio Sampaio, para uma nova iniciativa poética: "A Poesia Útil". Com um poema de cada um, o fruto das respectivas vendas reverteu para um fundo, destinado a compenesar as perdas inerentes à não realização da Queima das Fitas, votada pelos estudantes por causa da crise. Em 1963, foi publicado o nº 2 dos "Poemas Livres". Além dos cinco participantes no primeiro número, colaboraram nesta nova colectânea o António Manuel Lopes Dias, o Eduardo Guerra Carneiro, o José Carlos de Vasconcelos e o Manuel Alegre.


O Xico Delgado e alguns dos outros não participaram no terceiro número dos "Poemas Livres", saído em 1968. Mas nesta terceira colectânea, participaram pela primeira vez, Armando da Silva Carvalho, Fernando Assis Pacheco, Fernado Miguel Bernardes, Luís Guerreiro, Luís Serrano e Manuel Alberto Valente.


O Xico Delgado teve poemas seus integrados na "Antologia de Poesia Universitária", publicada pela Portugália em 1964. Esta antologia incluiu estudantes, quer de Lisboa, quer de Coimbra,tendo sido promovida pelas Inter-culturais da Academia de Lisboa, que encarregaram da sua organização, um grupo de estudantes constituído por Alfredo Barroso, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, J.M. Vieira da Luz e Rui Namorado. Mais tarde, o Xico Delgado passou a publicar poesia directamente em francês. Tenho à minha frente e reli com prazer: "Dire l'amour" (1978) e "Rompre le silence"(1981).


3. Nesta evocação quero recordar um episódio ocorrido, em Coimbra, durante os dias escaldantes da crise de 1962. Os estudantes tinham aceitado sair da sede da AAC, cercada pela polícia de choque, para corresponderem a um esforço de mediação de um grupo de professores da UC, que se dispuseram a promover uma saída negociada para o conflito que opunha os estudantes e as autoridades universitárias. Todavia, o máximo que esse grupo conseguiu obter destas últimas não foi considerado satisfatório pela Assembleia Magna, reunida no Campo de Santa Cruz , uma vez que estava encerrada a sede da AAC no Palácio dos Grilos. Por isso, a proposta veiculada pelos professores foi rejeitada.

O corolário natural dessa rejeição era o regresso à sede da AAC, donde só tinhamos saído para permitir uma negociação. Falhada a negociação, haveria que voltar ao Palácio dos Grilos. Mas se tal fosse votado expressamente no Campo de Santa Cruz, quando chegássemos ao Palácio dos Grilos já lá estaria a polícia e não conseguiríamos entrar. Por isso, a decisão não foi formalmente tomada, tendo apenas sido passada a palavra de que iríamos até ao Pátio da Universidade. Apenas alguns foram informados da razão dessa ida. Umas centenas de estudantes deslocaram-se assim até lá. Haviam sido distribuídas tarefas pela Direcção-Geral. A mim , aos irmãos Luís e Pedro Lemos e a mais alguns, cabía-nos promover o arrombamento da Torre da Universidade para fazer tocar a "cabra". Ao Xico Delgado coube um papel crucial. Chegados ao Pátio da Universidade era preciso dar o passo seguinte: ir para a sede da AAC, entrar arrombando a porta e reocupá-la. Mas alguém tinha que o propor. Foi essa a missão do Xico Delgado. Subindo alguns degraus da escada que desce da Via Latina para a Porta Férrea, perante algumas centenas de estudantes, em breves palavras, incisivas e cortantes como a ocasião exigia, apelou a que regressássemos à sede da AAC. Assim aconteceu. Era perto. A polícia não podia chegar antes de nós. Não chegou. Entrou-se pela Filantrópica. Menos de uma hora depois o Palácio dos Grilos estava completamente cercado pela polícia de choque.

À noite, os estudantes manifestaram-se na rua em solidariedade com os colegas cercados. Foram dispersos brutalmente, pela polícia. Às quatro da manhã o Palácio dos Grilos foi assaltado pela PSP e pela PIDE. Todos os que estávamos lá dentro fomos transportados em carrinhas para o quartel da GNR na Av. Dias da Silva. Aí a PIDE identificou-nos um por um. Seleccionou trinta e nove homens e quatro mulheres. As quatro mulheres ficaram em Coimbra, presas na sede da PIDE. Os trinta e nove homens foram de imediato enviados para o Forte de Caxias. Viagem de chumbo, imensa e fria; madrugada que ia abrindo dentro de si uma noite de incerteza. O que nos ia acontecer ? Por quanto tempo iríamos estar presos ? O Xico Delgado fez essa viagem; e eu também. Foram apenas alguns dias no Forte de Caxias, mas naquela soturna manhã de maio, nós ainda não sabíamos se iriam ser dias, meses ou anos.


