quarta-feira, 23 de abril de 2008

O Paraguai e a esquerda latino-americana






A esquerda ganhou as eleições presidenciais no Paraguai, pondo fim a 60 anos de domínio do Partido Colorado. Não conheço com exactidão a relação de forças na instância parlamentar, mas seguramente que ela não reflecte um domínio absoluto do vencedor.

O Presidente eleito, Fernando Lugo, um ex-bispo católico que a Igreja de Roma sancionou, por ter entrado na política activa, liderou uma aliança eleitoral de largo espectro, que vai da extrema-esquerda ao centro-direita. No entanto, o seu programa e o seu posicionamento, em termos genéricos, identificam-se com os da esquerda latino-americana. Está inscrito neles , como vector central, o combate à pobreza.

Os analistas políticos tendem a situá-lo no grupo mais moderado dos dirigentes da esquerda latino-americana. O próprio Lugo se posicionou, a si próprio, entre Chavez e Lula, tendo assumido, já depois de ter sido eleito, uma forte identificação com o actual presidente do Uruguai, Tabajara Vasquez.

Aliás, se é certo que, nos últimos anos, a esquerda foi ganhado sucessivamente as eleições, em vários países da América Latina, também é verdade que os caminhos seguidos, por cada um dos países em que isso ocorreu, reflectem uma clara heterogeneidade. Assim, podemos encontrar desde opções moderadas, baseadas em governos de coligação, até governos de um partido dominante com forte radicalidade anti-capitalista, mais distantes ou mais próximos do estilo populista. Mas, se percorrermos os países em que uma dessas esquerdas ganhou, ficamos com um panorama impressionante: Argentina, Chile, Uruguai, Bolívia, Brasil, Equador, Venezuela, Nicarágua. E agora o Paraguai.

Na América do Sul de línguas ibéricas, apenas escapam actualmente à hegemonia da esquerda a Colômbia e o Peru. E, neste último caso, está no poder um partido tradicional, que se afirma de esquerda moderada, com a particularidade de ser o único governo desse tipo que venceu eleitoralmente um forte bloco político situado à sua esquerda. Na América Central, nos países que não seguiram a Nicarágua, a esquerda, ainda que minoritária, tem já uma expressão significativa.

No México, o actual Presidente é o segundo do mesmo partido, o PAN (Partido da Acção Nacional), partido de direita que interrompeu décadas de domínio do PRI (Partido Revolucionário Institucional), um partido que originariamente se podia considerar de esquerda, mas que se foi transformando num partido-regime, minado pela corrupção, conservador e autoritário. Mas na última década, emergiu, a partir de uma cisão do PRI, o PRD ( Partido da Revolução Democrática) o qual só foi derrotado nas últimas eleições presidenciais, por uma fraude com que ainda se não conformou. É um partido de esquerda, com um enorme poder de mobilização política e social, que governa alguns do estados do México, entre os quais o mais importante, aquele em que se situa a capital federal.

Todos estes governos conquistaram o poder por eleições e todos continuam a respeitar as regras da alternância democrática. As suas diferenças não os impedem de se apoiarem mutuamente na resistência à vontade de domínio dos USA, com os quais aliás os vários países têm relações muito distintas, indo do confronto à relativa cordialidade.

Esta solidariedade, no essencial, com respeito pelas diferenças que os separam, longe de ser uma fraqueza, é um dos seus melhores trunfos e um sinal eloquente de novidade. Esta entreajuda entre opções políticas que, assumindo-se como diferentes, sabem que pertencem a uma mesma área política, em sentido amplo, no seio da qual se movimentam com plena autonomia, é benéfica para todos.

É natural que, nalguns destes países, os actuais governos venham a perder eleições, mas já é irreversível a afirmação da esquerda, como alternativa legítima e crível, em todos eles. É pouco? Não esqueçamos que houve um tempo em que só isso era impensável. O drama de Salvador Allende no Chile é disso um exemplo inesquecível.

Em paralelo, em Cuba, parecem aflorar tímidos sinais de mudança. Não é evidente o que aí vai acontecer, parecendo agora não ser de excluir, por completo, uma transição relativamente suave. Aliás, do ponto de vista da reprodução do seu modelo político interno, Cuba não teve qualquer êxito, já que nenhum outro país da América Latina adoptou o modelo cubano. Na verdade, mesmo a Venezuela, que tão próxima está dela, no plano internacional, escolheu um caminho interno bem diferente. Mas, em termos geopolíticos, pode dizer-se que Cuba se insere num contexto latino-americano que está muito longe de lhe ser hostil. E é, precisamente, esta boa vizinhança que aumenta as hipótese de uma transição suave para um regime democrático, o que poderá significar uma salvaguarda dos aspectos positivos do modelo cubano e um caminho rápido para uma democracia digna desse nome. Isto é, um regime de liberdade que garanta uma vida digna a todos os seus cidadãos.

Situação oposta parece enfrentar o grande vizinho do Norte, já que, tendo esconjurado o fantasma da disseminação continental da revolução cubana, perdeu a forte hegemonia que tinha sobre a América Latina. Deixou de poder dar ordens e de impor medidas aos “súbditos “ do Sul. Paradoxalmente, Cuba foi vencida no que respeita à irradiação do seu modelo, mas foi vencedora ao ter contribuído para um claro enfraquecimento do papel dominador dos USA na região.

É claro, que se a nova administração americana romper com a deriva imperial e neoconservadora de Bush, pode abrir-se um tempo novo nas relações dos USA com os vizinhos do Sul. Já não, como se houvesse a Norte um Senhor e a Sul os seus súbditos, mas como se houvesse uma atmosfera cooperativa entre todos os povos da América, protagonizada por Estados soberanos, que se respeitem e estejam em condições de se fazerem respeitar.

Tudo isto será mais fácil e menos conflituoso, se rapidamente se desenvolverem estruturas internacionais reguladoras da globalização capitalista predatória, de modo a contribuírem para a transformar, a prazo, numa globalização sucessivamente mais solidária e animada por uma crescente energia emancipatória.

Mas, esta viragem histórica à esquerda, na América Latina, que tem vindo a consumar-se na última década, para além de todas as debilidades e incertezas que ainda a constrangem, tornou já absolutamente claro que os povos latino-americanos não admitirão mais ser um simples terreno de caça de multinacionais, que lhes confiscam os recursos, pilham as riquezas e exploram o trabalho dos seus cidadãos.

1 comentário:

aminhapele disse...

Mais uma boa e útil "lição".
Obrigado.