sexta-feira, 25 de abril de 2008

25 de Abril - manhã submersa


Temos sido o futuro desse Abril, com a ligeira amargura de nos termos sonhado de uma maneira mais ampla e mais limpa do que aquilo que fomos. Habituámo-nos à liberdade com sofreguidão, naqueles anos tão rápidos e tão cheios que nos trouxeram para fora do passado.

Os jovens vão cantar Abril como música ao longe. Os mais velhos vão senti-lo numa brisa já distante coberta de saudade.

Os momentos mágicos da grande mudança vão ser recordados com emoção e detalhe. Os que ainda os podem recordar vão perder-se na memória de cada minuto com a emoção única de o terem vivido.

O país lento e arrastado que Abril extinguiu vai rasgar mais fundo as paredes da memória. Meio século de sombra e humilhação. Tempo de mordaças e prisões. O exílio da liberdade.

Os optimistas vão levar mais longe o seu optimismo e vão abrir as portas da alegria, celebrando um Abril que sonharam como se o vivessem realmente. Os pessimistas vão cobrir de luto o seu pessimismo e numa angústia rasgada vão perguntar: Foi para isto que fizemos o 25 de Abril ?

Todos temos o direito e o dever de homenagear esse mágico dia de invenção do futuro procurando compreender o caminho percorrido, valorizando o que foi conseguido e compreendendo, procurando compreender, porque não chegámos ainda mais longe. E chegar mais longe sob o manto de Abril é conquistar uma sociedade justa e livre, cada vez mais justa, cada vez mais livre.

Discute-se hoje se realmente se cumpriram os célebres três dês : descolonizar, democratizar, desenvolver.

Quanto ao D de descolonizar, parece ter-se cumprido por completo, a não ser que entendamos que há agora um caminho de particular fraternidade entre todos os povos de língua portuguesa que deve continuar a ser percorrido, abrindo assim a porta à incompletude de uma tarefa por dentro dessa letra.

Quanto ao D de democratizar, se dissermos que nos podemos comparar às democracias mais amplas e mais profundas actualmente existentes, não estaremos a dar por terminado um processo que verdadeiramente nunca tem fim, mas estamos a reconhecer com justiça o caminho percorrido. Reforcemos a vontade de ir mais longe, mas não cometamos o erro de desvalorizar o já conseguido.

Quanto ao D de desenvolver, se compararmos a nossa situação em 1974 com a que vivemos agora, mesmo tendo em conta o percurso feito pela humanidade no seu todo, não podemos deixar de constatar que a diferença é enorme. Estamos hoje entre os trinta países mais desenvolvidos do mundo e estamos integrados num bloco de países que se situa entre os mais relevantes na cena mundial.

E, no entanto, pode dizer-se, que desde sempre foi neste D que pusemos o peso das nossas desilusões. Quando o sonho de uma vida melhor para todos os portugueses ( para todos os portugueses concretos, realmente existentes) tinha na nossa Constituição o nome de socialismo, víamos nessa palavra o porto de chegada da grande viagem de um desenvolvimento que concebíamos como um processo complexo que estava longe de caber na frieza dos números. Como o porto parece ter desaparecido, a viagem que nos levaria até ele, foi ganhando a cor melancólica dos sonhos adiados, das aventuras interrompidas, das empresas extraviadas nas agruras da má sorte.

E, no fundo, este D estava à partida inquinado por uma ambiguidade essencial. Uns liam o desenvolvimento como a exuberância dos negócios, em regra dos seus negócios ou dos negócios que lhes dessem proveito; outros viam o terceiro D como a porta de saída da miséria, como o fim da injustiça estrutural que os atingia desde sempre. Os mandatários que se profissionalizaram no exercício do poder faziam crer que essas duas visões se completavam harmoniosamente e, de tanto o dizerem, talvez tenham passado a acreditar no que tantas vezes diziam.

O problema é que a sociedade não tem dentro de si uma máquina de fazer riqueza que produza automaticamente o fim da miséria numa conjugação virtuosa automática. Esta sociedade manteve a mesma lógica estrutural que seguia antes do 25 de Abril. Foi regulada , contida, limaram-se algumas das suas arestas mais predatórias, mas não mudou de lógica. Ou seja, mantém uma lógica que geralmente implica que a exuberância dos negócios se traduza no exacerbamento das desigualdade sociais.

Em Portugal e no mundo, a ideologia conservadora tem vindo a conquistar um novo poder de enquadramento simbólico que, no essencial, assenta na ideia de que o capitalismo já não existe e que o socialismo é a designação de um excesso de intervenção do Estado na economia, tendencialmente inclinado a sufocar a criatividade e a iniciativa. A esquerda governamental tem-se esmerado no papel necessário de ir gerindo o capitalismo, quando exerce o poder, mas tem-se esquecido de visar uma sociedade pós-capitalista, nas medidas estruturais que toma. A esquerda extra-governamental, sentindo-se acossada pela verificação do equívoco soviético, fechou-se no protesto e na resistência; limitada ao exacerbar de radicalidades pontuais, perdeu a imaginação do futuro.

No fundo, a ideologia dominante inculca a ilusão de que o capitalismo é o fim da história, sendo assim o modo de ser natural das sociedades modernas. A esquerda não encontrou ainda um caminho alternativo que fundisse num projecto e num programa uma visão alternativa, que, sem sair do reformismo, não perdesse a alternatividade.

Ora, esta sociedade tem uma maneira de produzir riqueza indissociavelmente geradora da produção de desigualdade social , de dificuldades e de miséria para muitos e de ócio, prazer e tranquilidade relativa, para alguns.

Nestas pequenas frases não cabe, evidentemente, o enunciado rigoroso e completo desta problemática , tão importante e tão complexa. Nesta circunstância, apenas se pretende referi-la.

No essencial deve dizer-se que os cidadãos e os partidos de esquerda, principalmente os que exerçam o poder político, devem compreender e fazer compreender, que uma parte dos problemas que afligem os portugueses podem não ser o reflexo de erros de governação , mas sim os resultados naturais do tipo de sistema económico em que vivemos, o capitalismo. Não culpemos a democracia das consequências naturais do capitalismo. Não é para fora da democracia, rumo à escuridão messiânica autoritária, mais ou menos disfarçada, que temos que caminhar. Se queremos uma sociedade justa, é o pós-capitalismo que temos que antecipar.

Embora todos os erros devam ser sempre corrigidos, numa tarefa sem fim, o que de essencial falta à Revolução de Abril não é a correcção de alguns erros, mais ou menos relevantes. O que verdadeiramente lhe falta é o seu futuro, um futuro que possa projectá-la neste novo século, gerando uma sociedade justa, livre, criativa e ambientalmente sustentável. Só assim, Abril se mostrará completo, finalmente liberto das sombras do passado. Esse Abril é o nosso futuro E vale a pena.



2 comentários:

Anónimo disse...

Bom texto. Gostaria de o subscrever.

aminhapele disse...

Também eu gostaria de ter engenho e arte para escrever este texto.
Assim,limito-me a declarar o meu total acordo.