sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Chavez, a liberdade de imprensa e Habermas







Pareceu-me útil transcrever o texto que se segue, apesar da sua dimensão.Foi publicado numa interessante revista brasileira de grande circulação, mas pouco difundida em Portugal: CartaCapital. Ocupa-se de Chavez e da liberdade de imprensa. Mostra como se têm contado algumas "histórias da carochinha", a propósito dele e do seu "bolivarianismo". E se será imprudente ver nele o infalível paradigma de uma nova esperança universal, pior será encará-lo com os olhos do Sr. Bush, vendo nele a perigosa raiz de todos os males.

Como podem verificar é um texto que informa e não sendo asséptico, nem cai no anátema, nem no panegírio. Aliás, também entre nós, seria bom que a comunicação social tivesse o cuidado de não ser, com demasiada frequência, uma câmara de eco acrítica da propaganda internacional da administração norte-americana.




Nem Estado nem mercado
por Antonio Luiz M. C. Costa

Se Chávez é ameaça à expressão livre, idem os oligopólios da informação


Difícil equilibrio Ninguém está acima de críticas e é compreensível que seja criticada a decisão de Hugo Chávez de não renovar a concessão da oposicionista Radio Caracas Televisión (RCTV) e transferir seu canal de tevê aberta para uma emissora estatal.

É correto criticar a atitude de Chávez na medida em que deixam de garantir diversidade, equilíbrio e acesso público, e servem para calar críticos indiscriminadamente – como, por exemplo, a disposição que prevê a punição de “desrespeito” ao governo. O presidente já detém o controle do governo federal, da maioria dos estados e municípios, do Legislativo e de boa parte do Judiciário – obtido em eleições livres e por meios legítimos, vale lembrar – e não deveria precisar de meios tão extremos para proteger a legalidade. Mas é errado tratar Chávez como a primeira e única ameaça à liberdade na Venezuela. Ameaça muito maior foi a própria mídia, durante o golpe de 2002.

Igualmente errôneo é acusá-lo de criar um monopólio da informação: isso já existia. Na pior das hipóteses, se o governo venezuelano tomasse as emissoras restantes e as controlasse diretamente, o monopólio só mudaria de mãos. Caso se queira mesmo defender a pluralidade e a liberdade de informação dos excessos de Chávez, o retorno da RCTV e do oligopólio midiático não é a solução.

As críticas devidas ao personalismo e ao autoritarismo não deveriam servir para ocultar o problema muito mais amplo da hegemonização e homogeneização da informação, na maior parte do planeta, pela grande mídia transnacional ou pelos oligopólios nacionais. A própria maneira como essa mídia tem falseado o debate venezuelano e omitido ou minimizado dados essenciais da questão é mais uma justificativa para ampliar o debate sobre a conveniência de se limitar o poder dos oligopólios da comunicação, a bem da democracia e liberdade de informação propriamente ditas.

O resultado mais comum das crises da imprensa no mundo tem sido o encolhimento do pluralismo em favor da formação de umas poucas sociedades anônimas transnacionais que não só açambarcam a distribuição de notícias e opiniões, como também a condicionam e subordinam ao lucro do conglomerado e de seus parceiros e clientes, em prejuízo da busca de qualidade e objetividade.

Em artigo para o Süddeutsche Zeitung de 16 de maio (traduzido na Folha de S.Paulo do dia 27) o filósofo alemão Jürgen Habermas manifestou-se sobre a questão a partir da situação desse jornal alemão. As famílias controladoras, insatisfeitas com a lucratividade, querem vendê-lo a investidores ou conglomerados de mídia, como já se deu com muitas publicações tradicionais e prestigiosas.

Em geral, seguem-se medidas de racionalização que reduzem o alcance e a autonomia dos jornalistas e comprometem o esforço de reportagem e análise independente – dispensa de repórteres experientes e de correspondentes no estrangeiro, por exemplo – para chegar a taxas de lucro comparáveis às de setores de ponta e promover “sinergia” com outros braços do grupo empresarial. Sobra a edição de press-releases e comunicados de agências internacionais e a promoção sensacionalista de personalidades, eventos e interesses de controladores e anunciantes espalhados por todos os setores da economia, das finanças ao cinema.

