sexta-feira, 13 de março de 2009

A crise e a esquerda


A crise enterrou a pesporrência com que os ideólogos neoliberais procuravam paralisar a resistência intelectual dos que não desistem de um mundo melhor. Não enterrou o ilusionismo dos que continuam a querer vender gato por lebre, atribuindo a meia dúzia de bodes expiatórios a responsabilidade exclusiva por uma crise que reflecte as inércias mais fundas da lógica capitalista.

A questão central que nos deve preocupar é a de saber em que medida podemos gerar uma pilotagem eficaz, através de um difícil trajecto que nos permita superar o capitalismo, rumo a um pós-capitalismo que se traduza num caminho democrático, solidário e justo, para a liberdade e para a igualdade. A razão para que os socialistas o sejam, é a luta para que esse pós-capitalismo reflicta os valores, projectos e ideias que constituem a identidade socialista e se reflectem no correspondente horizonte.

Por isso, nos parece útil debater este tipo de problemática, já que é no confronto de ideias que se aguça o pensamento.

É assim que chamamos a vossa atenção para um texto de
Immanuel Wallerstein publicado na revista norte-americana The Nation, [ "Follow Brazil's Example"] do qual nos permitimos também salientar alguns extractos. Nesse texto, o sociólogo norte-americano começa por nos dizer que:


"There seem to me to be two occasions, which require two plans for the world left, and in particular for the US left. The first occasion is in the short run. The world is in a deep depression, which will only get worse for at least the next one or two years. The immediate short run is what concerns most people who are facing joblessness, seriously lowered income and in many cases homelessness. If left movements have no plan for this short run, they cannot connect in any meaningful way with most people. "


E, mais adiante, prossegue: "The second occasion is the structural crisis of capitalism as a world system, which is facing, in my opinion, its certain demise in the next twenty to forty years. This is the middle run. And if the left has no plan for this middle run, what replaces capitalism as a world system will be something worse, probably far worse, than the terrible system in which we have been living for the past five centuries.
The two occasions require different, but combined, tactics. What is our short-run situation? The United States has elected a centrist president, whose inclinations are somewhat left of center. The left, or most of it, voted for him for two reasons. The alternative was worse, indeed far worse. So we voted for the lesser evil. The second reason is that we thought Obama's election would open up space for left social movements. "


Concluindo, nos seguintes termos:"So, to resume: work in the short run to minimize pain, and in the middle run to ensure that the new system that will emerge will be a better one and not a worse one. But do the latter without triumphalism, and knowing that the struggle will be tremendously difficult".

10 comentários:

gui castro felga disse...

falas de revolução, rui? =) pois, a alteração de que precisamos no mundo é tão profunda...

o socialismo anda tão longe, e estas políticas reformistas que mundialmente só tentam salvar o neo liberalismo... como fazer isso?

e achas que o PS pode ser parte da solução nesse caminho a fazer, de começar a ver o desenvolvimento de outro modo, o trabalho, a distribuição de recursos de outro modo? ainda há muitos como tu, com o sonho?

beijinho

Anónimo disse...

Quando a frescura da juventude madura dialoga connosco, sentimo-nos mais vivos.

Se revolução é o assalto ao "palácio de inverno" certamente que não sonho com ela. Não há uma sede de poder mundial que possa ser assaltada e a partir da qual se impulsione globalmente uma mutação global.

Por isso, me identifico com a perspectiva de um autor que muitos de nós admiram desde os anos 60: André Gorz[nos primórdios deste blog foi aqui infelizmente assinalada a sua morte]. Ele fala de um "reformismo revolucionário"; mutação qualitativa radical no longo prazo, alcançada através de uma estratégia reformista.

Encaro a vida política como um combate entre as duas faces de cada sociedade: a dos que ganham com o tipo de sociedade existente e a dos que são prejudicados por causa dele.

Mesmo que os seus protagonistas o não queiram ou não sintam não deixam de estar num dos lados.

O PS é o partido dominante da metade subalterna, que não deixa de ser subalterna por ele deter o poder institucional. O facto de o seu grupo dirigente poder não ver a sua própria posição nestes termos não a altera, embora possa perturbar a eficácia e o sentido da sua acção.

Se o PS levar longe de mais durante tempo demais a sua desconformidade com o essencial dos interesses e auto-represntações do bloco social em que ele e os outros partidos de esquerda se inserem, faz aumentar o risco de um desmoronamento político. Será então substituído por um outro partido. Mas esse processo será naturalmente demorado, pelo que, durante um período longo, a parte subalterna da sociedade ficará sem representação institucional, sem hipótese de ser poder. Será um período arriscado, durante o qual a sociedade se pode degradar. O sentido mais fundo da minha militância no PS tem, neste momento, como primeiro objectivo contribuir para evitar esse desmoronamento.