4. Esta breve peregrinação por algumas memórias é já uma homenagem e um marco de saudade, mas em nome dessa breve irmandade poética de resistência que foram os "Poemas Livres", recordando a oficina colectiva daquele primeiro número quero aqui deixar um outro tipo de homenagem, um poema.


Trajecto
- em homenagem ao Francisco Delgado

A raiva que escreveste em cada folha
nasceu, pedra por pedra, neste chão;
vertigem de um destino que nos cerca.

Escolheste o coração do que há-de vir,
estiveste longe por sentir saudade,
mas foi aqui que respiraste o sonho.

Houve um vento selvagem no deserto
que habitámos à força quando jovens,
mas o vento mais vento fomos nós.

Uma viagem longa te inventou,
não foste a folha seca que perdesse
o caminho que tinhas procurado.

Mas a neve dos meses encontrou-te
e os anos corroeram tuas horas;
teu nome ficou escrito na saudade.

Sobem de novo em nós tuas palavras
e nos teus versos regressaste inteiro,
sem sombras, sem mágoas, sem limites.


[ Rui Namorado]

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

MANTER ABERTA A PORTA DO FUTURO

Esta crise tem vindo a mostrar que o capitalismo é uma máquina trágica, que só é capaz de produzir riqueza, necessariamente para extremo benefício de poucos, à custa de uma pobreza cada vez mais insuportável para muitos. E como sistema predador, impregnado por uma lógica de selva, em que a lei do mais forte é o princípio activo determinante, não concebe que os seres humanos se movam por qualquer outra lógica que não seja essa.

Mas a esta brutalidade de fundo associou uma enorme sabedoria política, através da qual concitou o apoio de muitos dos que estruturalmente mais prejudica, arregimentou o entusiasmo de outros, a quem acenou com a oportunidade de partilharem generosas fatias do bolo conseguido, e mobilizou, num arreganho sem limites, os que colhem directamente os seus melhores frutos e os seus capatazes, bem como os que no aparelho de Estado têm o encargo directo de fazer durar um tipo de sociedade que traduza sociopoliticamente o capitalismo.

Em paralelo, no plano ideológico, soube dotar-se de uma subtileza sofisticada, através da qual conseguiu tornar visível apenas o que contribua para o conservar e para o fazer parecer viçoso e tornar ausente tudo o que pudesses revelar-lhe aleijões e perversidades. Desenvolveu assim o mito da sua própria inevitabilidade como caminho e ficcionou a sua própria eternidade, ao arrepio de tudo o que a História nos ensina.

Tendo começado por confiscar o futuro, para o reduzir à sua própria imagem num espelho de ilusão, vê-se cada vez mais forçado pelo que chamam crise a proscrever a esperança nos horizontes pessoais da grande maioria dos seres humanos que oprime e explora.

Embriagado pela sua própria lógica, a que não consegue fugir, continua a fazer com que os seres humanos se comportem na Terra como predadores e não como partes integrantes de um conjunto, de um ecossistema, cujo colapso será também inevitavelmente a sua própria morte colectiva.

Houve tempo em que a Europa, de algum modo em pareceria subalterna com os USA, integrava de tal modo o centro do mundo que uma crise da Europa era uma crise do mundo. Hoje, a Europa enquanto União Europeia continua a ser um bloco mundialmente relevante, mas agora em convivência com outros espaços geopolíticos, para além dos USA com os quais aliás parece ter agora laços mais ténues. Ela pode estar em crise sem que isso signifique que toda a comunidade humana a acompanhe ou pelo menos que a acompanhe na intensidade dessa crise. E, num certo sentido e em certas circunstâncias, pode acontecer que a sua desgraça seja a oportunidade de outros. E isso talvez porque a Europa não partilha já um comando do mundo, ao qual uma grande parte da humanidade antes se submetia. A Europa, a União Europeia, mesmo em conjugação com os USA, já não é o poder mundial. Por isso, quanto mais insistir numa atitude imperial que já perdeu os alicerces, mais se arrisca a vir a sofrer, num futuro não muito longínquo, de uma subalternidade semelhante à que antes impôs a outros na era colonial.

É a esta luz que deve ser encarado o carácter suicidário da política seguida pela direita europeia no quadro da crise que a desregulação financeira do capitalismo desencadeou e potenciou. Os poderes de facto, a oligarquia capitalista, o Partido Popular Europeu, converteram-se num imenso lacrau que no meio do rio cravará o seu ferrão mortal nos povos que governa, afundando-se com eles.

A isto não se pode resistir em ordem dispersa, nem mastigando num automatismo fatal os lugares comuns da resistência, nem procurando refúgio na fraseologia cansada do combate político habitual. Os socialistas têm que se reinventar no seio da esquerda para que ajudem a esquerda a reinventar-se no seu todo.

