Neste tempo de ideias feitas e palavras gastas, neste carnaval enlouquecido de slogans sem sentido, neste tempo de ideias que não crescem, de palavras tão previsíveis que apenas conseguem abrir as portas do silêncio, neste tempo pequeno e abafado, homenageemos Jorge de Sena, deixemos entrar neste dia cinzento a sua lira ardente, o seu verbo tenso e a sua poesia de liberdade e amargura.
Homenageemo-lo em três momentos: recordando um dos seus poemas, lembrando uma revista que o reviveu e transcrevendo um testemunho qualificado.
1º Momento
A MISÉRIA DAS PALAVRAS
(05/08/1962)
Não: não me falem assim na miséria, nos pobres,
na liberdade.
Se a miséria e a pobreza
fossem o vómito que deviam ser posto em palavras,
a imaginação possuída e vomitada que deviam ser,
viria a liberdade por acréscimo,
sem palavras, sem gestos, sem delíquios.
Assim, apenas se fala do que se não fala,
apenas se vive do que não se vive,
apenas liberdade é uma miséria
sem nome, sem futuro, sem memória.
E a miséria é isso: não imaginar
o nome que transforma a ideia em coisa,
a coisa que transforma o ser em vida,
a vida que transforma a vida em algo mais
que o falar por falar.
Falem. Mas não comigo. E sobretudo
sejam miseráveis, e pobres, sejam escravos,
no silêncio que à linguagem faz
imaginar-se mais que o próprio mundo.
2º Momento
A importante revista de poesia "Relâmpago ", publicada em língua portuguesa, dedicou o seu nº 21 a Jorge de Sena. Nele incluem-se ensaios, sobre o grande poeta, de Fernando Pinto do Amaral, de Gastão Cruz, de Jorge Fazenda Lourenço, de Luís Adriano Carlos e de Margarida Braga Neves. Nesse número podem ainda ler-se diversos testemunhos acerca de Jorge de Sena.
3º Momento
Para culminar a homenagem achei que o depoimento do escritor e intelectual brasileiro António Candido, galardoado com o Prémio Camões de 1998, publicado no número da "Relâmpago", acima referido, era o mais adequado. Ei-lo:
Apenas lembrando
António Candido
Conheci Jorge de Sena em 1959. Eu era professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Assis e ele apareceu lá conduzido por António Soares Amora, que estava dirigindo no interior do Estado de São Paulo esse novo instituto oficial de língua e literatura concebido segundo moldes diferentes. Sena viera participar de um Colóquio de Estudos Luso-Brasileiros na Bahia e aproveitou para ficar no Brasil, por causa da sua situação política de oposicionista à ditadura portuguesa. Amora convidou-o para ser professor de Teoria da Literatura no Departamento de Letras Venáculas, do qual eu fazia parte. Ele veio com a família e pudemos a partir de então conviver na mesma sala de trabalho durante o ano de 1960. Quando voltei à Universidade de São Paulo, em dezembro do mesmo, o nosso contacto prosseguiu, não apenas pela correspondência, mas porque sempre nos visitava nas suas vindas à capital. E o teor das nossas relações pode ser avaliado pelo fato de sermos, minha mulher e eu, padrinhos de sua filha Maria José, nascida em Araraquara. Jorge se transferira de Assis para a Faculdade de Filosofia dessa cidade, onde ensinava Adolfo Casais Monteiro e onde ficou até ir para os Estados Unidos, em 1965. No ano de 1968, estando eu em Yale como professor visitante, promoveu a minha ida à sua Universidade de Wisconsin e, em seguida, Mécia e ele me acompanharam gentilmente a Chicago. Foi a última vez que o vi.
Bastava conversar algum tempo com Jorge de Sena para perceber as suas fagulhas de genialidade. Na sua personalidade vulcânica, talvez o que mais impressionasse fosse a estrutura de contrastes. Era versátil de modo extensivo e, ao mesmo tempo, densamente profundo. Era arrebatado até a explosão e concentradamente reflexivo. A sua informação era inacreditável e a sua capacidade de captar conhecimento chegava a causar espanto pela rapidez e a penetração, só comparáveis à presteza com que traduzia os resultados em escrita.
A propósito conto apenas um caso, ou melhor, tomo a liberdade de repetir mais uma vez o que não canso de relatar quando se fala nele. Foi o seguinte: certo dia,
em Assis, eu lhe disse que bem poderia fazer para a nossa Revista de Letras uma resenha do livro de Helen Gardner que eu acabara de ler, The Business of Criticism, no qual havia reparos pertinentes sobre certos aspectos "autotélicos" do netv criticism. E passei-lhe o volume às seis horas da tarde, quando saímos da Faculdade, à qual voltaríamos no dia seguinte às oito da manhã, menos ele, que chegava sempre depois. De fato, ali pelas dez entrou velozmente em nossa sala, modo muito seu, e me entregou a resenha. Pasmado, pensei com os meus botões que não poderia ser coisa sólida, pois ele saíra com o livro dezasseis horas antes, durante as quais jantara, convivera com a família, dormira.
