terça-feira, 24 de março de 2009

O Fantasma de Bolonha


Dizem os jornais que os estudantes vão hoje protestar para a rua contra a deriva desencadeada pelo chamado Processo de Bolonha, que levou a uma profunda alteração da estrutura e do funcionamento das Universidades e das outras Instituições de Ensino Superior. Entretanto, começa a emergir nos meios universitários europeus um murmúrio crescente de descontentamento, pontuado aqui e ali por manifestações públicas mais ostensivas.


Hoje, é, aliás, um dia simbólico na história do movimento estudantil português. Foi a 24 de Março de 1962 que, em Lisboa se desencadeou a crise académica de 1962, que se estenderia a Coimbra. Aproveito para saudar os estudantes que então se bateram por uma outra Universidade e por um outro país. Não esqueço que foi essa crise que levou a que me expulsassem da Universidade, onde hoje sou professor. Essa expulsão é a mais honrosa distinção que até hoje me foi concedida.



Por tudo isso, julgo apropriado transcrever um excerto da moção sectorial, "Educação - Libertar e Desenvolver", apresentada, recentemente, ao Congresso do PS e da qual , em conjunto com José Gama, Fernanda Campos, Júlio Mota e Margarida Antunes, fui um dos autores.


" É muito importante que se proceda a uma avaliação objectiva das consequências do chamado Processo de Bolonha e do Regime Jurídico do Ensino Superior que procurou projectá-lo no nosso país. Desse modo, poder-se-á preparar com cuidado um sério processo de correcção dos seus aspectos que claramente prejudicam a qualidade e o desenvolvimento do ensino superior em Portugal, fazendo-o ainda correr enormes riscos no futuro imediato.


De facto, tal como foi materializada, a reforma efectuada corre o risco de falhar a prossecução dos objectivos que consubstanciaram a sua razão de ser, acabando por se traduzir na prática numa degradação do sistema do ensino superior português.


Algumas incongruências parecem, na verdade, evidentes. Procurou-se estimular a aquisição de novas competências, como se elas não dependessem do alargamento dos conhecimentos correspondentes. Exacerbou-se um certo imediatismo do concreto, como se o raciocínio abstracto não fosse um esteio determinante da capacidade de pensar. Quando a complexidade do real e a quantidade da informação crescem exponencialmente, reduziram-se as cargas horárias e o número de anos lectivos, aligeirando-se os currículos. Diversos graus, que continuam a ter o mesmo nome do que aquele que tinham os graus pré- Bolonha, para serem conseguidos, estão sujeitos a níveis de exigência muito menores. E esta discrepância grosseira introduz uma profunda injustiça relativa na concorrência entre diplomados por instituições de ensino superior portuguesas, que prejudica gravemente todos os graduados anteriores ao Processo de Bolonha.


Toda a lógica dos novos órgãos de poder nas Universidades e no Politécnico reflecte uma enorme desconfiança no papel que aí deve ser protagonizado pelos estudantes, bem como na própria democracia. Nalguns casos, ficou-se mais próximo do tipo de estruturas da Universidade do salazarismo do que da Universidade que surgiu com o 25 da Abril.


A Universidade como espaço democrático, científico e crítico, está posta em causa e ficam longe de ser realizáveis os objectivos gerais que a política global lhes atribui, e, em especial, a Estratégia de Lisboa. Tendo a mudança ocorrida decorrido com completa desconsideração pelos aspectos políticos de médio prazo implicados pela reforma e pelas suas consequências imediatas, as boas intenções afixadas pelos seus arautos correm o risco de desembocarem numa enorme operação de confisco de bens públicos por grupos de interesses privados. Confisco, expresso em novos mandarinatos corporativos, tanto mais prováveis e incontroláveis, quanto mais habilmente utilizarem as novidades jurídicas aconselhadas pela tutela.


Tudo isso se agrava com uma divergência crescente entre os ambiciosos objectivos fixados às instituições de ensino superior e os recursos financeiros que lhes são atribuídos. Como é possível levar a bom porto uma estratégia de efectiva transformação de um sector que em simultâneo se estrangula financeiramente?


E esta incongruência é tão acentuada que podemos ser levados a pensar que o Processo de Bolonha é, no essencial, uma retórica de mudança, destinada a fazer passar despercebido o seu principal objectivo: diminuir as despesas públicas com as instituições públicas do ensino superior, diminuir a prazo a responsabilidade do Estado pelo ensino superior público.


Por último, parece claro que o PS não pode seguir para o ensino superior a mesma lógica que já recusa expressamente para a sociedade em geral. Na verdade, o pensamento que guiou as acções que no plano económico conduziram o mundo para o drama que vivemos, é do mesmo tipo daquele que informou o Processo de Bolonha e o RJIES. Seria trágico que só acordássemos para essa perigosa incoerência, quando nas nossas Universidades eclodisse uma crise paralela à que hoje abala o mundo da economia."

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