Não é este um tempo de amanuenses da política que se limitem a executar com minúcia os rituais do passado, não é este um tempo de frases redondas que escorram mansamente ao longo da realidade sem a influenciarem, não é este um tempo de exacerbamento de detalhes com esquecimento dos combates verdadeiramente importantes.


Não se trata de inventar novidades miraculosas que resolvam num ápice problemas que já vêm de outros séculos. Trata-se de apurar o sentido crítico quanto ao que é essencial e estrutural, de recolher informação completa sobre tudo e de conjugar a radicalidade dos objectivos com o aprofundamento democrático dos caminhos e com a abrangência das alianças necessárias para os percorrer. Trata-se, em Portugal, para os socialistas, como protagonistas do principal partido de esquerda, de se prepararem organizativa e ideologicamente para responderem aos novos desafios. Trata-se de assumir na prática que um partido socialista do século XXI há-de ser necessariamente reformista e transformador, pelo que tem estar naturalmente em condições de actuar eficazmente nas instituições políticas democráticas, mas não pode deixar de se preparar também para se intrometer directamente no tecido social, como seiva e como estímulo das próprias mutações desse tecido, em indispensável sinergia com as políticas públicas que com ele se entrelacem.

No fundo, trata-se de criar condições para se poder agir de modo a conseguir-se influenciar a marcha da sociedade. Nesse aspecto o plano local é incontornável e está ao alcance de todos, pela própria natureza das coisas. E como pressuposto de eficácia da acção local, deve pensar-se a realidade sociopolítica como globalidade, para o que é indispensável enriquecer cada vez mais a informação de que dispomos e apurar o nosso espírito crítico.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA SOCIAL

Venho hoje informar-vos sobre a abertura de candidaturas, até até 31 de Janeiro de 2012, para admissão a uma Pós-Graduação em “Economia Social – Cooperativismo, Mutualismo e Solidariedade”, promovida pelo Centro de Estudos Cooperativos e da Economia Social da FEUC (CECES/FEUC), do qual sou um dos Coordenadores. Para além do texto que se segue, basta clicar no ícone que se encontra no meu blog, do vosso lado direito, para obterem mais informações.

Pós-Graduação em
“Economia Social – Cooperativismo, Mutualismo e Solidariedade”

1. Foi criado na Universidade de Coimbra, por intermédio da sua Faculdade de Economia, um curso que confere um Diploma de Pós-Graduação em “Economia Social – Cooperativismo, Mutualismo e Solidariedade”. No ano letivo de 2011/2012, vai decorrer a sua terceira edição, pela qual continua a ser responsável o Centro de Estudos Cooperativos e da Economia Social da FEUC (CECES/FEUC).
O CECES/FEUC, fundado em 1981, ocupou-se desde o seu início no estudo do cooperativismo, tendo, no decurso da década seguinte, alargado o âmbito do seu interesse a toda a economia social. Tem como base uma equipa multidisciplinar de professores e investigadores, oriundos de áreas diversas, tais como, a Economia, a Gestão, o Direito, a Sociologia e a Psicologia.

2. Este curso de pós-graduação tem como núcleo central um conjunto de oito módulos temáticos. Incluirá também várias conferências e diversos testemunhos sobre experiências vividas por alguns protagonistas da Economia Social. A sua duração total excede as 80 horas, distribuídas ao longo de um trimestre e correspondendo a 20 ECTS. A sua terceira edição vai ter lugar no decorrer dos meses de Março, Abril, Maio e Junho de 2012, em regra, com aulas às sextas-feiras de tarde e aos sábados de manhã.

O objetivo desta Pós-Graduação é o estudo da economia social nas suas várias vertentes, com destaque para as que têm uma identidade historicamente mais marcada e uma importância social mais nítida, como é o caso das cooperativas, das mutualidades e das instituições particulares de solidariedade social no seu todo. Mas, a economia social não será encarada como um objeto isolado. Pelo contrário, serão analisadas também algumas das problemáticas que nela se projetam com mais relevância.

A esta Pós-Graduação têm acesso, fundamentalmente, titulares de uma licenciatura, mas podem ser admitidos candidatos que, não preenchendo esse requisito, tenham uma experiência profissional muito relevante, em qualquer organização da economia social; para isso, 20% do total das vagas existentes serão prioritariamente destinados a esse tipo de candidatos.