Isso é muito perturbador para um filósofo que faz do ideal de uma rede autônoma de arranjos comunicativos regida por princípios éticos e racionais o fundamento da formação da vontade e opinião pública esclarecidas e da própria democracia. Nesse setor, ao menos, Habermas recusa a hegemonia do sistema disfarçada em escolha do consumidor: “Pois essa mercadoria a um só tempo atende e transforma as preferências de seus consumidores”. Propõe a intervenção e participação do Estado na imprensa escrita, pelo meio que for adequado – subvenção estatal, renúncia fiscal ou fundações com participação pública –, como já se aceita na Alemanha e na maior parte da Europa, no que se refere à tevê.

Caso contrário, a esfera pública não seria mais capaz de desempenhar sua função de fazer do processo democrático um debate ético com resultados racionais. “Quando se trata de gás, eletricidade ou água, o Estado tem a obrigação de prover as necessidades energéticas da população. Por que não deveria prover essa outra espécie de ‘energia’, sem a qual o próprio Estado democrático pode acabar avariado?”

Um capitalismo de empresas nacionais sob controle familiar podia dar mais margem à busca de qualidade e diversidade. Empresários enquanto pessoas físicas podem ter outros objetivos que não o resultado material e imediato, tais como acumular “capital simbólico”, prestígio ou credibilidade intelectual. Podiam se dar ao luxo de aceitar uma taxa de lucro abaixo da média para manter um alto padrão de objetividade e independência, ou mesmo nadar contra a corrente. Já sociedades anônimas submetidas à busca de valorização do capital sem qualificações só sabem contabilizar dinheiro vivo, descontado a juros de mercado.

“O mercado foi outrora o cenário em que idéias subversivas puderam se emancipar da repressão estatal. Mas o mercado só é capaz de desempenhar essa função se as determinações econômicas não penetrarem nos poros dos conteúdos culturais e políticos dispersos no mercado”, concluiu Habermas.

Pois já penetraram e muito – e a conseqüência lógica deve ser buscar maneiras de tirar do mercado a hegemonia sobre o “quarto poder” – e a proposta do filósofo, se for algo mais do que uma luta de retaguarda em defesa de meras “reservas” de pensamento racional, deveria ir além da preservação da imprensa tradicional para buscar meios de dar voz àqueles que não têm capital, grande ou pequeno.

Isso não significa, bem entendido, dar ao Executivo a hegemonia sobre a mídia, como já é realidade na Rússia de Putin e uma tendência na Venezuela. Em um mundo ideal, o governo venezuelano teria recorrido a um processo público e democrático para conceder esse ou outros canais a fundações com real independência, cujo orçamento não dependa da vontade do governo ou dos interesses de patrocinadores privados, mas seja garantido por uma porcentagem dos impostos, ou outra fonte fixa de recursos.

Mas, nesse mesmo mundo, as concessões das tevês venezuelanas teriam sido cassadas há anos e seus dirigentes ainda estariam atrás das grades. O que teria acontecido, em qualquer país desenvolvido, com uma emissora que participasse de uma conspiração para depor o governo eleito de seu próprio país? Segundo Patrick McElwee, da ONG estadunidense Just Foreign Policy, “o caso da RCTV não é de censura de opinião política. Um governo, por meio de um processo falho, deixou de renovar a concessão de uma empresa que não a teria conseguido em outras democracias, inclusive os Estados Unidos. De fato é espantoso, francamente, que essa companhia tenha tido permissão de transmitir por cinco anos após o golpe e que o governo Chávez tenha esperado pelo fim da licença para lhe tirar a permissão de usar o espectro público”.

