Duzentos mil trabalhadores na rua, em protesto contra um governo do PS, não podem apenas merecer um simples juízo de valor, quanto às razões escolhidas como eixo da manifestação, e uma alusão ao facto de serem livres de manifestarem a sua opinião. Na verdade, se vinte mil dondocas das melhores famílias desfilassem pelas ruas batendo em caçarolas, em protesto contra qualquer medida de um governo do PS, esse juízo e essa alusão talvez bastassem.
Mas um governo do PS não pode deixar de ponderar politicamente sobre o facto dessa manifestação ter ocorrido com o apoio popular verificado. Não estava ali todo o povo de esquerda, mas estava ali uma parte considerável do povo de esquerda.
Ora, o governo do PS, devendo tratar com justiça todos os portugueses, devendo velar pelo bom funcionamento das instituições e das organizações, garantir a liberdade e segurança das pessoas, instituir mecanismos de solidariedade e de protecção social, não pode deixar de procurar conseguir que o exercício do seu poder deixe as desigualdades sociais menos escandalosas e as subalternidades sócio-políticas menos penalizadoras. Mas estes princípios não são fórmulas abstractas, têm destinatários concretos. Entre estes, estão seguramente os trabalhadores que perderam o emprego, os trabalhadores precários, os trabalhadores cujos salários são tão baixos que não lhes asseguram uma sobrevivência digna.
Eu não desvalorizo o facto de os actuais governantes estarem convencidos que estão a proteger esses trabalhadores da melhor maneira possível. Mas o governo também não pode desvalorizar o facto de centenas de milhares deles mostrarem publicamente que estão convencidos do contrário.
E este é um problema político grave: duzentos mil trabalhadores protestam nas ruas contra a política de um governo de esquerda. Não é apenas a revelação de um risco eleitoral para o governo. E não é algo que não represente também um risco político para os interesses históricos dos trabalhadores.
De facto, se um partido socialista deixar que passe de certos limites (necessariamente incertos) a sua ruptura com a sua base social, ou com uma parte apreciável da sua base social, além de correr um risco maior de enfraquecimento eleitoral, pode abrir a porta ao reforço da implantação social de outras áreas da esquerda e provocar até a sua própria deslegitimação radical, como representante institucional da parte subalterna e prejudicada da sociedade. Mas se a parte mais atingida, ou mais radical,ou mais reivindicativa, do povo de esquerda queimasse por completo o único partido de esquerda que, a curto prazo, pode ser governo, também infligiria a si própria uma grave derrota estratégica, podendo transformar-se, contra a própria vontade subjectiva dos seus líderes, numa arma eficaz da direita e dos interesses que mais antagonizam os que lhes são próprios.
Um preocupante sintoma, de que esta deriva não é imaginária, está no facto de se acumularem exemplos, por enquanto ainda dispersos, de uma convergência anti-governamental das oposições que reflecte já algum grau de solidariedade. O facto de haver actores sociais que já apelaram publicamente ao voto em qualquer das oposições, é disso um eloquente sinal.
Se todos se exercitarem em distribuir culpas, blindando a sua própria infalibilidade e diabolizando os outros, se cada um se refugiar no cálculo de possíveis ganhos eleitorais , pode estar na forja uma preocupante deriva rumo a um desastre estratégico para o povo de esquerda, pela completa desestruturação dos elos que unem os seus partidos, ou alguns deles, à respectiva base social. E assim se abriria desde logo a porta à desinstitucionalização dos conflitos, aumentando-se o risco de surtos puramente dissipativos de convulsão social.
Nem o governo, nem os sindicatos, podem continuar encerrados nas suas razões, como se cada acto, se cada episódio não pudesse nunca levar a consequências estruturais e de médio prazo que fujam, e muito, ao que são os desejos de uns e de outros. Julgar que fazer política é apenas uma actividade de natureza tecnico-administrativa, sem espessura histórica, sem pressupostos ideológicos e sem implicações sócio-culturais, encarando-a com simplismo, é correr o risco de se ser folha arrastada numa corrente, cujo sentido se ignora.
Não tenhamos dúvidas: se, a médio prazo, o pior acontecesse, os duzentos mil trabalhadores que estiveram na rua, os partidos que lhes exibiram aplausos, os actuais governantes, o Partido Socialista e os seus eleitores irredutíveis, ocupariam em conjunto o conglomerado das vítimas. Por isso, talvez seja melhor abrir vias de diálogo, enquanto estamos onde estamos, do que corrermos o risco de, mais tarde, virmos todos a estar sujeitos a um qualquer insuportável poder musculado da direita.