3. Concretizando um pouco mais o que atrás se disse, para além das conferências sobre temas de economia social, proferidas por especialistas e de um conjunto de narrativas de experiências vividas por destacados protagonistas de organizações da economia social, o programa do curso compreende os seguintes módulos temáticos, pelos quais são responsáveis os professores da FEUC e membros do CECES abaixo indicados:


I - Introdução à economia social – cooperativismo, mutualismo e solidariedade [8 h] - A economia social como galáxia de esperanças, onde se destacam as grandes constelações organizativas movidas pela cooperação, pela reciprocidade e pela solidariedade.
Prof. Doutor Rui Namorado (CECES/FEUC e CES UC)

II - Empreendedorismo social, políticas e mudança social [8 h] - Parte-se da conceptualização da ação no terceiro setor enquanto empreendedorismo social e das implicações da recente proeminência deste conceito, articulando-a com os desafios ao papel do terceiro setor nas políticas sociais e na governação local.
Profª. Doutora Sílvia Ferreira (CECES/FEUC e CES UC)

III - Fundamentos da gestão das organizações da economia social [8 h] - Identificar e compreender os principais desafios e controvérsias da gestão das organizações da economia social, em particular no que se refere às tensões entre gestão estratégica e operacional, valores e partes interessadas, elevado desempenho organizacional e bem-estar psicológico.
Profª. Doutora Teresa Carla Oliveira (CECES/FEUC)

IV- Empresas e sociedade: da ética à responsabilidade social [8 h] - Análise crítica das modernas conceções de responsabilidade social e das suas implicações nas práticas empresariais, explorando as ramificações destas práticas no terceiro setor.
Prof. Doutor Filipe Almeida (CECES/FEUC e CES UC)

V- Gestão da qualidade nas organizações da economia social [8 h] - Partindo dos conceitos e princípios da Qualidade, apresentam-se alguns referenciais internacionais e discutem-se aplicações na organizações do terceiro setor.
Prof.ª Doutora Patrícia Moura e Sá (CECES/FEUC)

VI- Direito cooperativo e da economia social [8 h] - Os quadros jurídicos da economia social numa perspetiva que valoriza o papel conformador do direito cooperativo, no caso português. Prof. Doutor Rui Namorado (CECES/FEUC e CES UC)

VII-Políticas de emprego, relações laborais e economia social [8 h] - Tendo como referência as organizações da economia social,analisam-se quer aspetos jurídicos relativos à constituição destas entidades quer aspetos económicos relativos às políticas de emprego na economia social no contexto da União Europeia.
Profª. Doutora Margarida Antunes (CECES/FEUC)
Profª. Doutora Maria Elisabete Ramos (CECES/FEUC)

VIII -O desenvolvimento local como estratégia [8 h] - As estratégias,as políticas, os instrumentos e os agentes para o desenvolvimento.
Dr. Bernardo Campos (CCDRC e CECES/FEUC)


4. Agradeço a divulgação da existência desta Pós-Graduação. As candidaturas serão feitas online, entre 2 de Dezembro de 2010 e 31 de Janeiro de 2011, no endereço: https://inforestudante.uc.pt/nonio/security/candidaturas.do. Poderá encontrar instruções de candidatura na página Web da Pós-Graduação, em www.uc.pt/feuc/diplomas/PGEconomiaSocial/.
As propinas e emolumentos compreendem: 1) uma taxa de candidatura de 50 Euros; 2) propinas no montante de 300 Euros (que poderão ser pagas de uma só vez, até ao final de Março de 2011, ou por duas vezes, até ao final de Março e até ao final de Maio, em prestações de igual valor); 3) taxa de inscrição de 20 Euros (a pagar até ao final de Março). Os candidatos que forem admitidos serão avisados para formalizarem a matrícula até uma data a fixar.

5. Esta Pós-graduação iniciar-se-á com um


COLÓQUIO DE ABERTURA : Horizontes da economia social .


9 de março 2012 - 15h - Conferências proferidas por :

Prof. Doutor Jean-Louis Laville (Conservatoire National des Arts et Métiers - Paris)
Dr. Eduardo Graça (Presidente da Cooperativa António Sérgio para a Economia Social )
Prof. Doutor Rui Namorado (CECES/ FEUC)

10 março de 2012 - 10h e 30m - Experiências Cooperativas Vivas

Este colóquio, cujo programa mais detalhado será oportunamente anunciado, realizar-se-á com a colaboração da CASES (Cooperativa António Sérgio para a Economia Social), inserindo-se, por seu intermédio, no programa das comemorações em Portugal do Ano Internacional das Cooperativas.

6. No decorrer da Pós-Graduação vão ser proferidas pelo menos mais três conferências, por especialistas em economia social, abordando temas abrangidos pelo âmbito deste curso.


7. Haverá duas Sessões exclusivamente dedicadas à análise de testemunhos de experiências vividas, prestados por alguns destacados protagonistas da economia social. A primeira, ocorrendo no âmbito das comemorações do Ano Internacional das Cooperativas, envolverá um conjunto de depoimentos sobre as experiências vividas por alguns destacados cooperativistas, integrando-se no colóquio de abertura desta Pós-graduação. A segunda sessão realizar-se-á na parte final do curso, durante o mês de maio, envolvendo depoimentos de protagonistas relevantes das outras constelações da economia social.