Que tempo poderia ter sobrado para ler o livro, pensar e escrever a respeito? Desconfiado, li o seu texto e verifiquei que era não apenas de grande acuidade mas apontava coisas que eu não tinha percebido...Essa prodigiosa força mental aparece em toda a actividade de Jorge de Sena manifestando-se em níveis elevados na poesia, na ficção, nas monografias, no ensaio,
- tanto o ensaio que depende mais da intuição e do golpe de vista, quanto o que pressupõe fundamentação rigorosa.
No entanto, não era um estudioso fechado em suas obsessões, nem um confinado em si mesmo. Estava sempre disposto à conversa e era muito acessível como professor e como colega. Quem o procurasse com algum problema a debater, alguma consulta a fazer, algum esclarecimento a pedir o encontrava sempre solícito, disposto a atender com paciência, sem fazer caso do tempo. E, o que é mais raro, com interesse real pelo que lhe submetiam, como se a preocupação do interlocutor se tornasse coisa dele. Isso se explica porque a sua inteligência poderosa estava associada a uma vibração emocional e a uma capacidade de entusiasmo que transformavam cada assunto em paixão e cada ato em empenho. Esses traços lhe permitiram extrair da sua formação heterodoxa e múltipla uma coerência fervorosa, graças à qual articulou com harmonia a riqueza da sua rara constituição mental.
António Candido
Conheci Jorge de Sena em 1959. Eu era professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Assis e ele apareceu lá conduzido por António Soares Amora, que estava dirigindo no interior do Estado de São Paulo esse novo instituto oficial de língua e literatura concebido segundo moldes diferentes. Sena viera participar de um Colóquio de Estudos Luso-Brasileiros na Bahia e aproveitou para ficar no Brasil, por causa da sua situação política de oposicionista à ditadura portuguesa. Amora convidou-o para ser professor de Teoria da Literatura no Departamento de Letras Venáculas, do qual eu fazia parte. Ele veio com a família e pudemos a partir de então conviver na mesma sala de trabalho durante o ano de 1960. Quando voltei à Universidade de São Paulo, em dezembro do mesmo, o nosso contacto prosseguiu, não apenas pela correspondência, mas porque sempre nos visitava nas suas vindas à capital. E o teor das nossas relações pode ser avaliado pelo fato de sermos, minha mulher e eu, padrinhos de sua filha Maria José, nascida em Araraquara. Jorge se transferira de Assis para a Faculdade de Filosofia dessa cidade, onde ensinava Adolfo Casais Monteiro e onde ficou até ir para os Estados Unidos, em 1965. No ano de 1968, estando eu em Yale como professor visitante, promoveu a minha ida à sua Universidade de Wisconsin e, em seguida, Mécia e ele me acompanharam gentilmente a Chicago. Foi a última vez que o vi.
Bastava conversar algum tempo com Jorge de Sena para perceber as suas fagulhas de genialidade. Na sua personalidade vulcânica, talvez o que mais impressionasse fosse a estrutura de contrastes. Era versátil de modo extensivo e, ao mesmo tempo, densamente profundo. Era arrebatado até a explosão e concentradamente reflexivo. A sua informação era inacreditável e a sua capacidade de captar conhecimento chegava a causar espanto pela rapidez e a penetração, só comparáveis à presteza com que traduzia os resultados em escrita.
A propósito conto apenas um caso, ou melhor, tomo a liberdade de repetir mais uma vez o que não canso de relatar quando se fala nele. Foi o seguinte: certo dia,
em Assis, eu lhe disse que bem poderia fazer para a nossa Revista de Letras uma resenha do livro de Helen Gardner que eu acabara de ler, The Business of Criticism, no qual havia reparos pertinentes sobre certos aspectos "autotélicos" do netv criticism. E passei-lhe o volume às seis horas da tarde, quando saímos da Faculdade, à qual voltaríamos no dia seguinte às oito da manhã, menos ele, que chegava sempre depois. De fato, ali pelas dez entrou velozmente em nossa sala, modo muito seu, e me entregou a resenha. Pasmado, pensei com os meus botões que não poderia ser coisa sólida, pois ele saíra com o livro dezasseis horas antes, durante as quais jantara, convivera com a família, dormira.
Que tempo poderia ter sobrado para ler o livro, pensar e escrever a respeito? Desconfiado, li o seu texto e verifiquei que era não apenas de grande acuidade mas apontava coisas que eu não tinha percebido...Essa prodigiosa força mental aparece em toda a actividade de Jorge de Sena manifestando-se em níveis elevados na poesia, na ficção, nas monografias, no ensaio,
- tanto o ensaio que depende mais da intuição e do golpe de vista, quanto o que pressupõe fundamentação rigorosa.
No entanto, não era um estudioso fechado em suas obsessões, nem um confinado em si mesmo. Estava sempre disposto à conversa e era muito acessível como professor e como colega. Quem o procurasse com algum problema a debater, alguma consulta a fazer, algum esclarecimento a pedir o encontrava sempre solícito, disposto a atender com paciência, sem fazer caso do tempo. E, o que é mais raro, com interesse real pelo que lhe submetiam, como se a preocupação do interlocutor se tornasse coisa dele. Isso se explica porque a sua inteligência poderosa estava associada a uma vibração emocional e a uma capacidade de entusiasmo que transformavam cada assunto em paixão e cada ato em empenho. Esses traços lhe permitiram extrair da sua formação heterodoxa e múltipla uma coerência fervorosa, graças à qual articulou com harmonia a riqueza da sua rara constituição mental.
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