Noutros tempos, havia a crença ingénua de que os sofrimentos do presente eram garantia de amnahãs que haveriam de cantar. Hoje, é mais realista pensar-se que o futuro depende do que fizermos no presente. Se não formaos movidos pelo sonho tornaremos certo o pesadelo.

Um beijo.

Anónimo disse...

Erro da postagem anterior: o anónimo sou eu.

Anónimo disse...

Bolas : não consigo dizer que sou o próprio Rui Namorado.

gui castro felga disse...

reforma vs revolução.
a mais velha discussão das esquerdas... A participação democrática é sempre reformista, creio eu. Pelo menos as propostas de esquerda no parlamento ou em todos os orgãos democráticos, quer da rive-gauche do PS quer do BE ou do PC são sempre tentativas de reforma do real... ainda não chegamos ao ponto do golpe de estado nem do assalto ao palácio... =)

Concordo com a tua análise sobre o perigo para o próprio PS do afastamento entre ele e a sua base, os tais que «são prejudicados pela sociedade existente». Não me parece é o PS que governa seja parte da solução...

A minha questão é mais esta: a sociedade neoliberal não depende da miséria de boa parte do mundo? Quero dizer, para nós termos os padrões de consumo que temos, não será necessário que na China se trabalhe por um prato de arroz? Pode este sistema ser reformável? Será que o neoliberalismo (que o PS anda a tentar defender no meio desta crise toda, tentando nomeadamente salvar a todo o custo a banca...) tem ALGUMA hipótese de ajudar a ultrapassar a injustiça mundial, nacional, entre os que ganham com o sistema e os que perdem com ele?

Eu percebo a luta pelo 'mal menor', Rui. Mas acho que isso são cuidados paliativos para o doente não ir desta para melhor... Será que não precisamos de uma mudança de paradigma, de vez? Se não mudarmos tudo, não voltará tudo ao mesmo? Não teremos uma crise igualzinha daqui a pouco tempo?

beijinho

Anónimo disse...

1. Há um único PS. Heterogéneo, é certo,mas um só. Aliás, com quarenta por cento de apoio do eleitorado tem que ser forçosamente heterogéneo.Isso causa problemas e dificuldades, mas ficcionar a multiplicidade de PSs é apenas iludir um problema.

2. O problema essencial não estará tanto nos padrões de consumo excessivos para o que é ambientalmente comportável. Está na desigualdade.Não são os pobres do Ocidente que podem estar a consumir em excesso. São os ricos.

3. Não é indiferente o facto de um partido praticar o reformismo, imaginando-se revolucionário. Aliás, um dos dramas da esquerda é o facto de que, sendo toda ela reformista, não está verdadeiramente praparada para o ser. Na verdade, até há poucos anos atrás as duas grandes famílias da esquerda( socialistas e comunistas) estavam possuídas pela mesma aposta total e exclusiva no papel transformador do Estado. Apenas acontecia que uns apostavam numa ditadura de classe como cura provisória para uma sociedade doente de capitalismo, outros apostavam numa vitória eleitoral para a partir de um poder democrático transformarem gradualmente o capitalismo em socialismo.

Ora a complexidade do reformismo está no facto de, se quiser ter êxito, ter que envolver poderosas dinâmicas socias e culturais transformadoras, em conjugação com as acções do poder político institucional. Um partido que se queira assumir como verdadeiramente reformista tem por isso que ser simultaneamente um partido de poder que consiga ganhar eleições e um movimento social capaz de induzir uma endogeneização das mudanças a partir do próprio tecido social.

4. Não se trata do mal menor. Trata-se da hipótese com mais probabilidades de êxito, em tempo útil.

5. Aliás, verdadeiramente, o contraponto no seio da esquerda já não é entre reforma e revolução. É entre reforma e imaginação da revolução. Aliás, o reformismo revolucionário de Gorz é um reflexo da superação dessa dicotomia e a formulação da hipótese de um caminho para a sua superação positiva.

Beijos.

Rui Namorado

gui castro felga disse...

«Um partido que se queira assumir como verdadeiramente reformista tem por isso que ser simultaneamente um partido de poder que consiga ganhar eleições e um movimento social capaz de induzir uma endogeneização das mudanças a partir do próprio tecido social.»