Nos dias que precederam o golpe de abril de 2002, as quatro principais redes – Venevisión, RCTV, Televen e Globovisión, apelidadas por Chávez de “Cavaleiros do Apocalipse” – trocaram a programação regular por discursos antichavistas e convocações aos espectadores para ocupar as ruas: “Nenhum passo atrás. Saia! Saia agora!” Esses anúncios eram patrocinados pela PDVSA, ainda controlada pela oposição, mas as emissoras o colocavam no ar como “de interesse público”.

Na noite do golpe, os conspiradores, inclusive o candidato a ditador Pedro Carmona, reuniram-se na emissora do poderoso empresário Gustavo Cisneros, a Venevisión. O presidente da Televen, Omar Camero, e a co-proprietária do Canal Metropolitano de Televisión (CMT), Albertina de Petricca, foram signatários, juntamente com outros empresários e militares, do decreto que empossou Carmona e dissolveu a Assembléia Nacional.

As emissoras celebraram abertamente a “renúncia” de Chávez. Mas, quando os chavistas reagiram, foi imposto um apagão noticioso. Andres Izarra, jornalista venezuelano que trabalhou como editor da CNN em espanhol antes de se tornar gerente de produção do telejornal da RCTV, recebeu instruções claras: “Nenhuma informação sobre Chávez, seus seguidores, ministros ou qualquer pessoa que possa ser relacionada a ele”.

Izarra viu os chefes suprimirem a reportagem de uma afiliada dos EUA que revelava que Chávez não havia renunciado e sim seqüestrado e preso. Também as notícias de que o golpe fora condenado por México, Argentina e França. Quando o repórter em Miraflores avisou que o palácio fora retomado por chavistas e o presidente retornava, as notícias foram trocadas por Pretty Woman e desenhos de Tom e Jerry. O jornalista decidiu dar um basta e pediu o boné. Meses depois, dizia a Naomi Klein, da revista estadunidense The Nation, que as quatro redes deveriam ter as concessões revogadas.

Apesar disso, a ONG Repórteres Sem Fronteiras assumiu a defesa incondicional e acrítica das empresas de mídia. Repetiu o discurso das emissoras golpistas, chamou o fracassado Carmona de “ex-presidente”, insistiu na mentira de que Chávez havia “renunciado” e condenou-o pelas freqüentes interrupções da programação para falar ao povo em cadeia nacional – tudo isso nas semanas seguintes à tentativa de golpe da qual elas haviam ativamente participado!

Chávez não tinha condições para punir a mídia no momento em que foi reconduzido ao palácio. Começou a acumular forças no início de 2003, quando outra tentativa de depô-lo por meio de um locaute geral lhe deu argumentos para controlar de fato a estatal petrolífera e os recursos do petróleo, criar programas sociais de grande impacto e vencer o referendo de 2004 que o consolidou, mas o momento adequado para intervir nas emissoras já passara.

Primeiro, criou uma rede de mídia estatal, que começou com a fundação da Telesur, canal de satélite, em julho de 2005, com participação de Argentina, Cuba, Uruguai e, depois, também Bolívia e Nicarágua. Em fevereiro de 2007, a Telesur comprou o canal da CMT e passou a transmitir como tevê aberta na Venezuela.

Apesar de 46% do capital da Telesur pertencer a Caracas, essa emissora não é só propaganda chavista. Dirigida por Andrés Izarra, tem jornalistas respeitados e seu conselho conta com personalidades independentes e de brilho próprio, como o Prêmio Nobel da Paz argentino Adolfo Pérez Esquivel, o escritor paquistanês Tariq Ali, o historiador Ignacio Ramonet e o programador estadunidense Richard Stallman, criador do movimento pelo software livre e do copyleft (forma de proteção dos direitos autorais que permite ao autor estabelecer as condições em que seu trabalho pode ser copiado e reproduzido sem a rigidez e as restrições do copyright).