D'accord. o problema é que a descrença nos proprios partidos e na classe política já é tal que as pessoas já nem acreditam na hipotese de a sua participação ter algum efeito positivo, ou relevância, sequer... sentem-se utilizadas (em anos de eleições) e traídas (o resto do tempo).

Falo das pessoas que me cercam, da minha idade, das mais variadas ocupações, origens, ideologias... Não sei se a 'fórmula-partido' é o caminho, se calhar esgotou-se o tempo destas organizações tao grandes, tão distantes das pessoas. Se calhar não, e eu ainda não encontrei melhor forma do que estar integrada num partido-movimento político para exercer o meu direito a uma cidadania consciente e participativa. Mas sei que a maioria das pessoas não acredita, sequer.

E sei que assim é dificil fazer a tal maioria social de esquerda, que queremos, eu e tu... não acho que estejamos mais perto disso hoje do que ontem ou do que em 74 ou do que em 69. A estratégia não parece estar a funcionar. Por isso é que eu contesto a 'reforma' deste sistema, porque «pau que nasce torto»...

(pausa para ler o 'reforma e revolução' do Gorz e daqui a uns dias repondo-te, está bem? ;)

beijinho

Anónimo disse...

1. Até ao desmoronamento do modelo soviético e à degradação do modelo chinês, muitos partilhavam a ilusão de que só com revoluções se atingia a irreversibilidade das mudanças. Ou seja, a única via que podia aniquilar de vez o capitalismo era a via revolucionária. Com o reformismo não se garantia essa irreversibilidade. Hoje, já se sabe que afinal a via revolucionária não era garante de qualquer irreversibilidade. Reforma e revolução ficaram no mesmo plano.

Atenção: o reformismo de que falo é aquele que aspira e se dirige a uma mutação qualitativa da sociedade, a uma mudança do tipo de sociedade,a uma superação do capitalismo. Nos seus objectivos não é menos radical do que a revolução. Apenas não é uma engenharia violenta a partir do estado, um atalho ademocrático alegadamente sôfrego de rapidez. É uma via irredutivelmente democrática percorrida pelas dinâmicas conjugadas da sociedade civil(a autêntica) e do Estado.

2."A estratégia não parece estar a funcionar".

Não há estratégia tão inequivocamente perfeita que dispense a busca de alternativa.

Um dos dramas da condição humana é o facto de o tempo histórico não coincidir com as nossas urgências subjectivas , mesmo que legítimas e até objectivamente justificadas.

RN

gui castro felga disse...

Não pus em causa nunca o teu ansiar por uma sociedade diferente - sei que a luta é a mesma e que estamos (só) a discutir métodos. Nem desvalorizo o pensamento reformista, desde que esta seja estrutural e transversal a toda a organização humana... não julgo ter a solução para o problema nem defendo as revoluções armadas. Acho que a revolução será uma tomada de consciência global da necessidade de uma nova ordem das coisas. E a mudança total do sistema político, do sistema de trocas, da noção de trabalho e de distribuição das riquezas.

... e sim, os exemplos que temos, historicamente, da tentativa de revolução para um «socialismo real(ista)» são geralmente deturpados por homens maus, falharam centralmente nas questões das liberdades e de certa forma no humanismo, no gostar e no acreditar nas pessoas que o proprio estado apenas representa, querendo mais controlá-las do que abrir-lhes caminho para elas próprias construirem o mundo.

Sei que o atalhar caminho rompendo o tempo e a evolução continua do mundo - o rasgar do tempo e desse continuum - apresenta perigos e não é necessariamente sinónimo de um mundo melhor...

Mas como não exigir mais, tão mais do que a mera 'social-democracia' que parece ser o ideal da direcção do PS, hoje? Não chega como sonho. Como não exigir o direito à utopia, para chegarmos mais longe, mais perto dela? Porquê aceitar o horizonte finito, murado, como orientação última? E quando chegarmos a isso, para onde vamos a seguir?

A questão dos objectivos intermédios, das coisas que não se querem mas que se defendem para se conseguir chegar às que se querem, posteriormente, dá-me uma grande melancolia...(padeço de idealismo e «já-ismo» crónicos, já sei...)

beijinho

Anónimo disse...

Nunca pensei que pusesses em causa fosse o que fosse em termos pessoais.É estimulante discutir contigo.

A diversidade de opinoões é uma riqueza da esquerda. E a tensão entre o utópico e o possível é um aspecto estrutural de qualquer esquerda não anquilosada.

RN