Além de criar essa estação, Chávez decidiu aplicar a lei vigente desde antes do início de seu governo, que faz da renovação ou não das concessões de canais de rádio e tevê uma decisão administrativa do Executivo, sem necessidade de qualquer consulta. As concessões à RCTV, Televen e Venevisión, por 20 anos, foram outorgadas em 27 de maio de 1987. Desde a confirmação de Chávez no plebiscito de 2004, Cisneros aceitou um acordo pragmático com o presidente, pelo qual deixaram de se atacar mutuamente e a Televen de Camero fez o mesmo, mas a RCTV continuou a agredir o governo e a apoiar incondicionalmente a oposição. Televen e Venevisón tiveram as concessões renovadas – e não opinaram sobre o fechamento da RCTV e as manifestações que se seguiram.

No lugar da emissora de Marcel Granier (que continua a transmitir por cabo e satélite) entrou a Televisora Venezolana Social (TVes), operada por uma fundação controlada pelo governo. É cedo para avaliá-la. Em princípio deve difundir produções independentes de todos os tipos, inclusive de opinião da oposição.

Já a Globovisión, do empresário Alberto Ravell, ainda tem oito anos de concessão pela frente e a expectativa de Chávez, provavelmente, era de que o exemplo da concorrente lhe inspirasse um comportamento mais cordato. Entretanto, a rede atacou Cisneros e a Venevisión – que também se tornaram alvos das marchas de protesto da oposição – por não se solidarizar com a RCTV e fez uma cobertura tão parcial e sensacionalista quanto se poderia esperar.

Também exibiu um documentário sobre os programas e as notícias transmitidos pela RCTV durante sua história. Um trecho desse documentário mostrava o atentado de 1981 contra o papa João Paulo II ao som de uma canção do panamenho Ruben Blades, dizendo “tenham fé, que isto não acaba aqui”.

O ministro das Comunicações, William Lara, interpretou a cena como incitação “subliminar” ao assassinato de Chávez e levou o caso à Justiça. Também pediu investigação da CNN em espanhol, por mostrar cenas de uma manifestação massiva contra o assassinato de um jornalista em Acapulco, no México, como se fossem parte dos protestos contra a cassação da RCTV (a emissora reconheceu o erro e pediu desculpas) e justapor, em vídeo, Hugo Chávez a protestos contra o governo chinês e o cadáver de um suposto líder da Al-Qaeda.

Soa como paranóia, mas não totalmente injustificada: durante a campanha para o referendo de 2004, o ator venezuelano Orlando Urdaneta pediu o assassinato de Chávez “com um rifle de mira telescópica” em um programa dirigido pela jornalista Maria Elvira, do canal 22 a cabo da Flórida. A própria apresentadora, em 2005, juntamente com os convidados, um venezuelano residente em Miami e um ex-agente da CIA, defendeu o assassinato de Chávez por ação militar dos EUA.

A associação de Chávez ao terrorismo começou a ser forçada quando a Telesur, anunciada como concorrente de estadunidenses como essa, foi apresentada pelas agências internacionais como a “Al-Jazira do Sul”. Em janeiro de 2006, quando a Telesur firmou de fato um acordo de cooperação com a emissora do Catar, o deputado republicano Connie Mack, da Flórida, levou a acusação para além do subliminar: “Quando Chávez lançou a Telesur, eu salientei muitas preocupações sobre ele estar criando uma rede inspirada na Al-Jazira. Hoje, ele foi ainda além. Não é suficiente para ele espalhar sua propaganda socialista pela América Latina. Agora ele fez uma parceria com a tevê terrorista (sic) original”.

Ao roubar audiência da CNN e da Fox e permitir a povos dos países periféricos ver a realidade com outros olhos, as duas redes, é claro, cometem um atentado contra o oligopólio da mídia global pelo Primeiro Mundo, um cartel dedicado – com a exceção parcial do canal Euronews, das tevês públicas européias – a apresentar o ponto de vista dos grandes grupos transnacionais como a única verdade factual.

2 comentários:

aminhapele disse...

Oportuna chamada de atenção e artigo muito interessante.

aminhapele disse...

Chamada de atenção oportuna e artigo muito interessante.